quinta-feira, 30 de agosto de 2012

Do BTT para a Estrada

Kessiakoff, vencedor do crono da Vuelta, vem do BTT como Evans
Fredrik Kessiakoff, que venceu ontem o contra-relógio da Volta à Espanha, já tinha vencido na Volta à Suíça e no ano passado a Volta à Áustria, tem 32 anos mas apenas quatro épocas na alta roda do ciclismo mundial. Por onde andou antes? Nos trilhos do BTT, como Cadel Evans, o vencedor do último Giro Ryder Hesjedal e muitos outros que fizeram esta transição. Esta crónica é sobre eles.

Cadel Evans e Michael Rasmussen, os primeiros


Cadel Evans nos tempos do BTT
Já o ciclismo de estrada era um irmão crescido quando o BTT (na vertente de cross country, XCO) se estreou nos Jogos Olímpicos, em 1996, e os primeiros Campeonatos do Mundo também não tinham acontecido muito tempo antes. Foi em 1990, igualmente nos EUA. Durante os primeiros anos, o rendimento dos melhores betetistas do mundo estava muito abaixo dos melhores corredores de estrada e acontecia com alguma frequência que veteranos da estrada se passassem para os trilhos. A partir de 96 a evolução começou a fazer-se notar, como de resto costuma acontecer com as modalidades que se tornam olímpicas (atenção ao BMX, que já não é um “desporto de putos”). Foi no início do novo milénio que alguns cabeças-de-cartaz do BTT começaram a passar para a estrada.

Cadel Evans e Michael Rasmussen foram os primeiros casos. O australiano tinha vencido a Taça do Mundo por duas vezes (98 e 99) e duas presenças olímpicas (96 e 2000) quando assinou o seu primeiro contrato profissional como ciclista de estrada, em 2001, pela Saeco. Já Michael Rasmussen, apesar de ser 3 anos mais velho, chegou um ano mais tarde ao profissionalismo na estrada. Foi em 2002, na CSC, tendo já um título mundial de cross-country no palmarés, conquistado em 99. O motivo para trocarem os trilhos pelo alcatrão é simples: dinheiro. Os melhores betetistas do mundo têm cada vez melhores salários mas ainda estão muito distantes dos valores recebidos pelos melhores ciclistas da estrada e alguns arriscam esta passagem quando têm a oportunidade.

A oportunidade de Rasmussen surgiu, não só pelos seus resultados no BTT, mas também pela existência de uma equipa de topo (então 1ª Divisão) na Dinamarca, a CSC-Tiscali de Bjarne Riis. Rapidamente chamou à atenção da Rabobank, pela qual se destacou enquanto trepador, até ser suspenso por tentar enganar a UCI (disse que ia para o México mas estava a estagiar na Itália, para fugir aos controlos anti-doping).

Já Cadel Evans ganhou uma oportunidade na Saeco porque ao sucesso do BTT juntava sucessos na estrada. Em 95, ainda em júnior, somou o bronze no Campeonato Mundial de XCO ao bronze no Campeonato do Mundo de contra-relógio, em Itália, país em que realizou algumas competições de estrada até 2001. Também na Austrália, como no Tour Down Under (muito longe da competitividade de hoje), mostrou talento e em Abril de 2001 entrou finalmente na Saeco, equipada pela Cannondale, patrocinadora secundária da sua equipa no BTT, a Volvo-Cannondale. O seu percurso já aqui foi descrito quanto se sagrou vencedor do Tour.

Na verdade, Evans foi o primeiro conceituado a fazer a transição com sucesso mas não foi o primeiro em absoluto. No ano antes, em 2000, tinha chegado à Mapei o italiano Dario Cioni, que tinha muito menos prestígio internacional que Evans mas não era propriamente um desconhecido. Tinha sido vice-campeão europeu sub-23 e contava com vários top-10 em provas da Taça do Mundo. Na estrada, também não chegou ao nível de Evans e os seus melhores resultados foram um 4º lugar no Giro (caído do céu, nunca tinha-se destacado antes nem o fez depois) e o título nacional de contra-relógio, ambos em 2004. Fica a curiosidade de em 2001 ter ganho uma etapa do GP do Minho, em Póvoa do Lanhoso, numa fuga de quinze minutos, terminando também como vencedor da geral. Retirou-se em 2011 depois de passar por Mapei, Fassa Bortolo, Liquigas, Lotto, ISD e Sky.

Ryder Hesjedal, Jakob Fuglsang e Fredrik Kessiakoff


Ainda que não pareça, é Ryder Hesjedal,
muito antes de vencer o Giro 2012
Hesjedal, Fuglsang e Kessiakoff foram os três homens que se seguiram a chegar à estrada sem necessitar de ser apresentados aos adeptos do BTT. Ryder Hesjedal foi vice-campeão mundial em júnior (98), sub-23 (01) e elite (03), passando definitivamente para a estrada em 2005, na Discovery Channel, tendo anteriormente realizado algumas provas pela Rabobank Continental e pela US Postal. Em 2009 venceu uma etapa na Vuelta, em 2010 foi 2º na Amstel Gold Race e 7º no Tour e este ano venceu o Giro. Disputou os Jogos Olímpicos de Atenas no BTT, os de 2008 na estrada (prova em linha e contra-relógio) e falhou os de 2012 devido a lesões contraídos no Tour.

Se Hesjedal teve três vice-campeonatos no cross-country mas faltou-lhe o título, Jakob Fuglsang sim, conseguiu. O dinamarquês foi campeão mundial sub-23 em 2007. Em Agosto de 2008 conquistou a sua primeira Volta à Dinamarca pela continental Designa Køkken, mudando-se no ano seguinte para a CSC, onde venceria mais duas Voltas à Dinamarca e se estrearia na Vuelta (2009) e no Tour (2010). Fiel aos irmãos Schleck, mudou-se para a Leopard, pela qual foi 11º na Vuelta do ano passado, e depois para a Radioshack, pela qual venceu a Volta ao Luxemburgo e a Volta à Áustria. No próximo ano correrá pela Astana.

Fredrik Kessiakoff fez a passagem para a estrada muito mais tarde do que os anteriormente referidos. Foi a caminho dos 29 anos e no BTT já tinha sido 3º, 4º (duas vezes) e 5º em Campeonatos do Mundo, também 3º num Campeonato da Europa e participou nos Jogos de 2004 e 2008. Em 2009 mudou-se para a estrada, para a Fuji-Servetto, depois de em 2008 já ter corrido com bicicleta dessa marca. Deu algumas boas indicações, 2010 (Garmin) foi um ano para esquecer e no ano passado teve um rendimento muito bom na segunda metade da temporada, vencendo a Volta à Áustria e ocupando o 6º lugar na geral à entrada para a última semana da Vuelta, quando se viu afectado por uma gastroenterite. Este ano venceu um contra-relógio na Volta à Suíça e agora outro na Vuelta, tendo pelo caminho liderado a classificação da montanha do Tour durante vários dias e terminando em segundo nessa classificação.

O Vice-campeão olímpico Peraud


Jean-Christophe Peraud surpreendeu em 2009 ao sagrar-se campeão francês de contra-relógio, batendo Sylvain Chavanel. Era desconhecido da maioria dos seguidores do ciclismo pelo mundo fora mas não dos seus compatriotas, que no ano anterior tinham comemorado a sua prata olímpica. Para 2010 assinou pela Lotto e no ano seguinte mudou-se para a Ag2r, pela qual se estreou no Tour com um 10º lugar. Este ano andou dividido entre a estrada e o campo, aliciado pela possibilidade de ir aos Jogos de Londres, mas acabou por fazer uma época baste abaixo do esperado.

Passagem pelos Jogos Olímpicos de BTT teve igualmente o russo Yuri Trofimov. Estreou-se em Atenas com apenas 20 ano e no ano seguinte foi campeão mundial sub-23 de BTT. Em 2008 ainda foi a Pequim, mas nessa altura já estava mais dedico à bicicleta de roda fina e tinha inclusivamente vencido uma etapa do Dauphiné Libéré pela Bouygues Telecom. No ano seguinte venceu uma tirada na Volta ao País Basco mas desde o ano passado é um mero gregário na Katusha.

Gilberto Simoni e Mirko Celestino em sentido inverso


Percurso inverso fizeram os italianos Gilberto Simoni e Mirko Celestino, passando da estrada para o BTT. No caso de Simoni, bi-vencedor do Giro, foi apenas durante algumas provas. Em 2006, convencido pela Scott que patrocinava a sua equipa Saunier Duval mas também queria promover-se no BTT, correu algumas maratonas (XCM). Logo foi campeão italiano de Maratonas.

A diferença entre o nível do Cross-Contry Olímpico e as Maratonas é enorme. As provas de XCO devem ter entre 1h30 e 1h45 (regulamento UCI) e são geralmente técnicas, enquanto as provas de XCM devem ter entre 80 e 120 km, demorando mais de 4h, e a resistência e endurance assumem grande importância. Assim sendo, ciclistas de estrada conseguem adaptar-se às maratonas por terem a resistência e o endurance trabalhados da estrada, mas não conseguem adaptar-se às provas de cross-country olímpico porque lhes falta a técnica que só é possível com anos de treino. Também porque existe um maior e melhor trabalho na vertente olímpica, já que é aí que as marcas apostam.

Itália tem ainda o caso de Mirko Celestino, um classicomano italiano que correu entre 96 e 2007, vencendo um Giro di Lombardia, uma clássica de Hamburgo e duas Milão-Turim. Desde que se dedicou às maratonas, além de títulos nacionais, foi vice-campeão europeu e mundial em 2010 e 3º nos Mundiais do último ano.

Peter Sagan


Peter Sagan com a camisola de campeão
mundial júnior de 2008
Peter Sagan, claramente um dos melhores ciclistas desta temporada, não é só versátil no ciclismo de estrada (clássicas, sprints, prólogos,…) é também versátil no geral da esfera da UCI, ele que em 2008 foi campeão europeu e mundial júnior de BTT e vice-campeão mundial de cyclocross (CX). Em 2010 tornou-se profissional na Liquigas e é actualmente o fenómeno que todos sabem, com 16 vitórias na temporada, incluindo 3 no Tour (+ camisola verde), 3 na Suíça e 5 na Califórnia.

Outra referência no que diz respeito a versatilidade nos escalões jovens é Roman Kreuziger, que em 2004, enquanto júnior, foi campeão mundial em linha, vice-campeão mundial de contra-relógio e de cyclocross (cyclocross que não é BTT). Em menor medida, temos Brent Bookwalter (BMC) que representou os EUA em Campeonatos do Mundo de cyclocross (junior), cross-country (junior) e estrada (sub-23 e elite).

Casos mais famosos são os de Lars Boom e Zdenek Stybar, também juntando estrada e CX. Em 2007, enquanto sub-23, o holandês Boom juntou o título mundial de contra-relógio ao de cyclocross, no ano seguinte foi campeão absoluto de cyclocross e actualmente está a construir uma carreira de sucesso na estrada, tendo recentemente ganho o Eneco Tour. Já o checo Stybar, campeão mundial de cyclocross em 2010 e 2011 (títulos disputados no início de cada ano), está na sua segunda temporada dedicada à estrada e está a disputar a Vuelta, depois de vencer uma etapa na Volta à Polónia.

Outros casos


A todos estes casos, há que juntar o norte-americano Tom Danielson e o suíço Johann Tschopp (BMC), que antes da estrada (nos escalões jovens) eram bem-sucedidos betetistas nos seus países. Em França há vários ciclistas de estrada que usam o cyclocross como preparação de inverno, sendo o rosto mais visível John Gadret, por duas vezes campeão francês elite de cyclocross e medalhado por mais seis vezes, a última delas em 2011, atrás de Francis Mourey (que tem contrato com a FDJ) e à frente de Arnold Jeanesson (também da FDJ e uma esperança do ciclismo francês). Steve Chainel, igualmente da FDJ, faz todo o calendário de CX e só depois se dedica à estrada.

O norueguês Lars Petter-Nordhaug praticou BTT e cyclocross em conjunto com a estrada até assinar pela Sky, conquistando vários títulos nacionais.

Para terminar, outros ciclistas de grandes equipas que praticaram cyclocross nos escalões de formação com bons resultados dentro do seu país: Robert Kiserlovski (Astana), Beñat Intxausti (Movistar), os irmãos Gorka e Jon Izagirre (Euskaltel), Victor Cabedo (Euskaltel), Matteto Trentin (Omega Pharma), Davide Malacarne (Europcar), Sébastien Minard (Ag2r), Jonathan Hivert (Saur), Sebastien Langeveld (Orica-GreenEdge), Kenny Van Hummel (Vacansoleil), Laurent Didier (Radioshack), Alex Howes (Garmin) e Boy Van Poppel (UnitedHealthcare).

*****
Para recapitular: XCO é a sigla do cross-country olímpico, XCM é a sigla da vertente de maratonas (BTT não olímpico) e XC é a sigla de cyclocross (não olímpico) CX é a sigla de cyclocross (não olímpico) - corrigido

5 comentários:

  1. Excelente artigo como sempre! Mas um pequeno reparo...Ciclocross não é XC é CX Ciclo "cross"X, XC é "Cross"X Country! portanto o X é para a palavra cross!

    Mas excelente artigo como sempre!

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  2. Obrigado pelo reparo, Anónimo. Tem toda a razão e já foi corrigido ;)

    Cumprimentos

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  3. Em Portugal temos o ex profissional Celestino Pinho que além de fazer ciclismo de estrada pela equipa de elite do Louletano também faz ciclocross durante o inverno e penso mesmo que já foi campeão nacional nesta especialidade.

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  4. Sim o Celestino é o actual campeão nacional de ciclocross Elites. o mestre também já participou em algumas maratonas de BTT, e existe a possibilidade de em Portugal uma equipa profissional de estrada começar a correr mais frequentemente BTT, como forma de manter a actividade e divulgar ao máximo os patrocinadores, mas sempre no XCM.

    O David Rodrigues acho que não estou errado se disser que ele ainda faz estrada, penso que na ASC, e continua a correr BTT, mas aqui no XCO, ele que foi o primeiro português a vencer uma taça do mundo, ainda que de juniores! Portanto bons exemplos de versatilidade!

    Agora só falta termos mais gente na Pista!

    PS:sou o anonimo de cima! : )

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  5. Obrigado pelos comentários de ambos.

    Pengo, o Celestino Pinho é realmente campeão nacional de ciclocrosse, uma modalidade que em Portugal esteve inactiva durante muitos anos e actualmente ainda tem um nível muito baixo. Tanto que o Celestino nem consegue andar perto dos melhores espanhóis, que por sua vez nem conseguem andar perto dos melhores do mundo ;)

    Anónimo, exactamente, o David Rodrigues ainda faz estrada e BTT. O Hugo Sabido chegou a ganhar uma prova da Taça de Maratonas enquanto corria na Barloworld e outra pela LA-Antarte. Numa versão anterior da crónica eu tinha essas referências, mas depois retirei para não ser tão extensa e porque uma coisa são betetistas que conseguem passar para a elite mundial da estrada e outra são elites nacionais que passam para o BTT nacional ;)

    Cumprimentos a ambos!

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