terça-feira, 4 de setembro de 2012

Tyler Hamilton e Floyd Landis, dois bons rapazes

Tyler Hamilton, uma das testemunhas de acusação de Lance Armstrong mas que garante que não está interessado em ganhar dinheiro com o caso, vai na próxima semana colocar à venda um livro onde fala do hepta-vencedor do Tour. Dei por mim a pensar «além de falar de Armstrong, o que terá Hamilton para contar?» e lembrei-me de algumas boas histórias suas, como aquela vez em que lhe encontraram sangue de outra pessoa nas veias e ele disse que era inocente e que devia ser proveniente de um irmão gémeo que tenha falecido no útero da mãe.


Criei o assunto "coisas de bons rapazes" logo nos primeiros tempos de blog mas apenas atribui o título a duas pessoas: ao serial dopper Riccardo Riccò (quando uma transfusão sanguínea caseira quase o matou) e a Eufemiano Fuentes quando foi anunciado como médico da equipa de futebol do Universidad de Las Palmas (que entretanto foi extinto por dívidas) depois de ser protagonista em várias investigações de doping. Entregar apenas duas vezes este galardão é uma falta de consideração da minha parte para todos os bons rapazes que há no mundo do desporto.

Para ser considerado um "bom rapaz", não basta ter um controlo anti-doping positivo. É preciso fazer mais "coisas de bons rapazes" e uma boca grande, de onde saem declarações ridículas ou desculpas esfarrapas é um bom argumento para chegar a este título que, como facilmente se percebe, é regado de ironiaAo reflectir um pouco sobre a carreira de Hamilton, achei que seria injusto não receber esta distinção e, como eu gosto de contar histórias, cá vai.

nota prévia: Os links colocados durante o texto são quase todos eles para artigos muito extensos e em inglês. Não é necessária a sua leitura para compreender a minha crónica. Servem apenas para comprovar que o que eu escrevo não é invenção minha. Aliás, por muito que me esforçasse, eu jamais conseguiria inventar histórias como as de Hamilton e Landis.

Tyler Hamilton & o Doping, parte 1


2004 foi um ano rico em casos de doping para a Phonak, primeiro com Oscar Camenzind apanhado com EPO e  depois com Santi Pérez e Tyler Hamilton apanhados por transfusões sanguíneas. Ainda assim, no que toca à melhor história, o norte-americano não deu hipóteses.

O Tour não lhe tinha corrido bem (sobretudo por queda) mas Tyler Hamilton chegava à Vuelta como recente campeão olímpico de contra-relógio, o que para os norte-americanos é um feito extraordinário. Seja em que desporto for, para eles os Campeonatos do Mundo são eventos de menor importância, sendo o basquetebol o maior exemplo: nenhuma estrela consagrada da NBA perde tempo com Mundiais (são para as estrelas a despontar) mas quando toca a convocatória olímpica o cenário é bem-diferente, como se viu este ano e com as atenções de despertaram.

À oitava etapa dessa Vuelta demonstrou os seus dotes vencendo o primeiro contra-relógio da prova, mas no dia seguinte perdeu mais de dez minutos numa chegada ao alto, na 12ª etapa perdeu mais de meia hora (chegou no grupo dos sprinters) e no dia seguinte abandonou por "problemas estomacais". Pouco depois soube-se que tinha sido apanhado no controlo anti-doping por transfusão sanguínea homóloga (com sangue de outra pessoa). Ele clamou inocência e é aqui que começa a parte mais engraçada da história.
"Estou 100% inocente" 
"Estou devastado. A minha família, equipa e amigos estão devastados" 
"Estou a ser acusado de usar sangue de outra pessoa. Qualquer um que me conheça sabe que é completamente impossível" 
"O ciclismo é muito importante para mim mas não tão importante assim. Se eu tivesse que me dopar, eu deixava a bicicleta"
Todas estas belas frases são de Tyler Hamilton e podem ser lidas aqui.

Alguém duvida de Hamilton, o bom Tyler injustiçado? Andy Rihs, chefão da equipa e proprietário da BMC (que na altura não tinha equipa própria e patrocinava a Phonak) acreditava na inocência de Hamilton, até que em Outubro também foi detectada uma transfusão homólogo a Santi Pérez e Rihs começou a desconfiar que algo que estava a escapar (chamava-se Eufemiano Fuentes, como se descobriu em 2006).

Tyler Hamilton & o Doping, parte 2


Ainda a Vuelta estava na estrada (sem Hamilton) quando vieram a público novidades: os controlos feitos nos Jogos Olímpicos também acusavam transfusão sanguínea homóloga. Foi aí que Hamilton inventou uma das piores desculpas de sempre da história do combate ao doping (não há um ranking oficial, mas esta seria candidata às medalhas). Prepare-se, caro leitor: segundo Hamilton, a sua mãe estava grávida de gémeos, o seu irmão terá falecido ainda no útero da progenitora, as suas células tinham passado para o bom rapaz do Tyler e era daí que vinham os valores irregulares.

Pode parecer demasiado estúpido para ter sido apresentado como prova de defesa, mas foi (textos aqui e aqui, ambos em inglês). Já teria sido detectado antes se esse fosse o motivo e, como tal, ninguém foi nessa desculpa e Hamilton foi suspenso durante dois anos. Recorreu e o recurso foi chumbado pelo TAD. A medalha olímpica não foi retirada inicialmente porque não foi possível fazer contra-análise (o que é obrigatório) mas este ano o resultado foi mesmo anulado uma vez que Hamilton confessou que se tinha dopado nesses jogos (todos já tinham percebido mas só a sua confissão poderia substituir a contra-análise em falta).

Tyler Hamilton & o Doping, parte 3


Não se pense, contudo, que a carreira de Hamilton terminou com a suspensão de 2 anos. Aliás, se o consagrado filme O Padrinho teve três capítulos, como poderia a criativa saga Tyler Hamilton & o Doping ficar-se pelo segundo?

Em 2007 voltou a correr pela Tinkoff (prestação discreta) e em 2008 foi campeão nacional dos EUA, beneficiando de uma fuga, ao serviço da excêntrica Rock Racing. Lá correram também Óscar Sevilla e Francisco Mancebo, os quais não interessavam às melhores equipas da Europa por estarem ligados à Operação Puerto (que saiu a público em 2006 e onde também figurava o bom Tyler). Em 2009 voltou a acusar positivo (um esteróide) mas já não clamou inocência, disse apenas que o tinha tomado para se curar duma depressão, foi suspenso por oito anos e encerrou carreira.

Pelos seus dois controlos positivos, mas sobretudo pela sua sentimental alegação de inocência e pelas suas criativas desculpas apresentadas, Tyler Hamilton merece a condecoração de "Bom Rapaz". E o bom Tyler, apesar de já ter terminado carreira, não deixou o ciclismo. É personal trainer nos EUA e a partir de amanhã estará à venda um livro titulado "A Corrida Secreta: dentro do escondido mundo da Volta a França: Doping, encobrimentos e ganhar a todo o custo". Ele diz que está a testemunhar contra Armstrong para defender a verdade e não para ganhar dinheiro, mas não deixa de aproveitar esta excelente altura para colocar à venda um livro sobre quem ele acusa. Enfim, é tudo coisas de bons rapazes.

Floyd Landis: Whisky, Cerveja e Volta à França


A relação entre Floyd Landis e o doping tem apenas um controlo positivo mas é igualmente rica em criatividade.


Aí está indicado o local do
problema de Landis
A Volta a França de 2006 não contava com algumas das principais figuras dos anos anteriores. Lance Armstrong tinha terminado carreira em 2005, Ivan Basso e Jan Ullrich ficaram de fora do Tour 2006 por estarem envolvidos na Operação Puerto e Alexander Vinokourov ficou de fora porque cinco dos seus colegas seleccionados estavam teoricamente ligados à OP (Beloki, Contador, Paulinho, Allan Davis e Isidro Nozal, sendo os cinco oficialmente desligados da investigação logo em Julho desse ano). Dado o contexto, Floyd Landis era um dos grandes favoritos à vitória, já que tinha sido 9º na edição anterior e nessa temporada tinha vencido Volta à Califórnia e Paris-Nice.

Porém, Landis tinha um problema escondido, que só revelou pouco antes do Tour: uma queda no início de 2003 fracturou-lhe o fémur, foi operado mas a recuperação não foi perfeita e em 2004 o osso começou a degradar-se, tendo que fazer novo tratamento... que também não correu na perfeição. Landis podia correr mas tinha limitações no seu dia-a-dia. Lembro-me aliás de o ver a desmontar a bicicleta de uma forma invulgar em plena Volta a França ("para subir para a bicicleta, tenho sempre que meter a perna direita primeiro" disse em entrevista) e sei que tinha que trocar as escadas por elevador sempre que possível. Apesar de poder competir, após aquela Volta a França teria que ser novamente operado, pois o seu fémur não aguentaria outra temporada. As hipóteses de voltar ao mais alto nível eram escassas e 2006 era, portanto, o ano do tudo ou nada para Landis.

A prova começou bem para ele: bom prólogo, primeira semana tranquila e um excelente contra-relógio que o deixava em segundo na geral apenas atrás de Honchar (não perigoso na montanha). Chegaram as etapas de montanha e logo chegou à liderança da prova, uma liderança que não durou muito porque depois Oscar Pereiro ganhou meia hora numa fuga (primeiro momento inesquecível desse Tour) e passou a ser ele o camisola amarela. Landis continuava a ser o maior favorito e voltou à liderança na chegada ao Alpe d'Huez. No dia seguinte deu-se o segundo momento inesquecível desse Tour, com Landis a ser visitado pelo temível "Homem da Marreta" e a perder mais de dez minutos, ficando fora da luta pela vitória... ou pensava-se que sim. O bom Floyd, naquele que muito provavelmente era a última oportunidade de vencer o Tour, tinha uma carta na manga.


Landis atacou sozinho ainda na primeira montanha e só foi batido...
pelo controlo anti-doping
No dia seguinte, tivemos direito ao terceiro e último momento inesquecível desse Tour, o maior golpe de teatro dos últimos anos de Tour. Para quem não pôde acompanhar, aqui fica o relato:

A Phonak acelerou na primeira montanha do dia, a 130 km da meta e 5 km depois já Landis ia sozinho. A 40 km da meta, tinha 9 minutos de avanço sobre o pelotão (e era virtual camisola amarela), porque a CSC de Sastre e a T-Mobile de Klöden demoraram quase 100 km a perceber que Landis estava a derrotar a Caisse d'Epargne inteira e que era preciso ajuda para continuarem a sonhar com o Tour. No final, Landis "só" ganhou 5'42'' a Sastre e 7 minutos a Pereiro, que continuava na liderança mas tinhas agora Sastre a 12 segundos e Landis a 30. Pelo caminho, Landis despachava bidões de água a um ritmo que nunca tinha sido visto, nunca mais foi visto e jamais será visto. É uma pena que eu não encontre o vídeo dessa etapa, mas quem a viu certamente se lembrará do que estou a relatar. (não encontrei eu o vídeo da etapa mas encontrou um leitor que partilhou nos comentários. Foram acrescentados ao final da crónica (04/09/12, 17h55))

Quem já alguma vez abusou do consumo de álcool sabe que a água é um dos melhores remédios para o dia seguinte e Landis bebeu água que dava para curar a ressaca de uma equipa inteira. Pensará o leitor "mas os ciclistas não se embebedam durante as provas". Segundo os advogados de Landis, fazem-no. Já lá vamos.

No último contra-relógio, o norte-americano arrebatou a camisola amarela e em Paris fez a festa. Era o Tour do seu tudo ou nada, começou bem, pareceu perdido (Tour de nada) e deu a volta com uma grande exibição para ganhar (Tour de tudo). Porém, ainda não tinha sido operado e já a sua vitória estava a balançar: Landis acusou uma relação testosterona/epitestosterona muito alta, que é como quem diz, excesso de testosterona. Acusou 11/1 quando o limite máximo é 4/1.

Tal como o bom rapaz Tyler Hamilton, também o bom rapaz Floyd Landis clamou inocência, porque os bons rapazes não fazem "coisas feias".
"Nós vamos explicar ao mundo que isto não é um caso de doping mas sim um acontecimento natural. Os níveis de testosterona foram produzidos pelo meu organismo"
Landis também tem um livro...
onde se diz inocente
A frase é de Floyd Landis mas o motivo só foi apresentado pelos seus advogados em tribunal: o consumo de cerveja e whiskey na noite anterior ao controlo (depois de ter perdido dez minutos e antes da épica cavalgada). Landis diz que a ideia não foi dele, mas não deixa de ser uma das piores de sempre (outra para o ranking), principalmente porque na sua urina foi encontrada testosterona sintética, que não poderia ter sido produzida por qualquer corpo humano.

«Alguém apontaria que o vencedor do Tour do último ano era um batoreiro dopado?» foi a pergunta feita no programa australiano 60 Minutes a Stuart O'Grady. «Eu apontaria, porque eu estava com ele naquele dia e eu ia na fuga. Eu estava 13 minutos à frente dele, ele apanhou-nos e simplesmente deixou-nos para trás. Eu pensei que era impossível aquilo que ele fez. Eu não sou um mau ciclista, você sabe, e ele fez-me parecer um pequeno miúdo». Foi a resposta do australiano.

Landis continuou a dizer-se inocente e recorreu dos veredictos até onde pôde. Criou o Fundo de Justiça Floyd, onde angariou quase 500 mil dólares de pessoas que acreditavam na sua inocência, mas em 2008, o TAD recusou o último recurso.

Quanto ao consumo exagerado de água, é difícil dar uma explicação, mas certamente não foi para curar a ressaca da noite anterior e, mesmo que Landis tenha bebido nessa noite, não foi isso que motivou a alta concentração de testosterona sintética no seu corpo

Em 2010 admitiu que se tinha dopado mas não durante aquele Tour (negação de controlos positivos até à última, coisas de bons rapazes). E em Agosto deste ano foi condenado a devolver os quase 500 mil dólares angariados para sua defesa, sob ameaça de ser preso por 20 anos. Mas esperem lá! Se ele não tinha dinheiro para pagar a sua defesa e o dinheiro angariado foi usado para pagar aos advogados, como o vai devolver agora? Há quem diga que Landis e mais alguns estão a ser pagos para testemunhar contra Armstrong...

Conclusão


Com apenas um controlo positivo na carreira, mas com tanta desculpa e tanta criatividade, concedo a Floyd Landis a medalha de "bom rapaz". Ele e Tyler Hamilton são duas das testemunhas contra Lance Armstrong que, segundo Hamilton, enviava produtos dopantes por correio normal. A USADA entende que Hamilton e Landis são dois bons rapazes arrependidos e duas testemunhas de confiança. Atendendo ao percurso de ambos, eu tenho outra opinião.



Vídeos adicionais da última 1h20 da etapa:




Obrigado ao leitor "Pengo" pela partilha!

10 comentários:

  1. Caro Rui essa cavalgada inesquecível de Floyd Landis na etapa de Morzine foi fácil de encontrar:)


    Estes são os videos com a última hora e 10/20 minutos da etapa:

    http://www.youtube.com/watch?v=4saCy1-Y5iA
    http://www.youtube.com/watch?v=dbi8hdD3rpE&feature=relmfu

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  2. Obrigado, Pengo! Já foram acrescentados os vídeos ao artigo ;)

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  3. Lembro-me tão bem desse Tour onde só aconteceram coisas do outro mundo e qualquer comentador que fizesse previsões parecia um charlatão.

    O Landis a rebocar uma 'bigorna' num dia (acho que até chegou a apear) e no dia seguinte faz um daqueles ataques suicidas, a solo, logo no início da etapa, que nunca resultam...mas desta vez resultou qual bicicleta qual que, ele ia era montado num foguete cujo combustível era água fosse da equipa, fosse no carro neutro, fosse do público tudo servia para emborcar e para se 'regar'.

    Não sou daqueles que reclama inocência para o Armstrong, mas o que estão a fazer 10 anos depois é uma simples caça ao homem e a matar o maior ícone que a modalidade já teve e consequentemente a modalidade. Acredito piamente que na altura fosse práctica comum todos, ou quase todos se doparem, por isso estavam todos em pé de igualdade.

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  4. Caro Rui Quinta,
    parabéns pelo artigo.

    Paulo Xavier

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  5. Obrigado por ambos os comentários ;)

    Tiago, nunca tinha ouvido a expressão "rebocar uma bigorna" para descrever um empeno, mas vou começar a fazê-lo. É uma expressão com potencial ehehe

    Cumprimentos!

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  6. Grande Artigo! É o que eu digo sempre, o Hamilton acusar o Armstrong é uma mesmo que uma prostituta te vir dizer que a tua mulher não é seria (salvo seja)

    Enfim tudo bons rapazes : )

    Cumprimentos

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  7. A USADA dar votos de confiança a duas das maiores vergonhas do ciclismo norte-americano para caçarem o homem mais mediático deste desporto (e um herói mundial) mostra bem como funcionam os bastidores do poder nos USA...

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  8. Eu lembro-me dessa etapa. Foi o terceiro tour que segui do inicio ao fim e lembro-me do comentador na altura estar a dizer que ele devia funcionar a agua. Lembro-me perfeitamente também de o carro da equipa ficar sem água e ele de seguida esvaziar também o carro de apoio neutro tendo de recorrer na parte final a agua do publico. O meu pai, na altura disse que ele devia estar dopado (90% certezas) e que ele estava a beber água para fazer com que parte do agente dopante saísse durante a prova na urina e não no controlo antidoping. Será que esta teoria tem algum fundamento?

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  9. Obrigado pelos comentários ;)

    Sandro Martins, sinceramente, não sei dizer se esse poderia ser o caso. Não me parece, mas não tenho certezas. Além disso, mesmo que essa eliminação fosse impossível, ele podia acreditar nela...

    Cumprimentos!

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  10. Pois, é bem possível.

    Cumprimentos

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