domingo, 31 de março de 2013

O regresso de Spartacus


Um ano depois de cair e fraturar a clavícula em quatro locais, Fabian Cancellara regressou à Volta a Flandres para vencer de forma magistral. Não foi uma revolta de escravos que este Spartacus liderou, mas talvez uma revolta para com todo o azar que o perseguiu ao longo de 2012, culminando da melhor forma uma corrida próxima da perfeição da Radioshack.

A Volta a Flandres dos 100 anos não começou da melhor forma, com Tom Boonen a cair ainda nos quilómetros iniciais e a abandonar. Os exames médicos não apresentam fraturas mas o campeão belga falhará o Paris-Roubaix, o que é uma pena. Independentemente de serem fãs de Cancellara, Sagan ou outro, todos os que gostam de ciclismo gostam que todos os melhores protagonistas estejam na estrada.

Como esperado, a primeira fuga do dia foi dominada por ciclistas de equipas belgas: Tosh Van der Sande (Lotto), Tim De Troyer (Accent Jobs), Kevin Claeys (Crelan) e Laurens de Vreese (Topsport), com Jetse Bol (Blanco), Jacob Rathe (Garmin) e Michael Morkov (Saxo-Tinkoff) pelo meio. O que poucos ou ninguém esperaria era que fosse a Europcar assumir desde muito cedo a perseguição aos fugitivos, não permitindo que estes chegassem sequer aos quatro minutos de vantagem.

Sendo curta a diferença entre fugitivos e pelotão, o surpreendente André Greipel (Lotto) atacou para se chegar à frente com o seu companheiro Marcel Sieberg, o segundo classificado da última Algarvia Michael Kwiatkowski (Omega Pharma), Vincent Jerome (Europcar) e Maarten Tjallingii (Blanco).

Duas equipas estiveram hoje fantásticas taticamente: Lotto e Radioshack. Os belgas da Lotto, sem um super candidato à vitória mas acreditando nas possibilidades de Jurgen Roelandts, apostaram por colocar vários homens na frente para poderem depois ajudar o ex-campeão belga. E Greipel, que não tinha hipóteses de disputar ele mesmo os primeiros lugares, sacrificou-se por um colega, mostrado o porquê de todos dizerem maravilhas a seu respeito desde o dia em que chegou à Lotto. Já da parte da Radioshack, controlaram muito bem a corrida, sobretudo com Hayden Roulston e Stijn Devolvder mas também com Gregory Rast e Yaroslav Popovych sempre disponíveis. Não são super-gregários para estar junto de Cancellara nas duas subidas finais mas também não era isso que o suíço precisava. Bastava-lhe que os colegas controlassem a corrida até à última passagem pelo Oude Kwaremont.

Esperar ataques dos principais favoritos antes dessa dificuldade era pedir demais. Ao contrário do que acontece no Paris-Roubaix, na Volta a Flandres é mais provável que exista um mini-pelotão a 30 ou 40 quilómetros da meta e nem Cancellara seria capaz de escapar a um grupo com vários homens da Sky, BMC e Omega Pharma a perseguir. Mesmo no antigo percurso (até 2011) era algo habitual que a decisão acontecesse nos últimos dois muros, como foi o caso de 2007 (Alessandro Ballan) ou 2011 (Nick Nuyens), com as surpresas de Stijn Devolver (2008 e 2009) e uma extraordinária dupla Cancellara-Boonen (2010) pelo meio.

Como previsto na antevisão da corrida, foram as últimas subidas a Oude Kwaremont e Paterberg a fazer a diferença. Todas as subidas desta prova se adaptam a Fabian Cancellara mas Oude Kwaremont é a única que lhe permite meter um ritmo infernal durante quilómetro e meio e eliminar todos os seus adversários, um por um. Todos menos Peter Sagan, que aguentou firmemente na sua roda, para se juntarem a Jurgen Roelandts que entretanto se tinha isolado na frente.

Peter Sagan ficou então numa situação ingrata. Se todos tínhamos visto na televisão que o eslovaco tinha sofrido muito no final da subida, mais do que ver, ele tinha sentido enormes dificuldades para aguentar o ritmo de Cancellara e sabia que todas as energias lhe fariam falta na subida a Paterberg. Mas ali tinha que escolher. Ou colaborava com o seu rival e arriscava-se a que lhe faltasse energia na última dificuldade, ou não colaborava e arriscava-se a que fossem os dois absorvidos. Optou e bem pela primeira opção. Era preferível ultrapassar o Paterberg em segundo do que ser alcançado pelos perseguidores depois do esforço feito na subida anterior.

Roelandts foi o primeiro a ceder no Paterberg e, tal como Boonen sofreu neste muro na edição do ano passado, Sagan provou o sabor de ver o seu rival a distanciar-se. Mas enquanto Ballan e Pozzato foram incapazes de se desfazer de Boonen em 2012, desta fez Cancellara esteve num nível suficientemente superior para rapidamente ganhar 10s a Sagan.

A partir daí já se sabe como funciona: Cancellara mete o seu ritmo de contra-relogistas e atrás que se organizem para o apanhar. Raramente o conseguem.

Escrevi há um ano atrás, no rescaldo do Paris-Roubaix, que apenas três ciclistas de clássicas assumiam sempre as suas responsabilidades sem medo: Boonen, Cancellara e Gilbert. Sagan continua a não pertencer a este grupo. Com um Roelandts desgastado, Sagan tinha que assumir a perseguição a Cancellara, não tanto para a vitória, mas para fugir ao grupo de perseguidores de modo a poder chegar ao segundo lugar. Se fosse alcançado, ficaria fora do pódio.

Durante alguns quilómetros Sagan hesitou, temeu Roelandts e quase foram alcançados, mas para sua felicidade lá atrás também não havia organização e Sagan teve tempo de refletir sobre a situação em que estava e dar mais de si.

Fabian Cancellara ia alargando a vantagem e conquistaria a sua segunda vitória na Volta a Flandres de forma autoritária, com 1’27’’ sobre Peter Sagan, igualando a diferença entre Johan Museeuw e Fabio Baldato em 1995 (1º e 2º). Para encontrar maior diferença entre os dois primeiros é necessário recuar até 1983.

Sagan demonstrou mais uma vez que é um ciclista fantástico, um dos melhores dos últimos largos anos, mas que precisa de ser bem acompanhado para que saiba o que fazer e quando o fazer. É jovem e é normal que tenha que melhorar esse aspeto. Além do mais, fora da corrida é muito mais fácil raciocinar do que em cima da bicicleta, com o coração a 180 batimentos por minuto e depois de seis horas de esforço.

Jurgen Roelandts conseguiu um enorme terceiro lugar, totalmente merecido pela sua postura e da sua equipa. 19 ciclistas lutaram pelo quarto posto, com Alexander Kristoff (Katusha) a levar a melhor.

Depois de hoje, Cancellara reforçou o seu favoritismo para o Paris-Roubaix, uma corrida também ela com muito pavé mas de características significativamente diferentes da Volta a Flandres. Peter Sagan, por seu turno, começa agora a preparar a Amstel Gold Race, onde quererá melhorar o segundo lugar da Milano-Sanremo e de hoje e o terceiro lugar do ano passado na prova holandesa.


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Extra-corrida: Sagan esteve muito mal no final, ao apalpar o rabo de uma das meninas de pódio (ver foto). O que para muitos homens é um piada, para as mulheres é uma enorme falta de respeito e há muitas mulheres que gostam de ciclismo e que não gostaram daquela atitude. Um português fez parecido quando ganhou uma Volta a Portugal de juniores há poucos anos. Não fica bem e aos 23 anos já não se admite.

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Também na Bélgica, disputou-se por estes dias a Triptyque des Monts et Châteaux (Tríptico dos Montes e Castelos). O nome deve ser desconhecido pela maioria dos adeptos portugueses mas é uma prova de referência no que toca ao ciclismo de formação e que já foi vencida por Devolder, Kashechkin, Thomas Dekker, Lars Boom ou Thomas de Gendt antes de chegarem à elite do ciclismo mundial. Desta vez foi Fábio Silvestre!

O percurso contava com quatro etapas. Sexta-feira uma tirada de 180 km para sprinters, sábado de manhã um contra-relógio plano de 10 km, sábado pela tarde uma etapa de 100 km com várias colinas na parte final e no domingo mais 160 km acidentados.

Contando com um pelotão cheio de jovens promessas, o melhor foi o português Fábio Silvestre, que continua assim a sua fantástica temporada. Atrás de si ficaram muitos dos jovens valores já referenciados pelas equipas World Tour. Se o Fábio Silvestre ainda não estava, agora seguramente estará referenciado por todas as grandes equipas. E não venceu a geral porque esteve numa fuga com sucesso mas sim porque esteve entre os melhores todos os dias, o que ainda lhe valeu a classificação dos pontos. Bravo, Fábio, parabéns!

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Marianne Vos venceu a Volta a Flandres feminina.

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Amanhã não haverá Revista da Semana, porque também não houve provas suficientes que o mereçam durante esta semana. Por outro lado, estão aí à porta as primeiras provas para a seleção nacional sub-23 e júnior  o que merecerá crónica durante a semana que se segue, bem como o Paris-Roubaix. Também durante a semana, no Facebook e no Twitter serão lançadas alguma curiosidades e fotografias sobre o terceiro monumento do ano, à semelhança do que já aconteceu para a Ronde.

1 comentário:

  1. Parabéns pelo artigo!


    Ficou provado salvo qualquer infelicidade, que Peter Sagan mais ano menos ano vencerá esta corrida.

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