quarta-feira, 24 de julho de 2013

Voltar a 98, Pantani e Ullrich

Pódio da Volta a França de 98
Marco Pantani e Jan Ullrich, vencedores das Voltas a França de 1997 e 98, têm hoje (novamente) os seus nomes associados a doping, após uma comissão de inquérito do Senado francês se debruçar sobre o doping no desporto e a eficiência da luta anti-doping. No desporto, não apenas no ciclismo. O que será a comunicação social capaz de nos contar de novo?

Nada. Com necessidade de escrever algo que possa ser publicado nos sites e jornais para os quais trabalham, muitos jornalistas já escreveram sobre as amostras dos controlos anti-doping de 1998 e 99, um tema sobre o qual poderiam escrever algo interessante mas não o farão, ou não o sabem fazer. A
cabarão por publicar apenas o que leram nas "letras gordas" da comunicação social estrangeira, alterado pelas limitações na língua inglesa e francesa, como se viu nas más traduções da última entrevista dada por Lance Armstrong. Não todos, claro, mas a triste maioria.

Quem ficará surpreendido ao ler hoje que Marco Pantani e Jan Ullrich venceram a Volta a França dopados, "notícias" tantas vezes dadas e recordadas?

Seria interessante que algum jornalista nos pudesse contar um pouco mais sobre o ciclismo que se praticava em 1998 e como se encontrava o doping e a luta anti-doping na altura. Noutras modalidades, estava em 98 como está hoje. Ou melhor, ainda está hoje como estava em 98.

Contexto 1998

O livro A Morte de Marco Pantani, brilhantemente escrito por Matt Rendell e publicado em 2006, ajuda-nos a relembrar como se via a luta anti-doping antes do caso Lance Armstrong, das primeiras deteções de CERA em 2008 e da Operação Puerto. O livro não foi escrito para defender ou acusar Pantani mas sim para nos retratar a vida e a morte do Pirata, depois de entrevistadas muitas pessoas próximas do ciclista e de realizado um grande trabalho de investigação.

Entre 1998 e 2000 deram-se acontecimentos marcantes na história da luta anti-doping, desde o Caso Festina às primeiras deteções de EPO, passando pela expulsão de Pantani do Giro 99.

Durante a década de 90 a EPO foi-se instalando no pelotão até chegar a um uso quase generalizado. Não eram necessários grandes esquemas para fugir aos controlos anti-doping, pois a EPO não era detetada, tal como a CERA não era até junho de 2008. Apenas em 2000 foi aprovado o primeiro teste que detetava EPO e o primeiro positivo data de 2001, tendo como protagonista o ciclista Bo Hamburguer.

Antes de mais, é importante compreender como funciona a EPO. A EPO não é a poção de Asterix nem os espinafres de Popeye que permitem a um sedentário ganhar a Volta França ou qualquer outra prova de ciclismo. A EPO tem como função regular a produção de glóbulos vermelhos, responsáveis pelo transporte de oxigénio até aos tecidos. No ciclismo, atletismo e noutros desportos de fundo a oxigenação é um fator determinante no rendimento dos desportistas. Quanto mais glóbulos vermelhos, melhor funciona o processo de oxigenação, especialmente importante para a recuperação nas provas por etapas, mas também para a recuperação em períodos de maiores cargas de treino.

Uma vez que a EPO não era detetada nos controlos anti-doping mas era sabido que muitos ciclistas faziam uso, em 1997 a UCI estabeleceu em 50% o limite de hematócrito aceite. O hematócrito é e percentagem de volume de sangue ocupado por glóbulos vermelhos e, porque a EPO aumenta a produção de glóbulos vermelhos, aumenta consequentemente o hematócrito. A UCI considerou que os 50% apenas poderiam ser ultrapassados através do uso de produtos proibidos e quem o ultrapassasse era suspenso por duas semanas. Mas porque não se podia acusar o ciclista de se dopar sem acusar positivo, oficialmente a suspensão era por "motivos de saúde". Foi o que aconteceu a Marco Pantani na Volta a Itália de 1999. Pantani tinha vencido quatro etapas, tinha a camisola rosa, preparava-se para vencer o seu segundo Giro consecutivo e seria a sua terceira grande volta, pois também havia vencido o Tour de 98. Antes da penúltima etapa foi informado de que lhe tinha sido detetado um hematócrito de 52% e por isso seria suspenso por duas semanas, não alinhando nessa etapa.

O trabalho dos médicos não era ludibriar os controlos mas sim garantir que os 50% não eram ultrapassados. Até 1997 muitos ciclistas andavam na casa dos 60%, como Riis e o próprio Pantani. No Milano-Torino 1995 sofreu uma aparatosa queda e teve que ser submetido a uma cirurgia. Nas análises realizadas nessa altura registou um hematócrito de 60,1%.

Hoje é fácil explicar e compreender tudo isto, mas em 1999 a suspensão de Pantani apanhou quase toda a gente de surpresa. Em A Morte de Marco Pantani, o proprietário da Mercatone Uno chega a dizer que Pantani poderia não ter caído em desgraça (morreu de overdose de cocaína) se não tivesse sido apanhado no anti-doping. Enquanto hoje se suspeita de todos (principalmente depois de Armstrong confessar que passou sem problemas centenas de controlos em que estava dopado), na altura muita gente acreditou que se tratava de um erro e o Pirata estava limpo (mesmo depois do Caso Festina). Em 2000 venceria duas etapas no Tour

Não pretendo com todo este paleio retratar Pantani como o criador da dopagen ou o maior prevaricador de todos os tempos. Pantani é uma enorme e marcante figura da história do ciclismo e tem sobre si um espetacular trabalho que me permite ser mais preciso e correto a falar sobre ele do que outros desportistas, mas não foi o primeiro ciclista dopado e muitos dos seus colegas de pelotão já confessaram que também usavam EPO na década de 90. Foram os casos de Bjarne Riis, Erik Zabel, Bobby Julich e muitos outros.

Inquérito do Senado francês

O Senado francês abriu uma comissão de inquérito sobre o doping no desporto e a eficácia da luta anti-doping. Não é uma questão apenas de ciclismo e das Voltas a França de 98 e 99. A re-análise feita em 2004 às amostras de 98 e 99 não serve para perseguir ciclistas mas sim para evidenciar um dos maiores problemas do desporto: a luta anti-doping não tem sido eficaz ao longo dos anos. Se o é agora, só daqui a uns anos saberemos. Para já, resta a certeza de que o ciclismo tem o mais avançado programa de combate ao doping.

Durante o período em que se sabia da existência da EPO mas esta era indetetável, estabeleceu-se a já referida norma dos 50%. Seguiu-se o problema da CERA (EPO de 4ª geração), que em 2007 já era utilizada por ciclistas mas só em meados de 2008 passou a ser detetada (Stefan Schumacher foi 3º nos Mundiais 2007 e Riccò 2º no Giro 2008 utilizando CERA). E depois da CERA se tornar detetável permaneceu o problema das autotransfusões como o maior conhecido. Ainda hoje as autotranfsusões não são detetáveis através de uma amostra mas o Passaporte Biológico (PB) foi implementado precisamente para, através da comparação de amostras recolhidas ao longo do tempo, permitir que se descubram indícios desta prática. Claro que a modalidade que criou o PB foi o ciclismo e poucas o implementarem. Por exemplo a FIFA já implementou uma espécie de Passaporte Biológico em algumas competições e pretende que todos os jogadores presentes no Mundial do próximo ano tenham os seus perfis biológicos, mas a eficácia desta medida é altamente questionável. O PB assenta o seu funcionamento em comparações efetuadas ao longo do tempo. Quanto mais amostras se recolherem de um atleta, mais eficiente será o PB e é igualmente fundamental que as amostras seja consistentes ao longo de vários meses/anos, não apenas de algumas semanas. À semelhança da EPO, as transfusões servem para facilitar a recuperação e podem representar um grande benefício na recuperação, não apenas entre dois dias de competição, mas também no período de preparação pré-competição

Inicialmente a publicação dos resultados desta comissão de inquérito estava agendada para 18 de julho, data da subida ao Alpe d'Huez, mas foi adiada para não coincidir com a Volta a França.

Muitos jornalistas esperavam ansiosamente o dia de hoje e o momento em que fossem pronunciados os nomes dos culpados, uma expetativa que aumentou quando ontem o Le Monde publicou que Pantani, Ullrich e Julich (os três primeiros da Volta a França de 98) teriam sido apanhado nas análises feitas em 2004. Em vez disso, o Senado francês optou por deixar bem claro que o principal não eram os nomes e por isso não haveria a tão aguardada lista.

Ainda que os nomes não estejam presentes no relatório da investigação, cruzando os resultados dos controlos (publicados sem nomes) com outras informações é possível chegar a muitos ciclistas. A maioria deles, ou porque ao longo da sua carreira tiveram positivos, ou porque já tinham confessado, ou pelas equipas que passaram, não é novidade. São os casos de Pantani, Ullrich, Julich, Zabel, Hamburguer, Marcos Serrano, Mario Cipollini, Eddy Mazzoleni, entre outros.

Conclusão

Esses serão alguns dos nomes mais falados do dia, talvez dos próximos dias, mas o assunto acabará por ser esquecido. O Senado conseguiu amortecer parte do impacto e não haverá suspensões nem resultados anulados. Ainda assim, é pena que o tema seja esquecido, porque algo deveria ficar na cabeça de todos os agentes desportivos: a luta anti-doping tem tido muitos problemas. Os vários organismos internacionais deveriam juntar esforços para combater o problema, mas não o farão. Se só há positivos no ciclismo, fazemos de conta que só existe doping no ciclismo.

Relativamente a estes ciclistas, são culpados por se doparem mas também vítimas de uma época em que era obrigatório recorrer ao doping para ser competitivo. Naquela época tinham que escolher entre correr limpos e estarem afastados das vitórias ou doparem-se como os seus adversários para lhes poder fazer frente. Estes fizeram a escolha que se sabe. Outros nunca saíram do anonimato.

7 comentários:

  1. Grande escrita! Parabéns.

    Então, vou fazer uma pergunta:

    Eu não quero defender Armstrong...então mas se todos usavam a mesma coisa (Jonathan_Vaughters disse que se analisassem todos os corredores 3 dias em antes do Tour de 98, toda a gente acusava EPO) porque é que só se castiga o norte-americano? E já houve outras lendas dos anos 70 e 80 a admitir o uso de doping.

    Está nessa lista, um recordista de camisolas verdes do Tour, não está? Porque se não tira esses titulos a ele?


    Cheira-me a ajuste de contas com Armstrong, só isso.

    Ridículo também...o desfilar de "alguns" camisolas amarelas num descapotável no ultimo dia do Tour...

    Cpts

    ResponderEliminar
  2. Muito boa gente precisava de ler isto para abrir um bocado os olhos! Eu tinhas bastantes noções disto mas este artigo está sublime. Excelente escrita!

    Cumprimentos

    ResponderEliminar
  3. Rui está optimo e só te falta 1 alerta... O doping não é só batota é um perigo para a saúde dos atletas...

    Ricco quase morreu a injectar uma auto-transfusão que guardou num frigorifico lá de casa...

    e a EPO que a sua origem remonta ao tratamento do cancro pode originar desiquilíbrios no equilibrio que deve ser a corrente sanguinea.

    Mais que uma luta pela verdade desportiva, a luta anti-doping deve ser uma defesa dos atletas!

    ResponderEliminar
  4. Não podemos afirmar, de forma abrangente, que o doping é perigoso para a saúde.

    Em muitos dos xaropes para bebés existe uma substancia com o nome de pseudo-efederina que é, ou pelo menus já foi, considerada como uma substancia dopante.

    Andar com o hematócrito a 38% não é nada saudável e valores mais baixos podem mesmo ser considerados como anemia.

    Ingerir qualquer alimento que não esteja bem acondicionado no frigorifico lá de casa também pode levar qualquer um ao hospital...

    Alexandre Oliveira

    ResponderEliminar
  5. Obrigado pelos comentários!

    André, o Armstrong perdeu os seus títulos num processo contra o mesmo. Neste caso não se trata de um processo contra ninguém mas sim de um inquérito sobre a (in)eficácia da luta anti-doping no desporto. Além disso, só é permitido regredir até oito anos para retirar resultados e já passaram 15. O caso do Armstrong foi uma exceção porque considerou-se provado que Armstrong tinha mentido em tribunal antes de fazer os 8 anos. Digo "considerou-se provado" pois quando lhe retiraram os títulos ainda não havia a sua confissão.

    Rui, a melhor forma de fazer com que "isto" seja lido é partilhando. Confio em vocês eheh

    Luís Caldas, como diz o Alexandre Oliveira, o doping não é assim tão prejudicial para a saúde. Claro que é altamente perigoso um tipo que tira sangue, guarda no congelador e passado dois meses faz uma autotransfusão. Ou um tipo que se enche de anfetaminas Isto jamais poderá ser permitido.
    Porém, temos o caso da NBA em que existem médicos de topo a acompanhar os atletas em tudo aquilo que fazem, ou os bodybuilders (Arnold Schwarzenegger tem 65 anos e está vivo). O doping assistido por bons profissionais e em boas condições é relativamente seguro e até se pode considerar benéfico em casos como o referido pelo Alexandre. Um ciclista que vai para o Tour com um hematócrito de 45% vai "mais saudável" que um de 38% (ceteris paribus). O doping é proibido fundamentalmente porque ninguém quer ver uma competição de ratos de laboratório. Doutor X vs Doutor Y.

    Cumprimentos

    ResponderEliminar
  6. Rui tendo em conta que a saúde é a área onde trabalho todos os dias e tendo falado com alguns médicos ligados a luta anti-doping acredita que o risco para a saúde é bem real. Primeiro porque como tu dizes é relativamente seguro, segundo por cada exemplo que tu deste consigo lembrar-me de vários que morreram ou tiveram problemas de saúde "repentinos".

    O ciclista que tiver 38% de hematócrito no inicio de um Tour, estará muito mal preparado para a prova e duvido que aguente sequer a velocidade do pelotão, na primeira subida ficará para trás. Aliás a maioria deles deve andar com valores perto dos 48% frutos dos estágios em altitude e do esforço. Porém, o risco de enfarte é muito maior em alguém com 45% do que em alguém com 38%.

    ResponderEliminar
  7. Eu acredito que este ano o pelotão esteja praticamente 100% limpo. 100% nunca esta porque há sempre um atrasado sem medo de correr riscos.
    Os controlos estão muito apertados de tal forma que se é possível algum ganho, não é muito significativo e como tal não vale a pena sequer arriscar.
    Não se pode subestimar o impacto negativo que o doping tem nos corredores a nível mental. O stress prejudica os muito e acaba por anular os ganhos

    ResponderEliminar

Share