sábado, 9 de novembro de 2013

Mais barreiras, menos equipas, menos ciclistas, menores salários

Está frio para Samuel Sánchez e o ciclismo em geral. E a Euskaltel-Euskadi já congelou.
Há cinco meses, em junho, (d)escrevi "O fracasso do World Tour". Entretanto tivemos alguns novos episódios. A Trek confirmou-se como substituta da Radioshack e permitiu a continuidade da equipa norte-americana, mas a Vacansoleil não conseguiu a sua salvação, Alonso surgiu como possível salvador da Euskaltel mas acabou por não se concretizar e Tinkoff tentou comprar a Cannondale ou a Euskaltel mas não houve acordo. O World Tour continuará a ter 18 equipas porque a Europcar decidiu subir de escalão, mas entre as continentais profissionais desaparecem a Sojasun, Champion System e Crelan.

Entre as duas principais categorias do ciclismo serão apenas 35 equipas em 2014, menos 3 que em 2013 (-8%) e menos 12 que em 2007 (-25%), ano em que foi registado o maior número de equipas Pro Tour+Continentais Profissionais.

No artigo já referido, de 5 de junho, apontei como sendo um dos principais problemas do sistema atual a obrigatoriedade de muitas equipas participarem em muitas provas. Assim os organizadores World Tour têm menos convites disponíveis do que gostariam, as equipas World Tour não têm condições para participar em todas as provas que gostariam porque são obrigadas a estar em provas sem interesses comerciais para os seus patrocinadores, e os organizadores fora do WT não podem ter tantas equipas de elite como gostariam porque ao mesmo tempo estas estão obrigadas a participar em provas que não lhes interessa.

A solução apontada para essa parte do problema passava pela redução do número de equipas World Tour, de modo a permitir que mais equipas continentais profissionais tivessem lugar nas principais provas dos seus países, e reduzir o número de dias de competição World Tour, de modo a que essas equipas pudessem participar em mais provas dos seus países e dos mercados que interessam aos seus patrocinadores.

Todo o diagnóstico que gostaria de fazer e as possíveis solução que gostaria de apresentar não cabem num artigo, mas uma parte já foi feito nestes três anos de Carro Vassoura, em que parte dos problemas continuam intocáveis. Outras crónicas sobre temas relacionados podem ser encontradas no menu do lado esquerdo, nas categorias Organização do ciclismo, Marketing e Gestão do ciclismo ou Ciclismo explicado. A crónica de hoje será focada nos ciclistas e nos seus salários a nível internacional.


Uma comparação com 2007 pecaria por exagerada. Tomemos como ano de referência o de 2011. Entretanto houve uma redução de 6 equipas (-15%) mas não foi apenas isso que se perdeu. Foi o número de equipas interessadas em ser World Tour. Para 2011 havia 23 candidatas a World Tour. Além das 18 que foram selecionadas, havia o projeto australiano da Pegasus (que acabou por morrer e em 2012 sim surgiria a GreenEdge como primeira equipa World Tour australiana), a Geox, a Cofidis, a Europcar e a FDJ, que acabariam por ser continentais profissionais.

Ainda assim, com tantas equipas interessadas em ser WT, não poderiam poupar orçamentos. O que podiam gastar, gastavam para garantir o melhor plantel possível. Em 2014 tal não acontece. As dezoito interessadas em ser WT podem poupar porque a sua entrada no WT não depende da qualidade do plantel. Daqui em diante, considere-se "um ano normal", um como 2011.

Lei da oferta e da procura

A lei da oferta e da procura é um dos princípios básicos da economia, capaz de ser compreendido por qualquer pessoa. Estabelece a relação entre a procura e a oferta de acordo com a variação de preço. Existe um preço de equilíbrio, no qual a procura e a oferta se encontram. Para um preço inferior ao de equilíbrio (baixo preço), diminuirá o interesse dos produtores em produzir (menos oferta) e aumenta a procura, existindo um excesso do lado da oferta. Para um preço alto, haverá menos procura, originando um excesso de oferta.

Os ciclistas podem classificar-se em três grupos. Para os melhores do mundo, os que oferecem garantias, existe uma procura bastante superior à oferta, o que leva as equipas as apresentarem salários cada vez mais elevados. Para os gregários, pelo contrário, existe uma oferta muito superior à procura, o que permite às equipas terem gregários cada vez mais baratos. E o que poupam nos ciclistas da base da pirâmide, serve para aumentar os salários dos chefes-de-fila.

Topo da Pirâmide

Se em 2007 apenas havia dez ciclistas com vencimento superior a um milhão de euros por ano e três sobre a fasquia dos dois milhões, atualmente haverá mais de uma dezena a receber sobre os dois milhões de euros. Não existe uma estatística ou uma fonte de informação oficial sobre os salários dos ciclistas, mas de acordo com o que se vai sabendo quando alguns ciclistas mudam de equipa ou renovam os seus vínculos, é possível estimar esses valores. Froome, Nibali, Wiggins, Cavendish, Gilbert, Cancellara, Contador, Valverde, Rodríguez e Boonen são exemplos de ciclistas que estão nesse patamar.

As equipas querem garantias de sucesso e estão dispostas a pagar bem aos homens que oferecem maiores garantias. Chegar a estes valores é algo que poucas equipas podem. Existe então o grupo das equipas milionárias, com Sky, Omega Pharma, BMC, Astana e Katusha a poderem ter vários ciclistas muito bem pagos e depois alguma equipas que se podem dar ao luxo de ter uma super-estrela, como a Movistar ou a Trek.

Os salários dos ciclistas do topo da pirâmide têm vindo a aumentar. Em parte, porque cada vez as equipas necessitam de gastar menos com os seus gregários, mas sobretudo devido à concorrência que há entre estas equipas de fundos quase ilimitados. Se uma oferece 2 milhões, outra oferece 2,1.

(Note-se que para esta classificação não interessa o palmarés atual do ciclista mas sim aquele que tinha quando assinou o último contrato. Em 2013 ciclistas como Gilbert ou Contador desvalorizaram, mas os seus contratos já estavam feitos e os seus salários mantêm-se. Por outro lado, Rui Costa valorizou muito depois do título mundial mas o seu contrato para 2014 já estava assinado.)

Meio da Pirâmide

Existe um segundo nível de ciclistas que não oferecem tantas garantias como os supracitados mas que costumam ter um rendimento alto, frequentemente estão no top-10 de provas importantes e que podem, num dia de particular inspiração, conquistar uma grande vitória. Para esses, a situação atual não é muito diferente do que seria num ano normal.

As equipas sabem que não podem ter apenas um plano A e por isso estão dispostas a pagar bem para ter um ou vários planos B, ou um ciclista que pode ajudar um chefe-de-fila numa fase já mais adiantada da corrida. Ainda assim, não estão dispostas a loucuras por estes ciclistas.

Base da Pirâmide

E por fim existe a base da pirâmide, onde existe uma imensidão de ciclistas. Os que dificilmente vencerão algo, os que apenas trabalham nos primeiros quilómetros, os que fazem o "trabalho invisível" e os amigos do chefe-de-fila pertencem à base da pirâmide. Estão lá, mas cada vez têm menos poder de negociação, porque se exigirem melhores condições, saem e dão lugar a outro que aceite correr por condições inferiores.

Em período de crise, esta situação agrava-se, e é algo que podemos ver em Portugal desde há alguns anos. Não existindo equipas para todos os que pretendem ser ciclistas, surge alguém disposto a correr por menos e assim se entra num ciclo de redução de salários.

O ciclismo português é, infelizmente, um bom exemplo do que acontecerá no World Tour se não se inverter o ciclo e começarem a surgir novas equipas. Claro está que no WT e nas equipas continentais profissionais é muito mais difícil que os salários mínimos sejam desrespeitados.

Sabemos também que essa redução de salários começa pela base da pirâmide mas vai subindo e afetando ciclistas de maior gabarito. Entre os que estão sem equipa para 2014 estão Igor Antón, Samuel Sánchez, Luis León Sánchez e Chris Horner. Apesar de todos eles terem conquistas importantes no passado, existem grandes dúvidas quanto ao seu possível rendimento em 2014. Estão por isso entre a segunda e a terceira partes da pirâmide.

Consequências

O desaparecimento de equipas não afeta apenas o número de ciclistas empregados e desempregados. Afeta também muitos dos que continuam e vêm os seus salários reduzidos. E afeta a qualidade do pelotão, pois o fator qualidade perde importância para o fator preço.

O ciclismo, como Portugal (o país), precisa de novos investidores. Empresas com dinheiro que venham criar novos postos de trabalho, novas equipas.

Muitos têm intenção mas falta-lhes as condições para colocar na estrada uma equipa. Falta-lhes o dinheiro. Então não se pode colocar barreiras àqueles que têm vontade e condições financeiras para o fazer. Oleg Tinkoff e Fernando Alonso já mostraram o interesse de ter as suas equipas na estrada em 2015. E a chave aqui passa por suas. Ter autonomia para fazer as escolhas, o que Tinkoff não podia fazer na equipa de Riis e Alonso não poderia fazer com a compra da estrutura da Euskaltel-Euskadi.

Programa UCI 2015-2020

A UCI está a preparar um conjunto de medidas a introduzir a partir de 2015 e até 2020. Daquilo que para já se sabe, destacam-se:

- Redução do número de equipas World Tour de 18 para 16;
- Equipas de 22 ciclistas;
- Redução do número de dias de competição World Tour para 120 dias, que se chamará 1ª Divisão;
- Criar uma 2ª Divisão de apenas oito equipas e apenas essas poderão concorrer aos convites para participarem nas provas de 1ª Divisão;
- Todos os anos haverá subidas e descidas entre a 1ª e a 2ª Divisão;
- A classificação da 2ª Divisão será estabelecida com base em 50 dias de competição;
- Novas equipas não poderão ir para a primeira divisão sem passar pela 2ª Divisão.

Reduzir o número de equipas de 1º Divisão para 16 seria bastante benéfico, se o número de ciclistas por equipa não se reduzisse de 30 para 22. As equipas ganham liberdade na hora de escolher quais as provas em que participam mas têm que participar em menos. Oito ciclistas é exatamente o efetivo de uma equipa por prova.

Para mais, para chegar à elite Tinkoff, Alonso ou qualquer empresa terão que passar pela segunda divisão. Não é impeditivo de participarem nas grandes provas, mas não faz sentido obrigar estas equipas a participarem nas provas de segunda divisão, como a Volta ao Qatar, Omã e Dubai (a ser criada em 2014).

Por último, limitando a 2ª Divisão a oito equipas, apenas 24 formações poderão aspirar a disputar as grandes voltas: as dezasseis da primeira divisão e as oito da segunda. Ficam completamente arredadas de Tour, Giro e Vuelta todas as demais. Com isto, equipas como Caja Rural, Androni, a Bardiani tornam-se inviáveis. Não apenas estas equipas já existentes como outras que poderia surgir nos mesmos moldes, focadas no mercado nacional e sem contar com capacidade para um orçamento que lhes permita estar entre as 24 melhores.

Conclusão

O novo esquema delineado pela UCI para o ciclismo internacional tem alguns aspetos positivos, mas acaba por não atacar os principais problemas e por criar alguns novos.

O ciclismo precisa de reduzir barreiras ao aparecimento de novas equipas. Mas em vez disso, a UCI prepara-se para criar mais barreiras, que levarão a uma redução do número de equipas nos dois principais escalões, empregando menos ciclistas e, pelos motivos já apresentados, baixando os salários de grande parte deles.

9 comentários:

  1. Envia isso para a UCI pode ser que acordem

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    1. Obrigado, mas eles conseguem ver os problemas e soluções aqui apontados. Simplesmente têm uma opinião diferente ou prioridades diferentes (€ para a UCI):

      Cumprimentos!

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  2. Não tenho certeza absoluta se é ou não verdade, mas li que apesar da redução para 16 equipas no WT , os organizadores das Grandes voltas só vão dispor de 4 wild cards na mesma, ou seja, não haverá mais lugares nas grandes voltas, inclusive serão menos duas equipas a participar!

    Sinceramente não sou nada a favor de quase nenhuma das medidas, gosto da redução do numero de equipas WT ( mas acho que devia ser mais dastrico, 14 ou 12) e do facto de haver uma "segunda divisão", que a meu ver era algo que já devia haver, mas não nestes termos nem com este nome! tudo o resto só vai "Deitar" o ciclismo a baixo a meu ver...mas como não sou eu que mando na UCI...só posso discutir nos foruns :)

    Cumprimentos

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    1. Exato. As grandes voltas continuarão com apenas 4 convites. Esse é um problema que continuará.

      Cumprimentos!

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    2. Infelizmente, assim o ciclismo vai-se afunilar por completo sobre si mesmo, e sinceramente isto a meu ver vai contribuir para tudo menos para expandir o ciclismo. Mas na UCI e como me disse um amigo meu que tem lá entrada, "nota-se muito a politica" e os euros!

      Pequenas equipas "Continentais" da França, Itália e Espanha deixarão de fazer todo e qualquer sentido, e deixará de haver a esperança para paises como Portugal ou outros, que face a uma melhoria das condições (era bom) e uma boa época de uma sua determinada equipa a mesma possa ser chamada a uma grande a favor de colocar o país com interesse na mesma, como poderia acontecer com Portugal e a nossa vizinha Vuelta, ou como aconteceu com a Colombia, que com o devido respeito e a muita qualidade que tem, acabou por ser chamada ao Giro mais para que a nação sul americana se virasse para a corsa rosa.

      Eu aprovo a redução do WT, acho até que deveria ser mais severa, e aprovo ainda mais a criação da segunda divisão (que acho que por razões de markting não se devia chamar assim) mas a meu ver, as organizações deveriam sempre manter pelo menos 2 convites, e assim sim, "Misturava-se" a qualidade e os interesses comercias, podendo então participar numa grande volta as equipas WT ( que a meu ver deviam ser umas 14) as restantes 6 seriam as da "segunda divisão" que por Ranking se apuravam, e o organizador entregava os restante dois lugares ás Continentais profissionais que quisesse.

      Cumprimentos

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  3. Estamos num período de "ressaca Armstrong" onde muitas equipas desistem, e não investem porque o ciclismo neste momento tem pouca credibilidade. Já agora, andam a levar o ciclismo para a China e EUA etc... Só ficam a perder. O ciclismo é na Europa. Não entendo num desporto que é tão exigente andam ciclistas no meio da temporada a correr a 1 hora da manha (Europa), nos EUA por exemplo. O ciclismo está para EUA como o beisebol está para Europa. Qualquer dia na Espanha só correm a Vuelta e depois venham dizer que não há equipas Espanholas no world Tour.

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    1. Que o ciclismo chegue à China e aos EUA é bom. São novos mercados que podem atrair novos patrocinadores. O problema é que o ciclismo saia de onde já estava instalado. Uma coisa não tem que levar a outra.

      Cumprimentos!

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  4. Com o mercado de transferências português tão agitado será que não vai haver uma crónica em relação às nossas equipas?

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