sábado, 11 de janeiro de 2014

Tour Down Under, um caso de sucesso da Austrália

O Tour Down Under disputa-se em janeiro e em horário de madrugada na Europa, passando por isso despercebido para muitos dos adeptos europeus de ciclismo. Porém, em poucos anos tornou-se uma prova muito sólida que leva à Austrália um enorme festival de ciclismo. Organizado pelo governo do estado de South Australia, em 2013 gerou um impacto para a economia da região estimado em 43,6 milhões de dólares australianos. Representa um exemplo de organização e inovação como todos os adeptos gostariam de ter no seu país.


Contexto

Down Under é um termo utilizado para referir à Austrália mas o Tour Down Under não sai da região de Adelaide, quinta maior cidade da Austrália e capital de South Australia (em português, Austrália Meridional), um dos seis Estados australianos (aos quais se juntam vários territórios). Aliás, a organização está a cargo do departamento de Turismo do Governo de South Austrália.

A popularidade do ciclismo tem crescido na Austrália nos últimos anos e é hoje bem diferente do que era em 1999, quando se disputou a primeira edição do Tour Down Under (TDU). Antes disso, autralianos apenas tinham vencido 4 etapas no Tour e 1 no Giro. Depois venceram mais 20 no Tour, mais 20 no Giro e 5 na Vuelta. Tinham 12 dias de camisola amarela no Tour e depois de 99 conquistaram mais 20. Conquistaram também uma Volta a França (Evans), um título Mundial (Evans), Paris-Roubaix (O'Grady), Sanremo (Goss e Gerrans), 4 camisolas verdes do Tour (3x McEwen+Cooke), 3 títulos mundiais de contrarrelógio (Rogers), 1 sub-23 de fundo e 3 sub-23 de contrarrelógio.

Apesar dos muitos títulos que os australianos já tinham conquistado na pista, também aí a evolução foi notória. Nos últimos 3 anos conquistaram 27 medalhas, tantas como entre 1994 e 99 (seis edições). 16 Ouros nos últimos três anos, tantos como entre 1975 e 1999.

Claro que não foi o TDU que levou os australianos a tanto sucesso, mas em 1999 nada levaria a crer que o país dos cangurus se tornaria uma potência no ciclismo. Fruto do investimento australiano no ciclismo e do retorno obtido desse investimento, entre 2010 e 2012 o número de federados na Cycling Australia (federação australiana) aumentou 17%. O ciclismo (estrada e montanha) é a terceira atividade física mais praticada por homens australianos (caminhada em primeiro lugar, musculação/ginásio em segundo) e a quinta por mulheres australianas (natação em terceiro lugar, corrida em quarto).
(Dados do instituto de estatística australiano, Australian Bureau of Statistics)


1999-2007

Nos seus primeiros anos o Tour Down Under recebia apenas 9 ou 10 equipas europeias e mais 2 ou 3 seleções australianas, totalizando um pelotão de 12 formações. Essas seleções australianas tinham como objetivo permitir a participação de jovens sub-23 que corriam por equipas amadoras, em equipas europeias que não estavam presentes ou em equipas que estavam presentes mas não tinham selecionado estes jovens. Por exemplo, em 2002 a Mapei deixou de fora da sua equipa Michael Rogers (22 anos na altura) e Allan Davis (21) e estes participaram em representação de uma das equipas australianas, que tinham empresas interessadas em patrocina-las por seis dias em troca do natural retorno publicitário.

Nessa altura a vitória na prova era sobretudo disputada por australianos. Corrida lá longe, na Austrália, o destaque da mesma na Europa era pouco apetecível e os australianos estavam em melhor forma, pois estavam nos seus meses de verão enquanto os europeus enfrentavam o inverno nos seus treinos. Com poucas equipas e poucos corredores verdadeiramente interessados em disputar a vitória, era frequente que um grupo de fugitivos ganhasse uma grande vantagem ao pelotão e reduzisse desde logo o lote de homens com hipóteses de vencer a prova. Não havia grandes subidas mas pequenas colinas eram o suficiente para mostrar quem estava realmente interessado e em boa forma e quem não estava.

Quase todo o Estado de South Australia é desértico e as poucas montanhas existentes estão no meio de nenhures. A maior dificuldade introduzida na prova foi a Old Willunga Hill, com 3 quilómetros de extensão a 7,6% de inclinação média, enfrentada pela primeira vez em 2002. Os ciclistas subiam uma vez e tinham mais 19 quilómetros para percorrer até ao final, na cidade de Willunga. Foi assim a etapa rainha até 2008.


2008-2011

Satisfeitos com as primeiras nove edições da prova, o Governo de South Austrália decidiu dar o passo seguinte e tornar o Tour Down Under numa prova World Tour. A UCI agradeceu o interesse, fazendo desta a primeira prova da máxima categoria fora da Europa, o que representava um marco importante na expansão do ciclismo enquanto desporto global.

Sendo World Tour, o número de equipas presentes tinha que aumentar de 12 (96 ciclistas) para, pelo menos, 18. Mas a federação australiana e o governo não abdicaram de ter uma seleção. Nela passaram a alinhar os melhores australianos que corriam for equipas fora do World Tour (como Allan Davis ou Cooke) e os mais promissores jovens (como Richie Porte, Michael Matthews ou Rohan Dennis) que assim poderiam disputar uma prova com os melhores do mundo. O número de ciclistas por equipa teve que diminuir de 8 para 7 para que o pelotão de 96 ciclistas aumentasse apenas para 133, mas continuou a existir uma equipa de australianos com o apoio da Universidade de South Australia (UniSA), parceira do Tour Down Under desde a primeira edição. Em 2014 também estará presente a Drapac, primeira equipa continental profissional australiana.

A prova foi dominada do princípio ao fim pelos sprinters, com Andre Greipel a vencer quatro etapas e a classificação geral. Os organizadores não ficaram satisfeitos com a previsibilidade que o TDU estava a ter. Faltavam oportunidades para contrariar os sprinters e uma passagem na colina de Willunga não era suficiente. Os sprinters sofriam mas perdiam pouco terreno e até à meta recuperavam. Para 2009 seriam duas passagens.

A lista de participantes melhorou. Além dos sprinters em busca de vitórias, estavam presentes alguns ciclistas que não tinham hipóteses contra os melhores velocistas mas acreditavam que, com uma etapa que eliminasse os homens mais rápidos, poderiam ter uma palavra a dizer. A seleção foi feita e a vitória foi para um desses homens rápidos que passam melhor as colinas, Allan Davis. Já em 2010 Luis León Sánchez conseguiu quebrar o pelotão no dia da Willunga Hill mas a vitória geral foi para Andre Greipel, beneficiando das bonificações acumuladas e dos cortes nas etapas planas.



2012-presente

O pelotão era cada vez melhor, contava cada vez com mais sprinters de topo mas não só. Algumas estrelas pretendiam aproveitar o sol australiano para ganhar quilómetros. Por vezes o calor é demasiado nesta altura do ano na Austrália mas ainda assim há muita gente que o prefere ao inverno do centro da Europa. Quem experimentava a prova dificilmente abdicava da presença nos anos seguintes.

Apesar da contínua melhoria no pelotão, a organização nunca baixou os braços e continuou em busca da prova perfeita. Faltava algo e a solução foi encontrada com um final na colina de Willunga. Em vez da etapa terminar na cidade, terminaria no alto. Assim conseguiram atrair craques de outras especialidades que desde então têm marcado presença em maior número.

A edição que começa dentro de poucos dias será a mais balanceada. Duas etapas à medida de todos os sprinters (4ª e 6ª), uma etapa em que outros homens se poderão intrometer no sprint (2ª), uma outra com espaço para ataques e para os sprinters em melhor forma (1ª), uma para a primeira seleção dos candidatos à geral (3ª) e a etapa rainha com chegada à Old Willunga Hill no penúltimo dia.

A isto junta-se o Critério Down Under, criado em 2006 e disputado dois dias antes do arranque da prova por etapas. São 50 quilómetros num circuito em Adelaide onde os sprinters lutam pelo primeiro triunfo da temporada. O critério não pertence ao World Tour mas quem o disputa são os ciclistas que alinharão no Tour Down Under.


Os obstáculos...

Poderá parecer que todos os caminhos levam à Austrália, que o caminho foi fácil, mas a prova tinha e tem contra si muitos obstáculos que precisaram ser superados.

Sendo duas semanas antes da Estrela de Bessèges e da Volta ao Dubai, três antes da Challenge de Maiorca, Volta Mediterrânica e Qatar, e quatro antes do Algarve, Andaluzia e Omã, o Tour Down Under necessita de fortes argumentos para convencer os ciclistas a anteciparem o seu começo de temporada.

Pelo mediatismo de uma prova World Tour? O Tour Down Under nunca teve um destaque relevante na Europa. O seu horário (quando as etapas se disputam é madrugada na Europa) tornam a prova pouco ou nada apetecível para os canais europeus e os jornais cobrem a prova com um dia de atraso. Quando publicam sobre a primeira etapa, já a segunda terminou há várias horas.

Se o mau tempo do Centro e Norte da Europa é um problema que leva muitos ciclistas a preferirem passar o inverno junto ao Mediterrâneo, o calor da Austrália nesta altura do ano poderá ser outro grande problema, com temperaturas que chegam a ultrapassar os 40º graus.

Os obstáculos existem, mas uma equipa de sucesso tem que ter a capacidade de os ultrapassar e os organizadores do Tour Down Under têm conseguido.


....ultrapassados

Como no Sul da Europa e na península Arábica, as equipas ficam hospedadas em excelentes hotéis. Mas na Austrália as estradas são melhores do que no Sul da Europa e o público e a paisagem mais apetecível que no Qatar ou em Omã.

As etapas são curtas, entre os 130 e os 150 quilómetros, com exceção do último dia que não ultrapassa os 90. Além disso, apesar da classificação geral ser decidida em colinas, o grau de dificuldade da prova é muito baixo, totalmente adequado a esta fase da temporada.

Construiu-se assim uma excelente prova para os ciclistas, onde podem começar a acumular quilómetros com vista as provas de março e abril. Mas criou-se também um excelente evento para os adeptos e para os patrocinadores, sendo uma das provas que mais se destaca pela inovação mas, além de uma competição, um festival de ciclismo.


O Festival e envolvimento do público

Antes do Tour Down Under existe o já referido Critério Down Under, mas também uma prova feminina de 3 etapas. Em simultâneo, uma exposição de ciclismo de nove dias de duração, com entrada livre.

Como no Tour, na Vuelta, na Volta a Flandres, na Volta a Portugal e em muitas outras provas, também o Tour Down Under tem o seu desafio para cicloturistas e ciclistas de lazer. O percurso da quarta etapa recebe o Bupa Challenge Tour, com 155 quilómetros para quem se quiser colocar à prova, sendo o custo de inscrição de 145 dólares australianos. Existe ainda outros três locais de partida para percursos mais curtos, de 112, 75 ou 33 quilómetros. O percurso inclui uma contagem de montanha, mas também uma rota alternativa para quem preferir evitar esta dificuldade. E o circuito do último dia estará aberto para as crianças entre os 6 e os 12 anos de idade.

No penúltimo dia existe o jantar das estrelas, com a presença de Chris Hoy, Jens Voigt e Cadel Evans como cabeças-de-cartaz mas a promessa de mais atuais e ex-ciclistas. O bilhete para este evento custa 250 dólares.

Ainda que os preços pareçam demasiado elevados, não o são. O salário mínimo por semana na Austrália ultrapassa os 600 dólares australianos. Mostra de que os preços não são elevados foi a presença de mais de 7000 participantes na edição de 2013 do Bupa Challenge Tour.

Para promover a envolvência do público, existe a competição de cidade melhor vestida e transporte de Adelaide para todas as partidas e chegadas e entre estas, de ida e volta. Para atrair mais público, a organização do TDU ajuda na promoção dos vários pacotes de viagem que operadores turísticos oferecem por ocasião deste evento.

Assim se faz uma prova muito atrativa para o público, com 760 milhares de espetadores em 2013 e 40 mil espetadores que viajaram desde fora do Estado de South Australia para presenciar o Tour Down Under.

Valverde vence etapa rainha em 2012, com Tiago Machado 3º na tirada e na geral

Inovação

Se há público, certamente há empresas interessadas em publicidade. Mas de onde retirar receitas? Este é um dos aspetos em que o Tour Down Under mais se destaca.

Os patrocínios das diferentes camisolas de líderes são uma fonte de receita para todas as provas e também para esta. Mas para além destas, dos já referidos bilhetes para o Bupa Challenge Tour e o jantar das estrelas, muitas outras existem no Tour Down Under.

O naming. Hoje a prova chama-se Santos Tour Down Under. Não é Tour Down Under - Santos. Santos é a maior empresa de exploração de gás e petróleo da Austrália, é o principal patrocinador da prova e o seu nome vem antes de tudo. Já não é caso único, uma vez que nos EUA também existe o AMGEN Tour of California, mas desde o seu começo que o TDU aposta no naming como fonte de receita. No começo o principal patrocinador era a Jacob's Creek, marca de vinho australiana.

Caso mais exclusivo é o naming de etapas. O Santos Tour Down Under tem um patrocinador para cada uma das suas etapas. Começa com a San Remo Pasta Etapa 1 (marca de massas), segue-se a BikeExchance.com.au Etapa 2 (loja online de ciclismo), a Thomas Foods Etapa 3 (empresa agroalimentar), a Bupa Etapa 4 (serviços de saúde), a Pure Blonde Etapa 5 (marca de cerveja) e termina com a Be Safe Be Seen MAC Etapa 6 (campanha de consciencialização para a segurança nas estradas). Além dos nomes das cidades, a organização promove as etapas pelos nomes dos seus patrocinadores.

Existe ainda o Club Tour Down Under, com vários pacotes para os membros. O mais simples custa 360 dólares e oferece receção VIP no Critério Down Under ou na última etapa, enquanto o mais completo oferece receção VIP no critério, na etapa rainha e na etapa de consagração, entrada no jantar das estrelas, transporte para todas as etapas e outras experiências pelo valor total de 1750 dólares.

Muitas destas atividades são asseguradas por voluntários. Da mesma forma que Jogos Olímpicos e Campeonatos do Mundo de variadíssimas modalidades recorrem a programas de voluntários, também o Tour Down Under o faz, aproximando a comunidade da prova e os adeptos do ciclismo dos seus ídolos.

O TDU tem um cariz solidário através da parceria com o Cancer Council, associação de recolha de fundos para vítimas do cancro. E o merchandising é vendido nas partidas, chegadas e também na Expo Bike já anteriormente mencionada com a duração de nove dias.

Em 2014 o Tour Down Under terá transmissão em direto na Austrália de todas as etapas em canal aberto, as últimas duas com transmissão na íntegra. Terá também transmissão internacional, sobretudo na Oceania, Ásia e América, não estado este assunto ainda totalmente fechado.


Portugueses no Tour Down Under

Não se pode terminar sem referir dois enormes feitos de ciclistas portugueses no Tour Down Under. Primeiro Manuel Cardoso, que em 2010 venceu uma etapa. Depois Tiago Machado, que em 2012 foi terceiro na classificação geral, superado apenas por Simon Gerrans e Alejandro Valverde. Em 2013 foi nono classificado.


Resumo da etapa rainha de 2013 (vídeo tem opção HD)

Resumo

Apesar da diferença horária entre a Austrália e a Europa ser um grande obstáculo na conquista dos "adeptos tradicionais" do ciclismo, o Governo de South Australia conseguiu montar e afirmar uma excelente prova para os ciclistas, para os adeptos e para os patrocinadores. Os patrocinadores vão para onde estiver público, o público vai para onde estiverem as estrelas e as estrelas que experimentam a Austrália parecem não abdicar de repetir no ano seguinte. A estabilidade financeira da prova é garantida pela cada vez maior capacidade de vender publicidade a mais patrocinadores.

Com uma forte capacidade de procurar soluções para ultrapassar os vários obstáculos e uma forte aposta em soluções inovadoras, os adeptos australianos têm agora uma prova como qualquer adepto gostaria de ter no seu país.



Ao dia de hoje, 1 dólar australiano vale 0,658 euros. No final do Tour Down Under 2013, quando foi calculado o impacto económico da prova, 1 dólar australiano valia 0,778 euros.

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