sexta-feira, 28 de fevereiro de 2014

Ciclismo, Volta ao Algarve e televisão

Como vem sendo costume, a Volta ao Algarve traz à baila o debate em torno das transmissões televisivas no ciclismo, um debate muito participado mas em que nem tudo é verdade.

A importância da televisão

Quando na semana passada escrevi que a Volta ao Algarve tinha tido o pacote completo, com estrelas, espetáculo e público, houve quem salientasse (e bem) a ausência de um ingrediente: a televisão. Sem dúvida que a televisão é um ingrediente fundamental na receita do sucesso no ciclismo.

Quem já viu desportos como o basquetebol ou o hóquei em patins ao vivo percebe que há algo que a televisão não capta. A televisão faz os movimentos parecerem mais lentos e retira a uma parte do espetáculo que só se pode presenciar ao vivo. Porém, o ciclismo apresenta característica diferentes.

Numa transmissão televisiva de ciclismo perde-se aquela ansiedade de esperar o pelotão, perde-se uma parte do barulho do público, das rodas, das correntes. Mas ao vivo o ciclismo apenas dura segundos. Os ciclistas passam pelo público num dado ponto e acabou. Não se sabe o que se passou até ali e não sabe o que se passou dali em diante. Só a televisão pode mostrar uma prova de ciclismo de estrada no seu todo. Mas maior que a importância para o público é a importância da transmissão televisiva para os patrocinadores (e consequentemente para os organizadores).

Os organizadores de ciclismo necessitam de patrocinadores pois é essa a fonte de financiamento. Há sempre quem diga que os interesses comerciais são maus, que o marketing é mau, que tudo isto chegou para estragar o ciclismo. Nada mais errado. O Tour, o Giro e até a mais velhinha Liège-Bastogne-Liège foram criadas para vender jornais. O ciclismo de lazer existe porque andar de bicicleta é fantástico; as provas de ciclismo existem para vender. Nunca existiu outro ciclismo.

Uma grande parte dos patrocínios é originado pelas partidas e chegadas de etapas (normalmente entidades públicas mas não só) e para esses patrocinadores há três grandes motivos que os levam a comprar a presença de uma prova de ciclismo:
- Promover a cidade ou a região com objetivos turísticos, seja uma região de praia como o Algarve, uma estância de desportos de inverno como Alpe d'Huez ou uma cidade turística como Amesterdão (Giro 2010);
- Oferecer à cidade um dia de espetáculo, sobretudo (mas não só) em locais em que o ciclismo é muito popular e as pessoas agradecem, como Tavira, Loulé, Torres Vedras ou Santa Maria da Feira, apenas para dar quatro exemplos;
- Propaganda política. É algo que acontece um pouco por todo o lado, mas para ter uma ideia basta ver uma vez o Há Volta.

Se no segundo e no terceiro motivo o público-alvo está limitado à cidade ou região em causa, o primeiro destina-se a um público-alvo muito mais vasto, com milhões de pessoas por todo o mundo. Ou melhor, pode destinar-se, caso exista transmissão internacional.

O interesse para a Volta ao Algarve

No caso da Volta ao Algarve, é evidente que a promoção turística é o interesse com maior potencial. Claro que a presença da Algarvia faz as delícias da população local e de quem se desloca de fora para assistir à maior parada de estrelas velocipédicas em território nacional, mas o maior interesse que a Volta ao Algarve pode ter para os municípios algarvios é a promoção da região além-fronteiras. E a promoção sem televisão é ridiculamente pequena quando comparada com a que teria caso existisse direto televisivo.

Não se pense contudo que tem algum interesse para o turismo algarvio ter a Volta ao Algarve na RTP, na SIC, na TVI, n'A Bola TV, na SportTv ou em qualquer outro canal nacional, porque é desnecessário promover o Algarve junto dos portugueses. O que faz falta sim é a promoção do Algarve e de Portugal no exterior, o que apenas é possível através de canais internacionais.


Quem faz uma transmissão

Antes de mais, é necessário compreender como se faz e quem faz uma transmissão televisiva de ciclismo, até porque este ano tivemos uma grande vaga de falsa informação no que diz respeito à transmissão televisiva.

Com o ciclismo a ganhar maior popularidade em Portugal (efeito Rui Costa), a comunicação social está a adotar para o ciclismo a mesma filosofia que há muito adotou para o futebol e para as figuras públicas do mundo das artes, das festas ou dos Big Brothers. Temos por isso meia dúzia de jornalistas e pseudo-jornalistas que envergonham os bons profissionais ao "noticiar" coisas sem pés nem cabeça. Uns por manifesta ignorância, outros para alimentar os seus egos. Contarem o que as pessoas querem que seja verdade faz com que conquistem a simpatia do público, mesmo que seja uma conquista à base de mentiras, porque haverá sempre quem goste de ser iludido.

Exemplos recentes disso foi a "apresentação" de uma equipa profissional continental luso-belga que seria patrocinada por uma empresa árabe, o avançar com a quase certa partida da Volta a Espanha 2014 ou 2015 do Algarve, ou o Jornal Ciclismo, depois de terminada a primeira etapa da Volta ao Algarve, "praticamente assegurar" que o Eurosport começaria a transmitir em direto no dia seguinte. Ora, ou é falta de conhecimento, ou é falta de respeito para com o seu público.

Relativamente à quase-equipa-luso-belga-de-patrocínio-árabe, nem tem ponta por onde se pegue; a hipótese da partida da Vuelta no Algarve não faz sentido no atual momento que as autarquias algarvias atravessam (basta ver que Portimão ficou de fora da Algarvia); e a praticamente assegurada transmissão do Eurosport com início no segundo dia não faz qualquer sentido porque transmitir uma prova de ciclismo é muito mais complicado do que dão a entender. E têm obrigação de o saber. Ora vejamos.

Apesar do Eurosport ser um enorme canal internacional e nalguns casos até ser credível, não garante a recolha de imagens de nenhuma prova, apenas as transmite. A recolha essa está sempre a cargo de outra entidade. Quando em 2012 a Volta ao Algarve foi transmitida, as imagens que o Eurosport colocava no ar eram as que recebia da RTP, quando transmite o Tour e as provas francesas está a receber as imagens da France Télévisions e por aí adiante. O que o Eurosport lhes acrescenta depois é o comentário em cada país e por vezes algumas peças com entrevistas à partida e à chegada (acontece em muito poucas provas).

Significa isto que não é o Eurosport que decide se vai ao Qatar, a Omã, Andaluzia ou Algarve e não é o Eurosport responsável pela escolha da Andaluzia em vez do Algarve. Tem que haver quem garanta a transmissão (o que existia na Andaluzia mas não no Algarve) e a ceda ao Eurosport. Ceder? Exatamente, ceder.

Já muito se ouviu falar na venda dos direitos transmissivos dos clubes de futebol, mas em provas como a Volta ao Algarve a situação é muito diferente. É verdade que muitos canais pelo mundo fora pagam para transmitir as maiores clássicas, o Giro ou a Vuelta e que muitas mais pagam para transmitir o Tour - compram os direitos de transmissão. Porém, os canais não compram direitos de transmissão para provas como a Volta ao Algarve, Andaluzia ou outras do mesmo nível. As imagens têm que ser oferecidas ou, nalguns casos, os organizadores têm que pagar aos canais para que as suas provas sejam transmitidas.


O que é necessário para uma transmissão

Um jogo de futsal, basquetebol, andebol, voleibol, ténis ou qualquer desporto de pavilhão é bastante simples de filmar e transmitir. Com duas câmaras fixas, um cameraman móvel para filmar os protagonistas mais de perto nos intervalos e/ou descontos de tempo são suficientes para garantir uma boa transmissão. Acrescidos de realizador, misturador, operador de EVS, operador de sons, designer gráfico e outros técnicos comuns a qualquer transmissão, claro.

Quando se fala de ciclismo de estrada, surgem inúmeras condicionantes que fazem os preços disparar para valores insuportáveis para pequenos e médios bolsos. Com os meios que se faz um jogo de futsal, também se faz um jogo de basquetebol ou até uma prova de ciclismo de pista. Mas se levarem esses meios para uma prova de ciclismo de estrada, apenas conseguirão transmitir os últimos 300 ou 400 metros. Apenas isso, a chegada dos ciclistas.

Como qualquer adepto perceberá, para transmitir uma prova de ciclismo, além das câmaras fixas, são necessárias pelo menos duas motas (fuga e cabeça do pelotão) mas para fazer uma transmissão com qualidade acresce uma terceira (e no Tour chegam a ser 5 ou 6). Acresce ainda um helicóptero (no Tour chegam a ser 2) e uma mota de som. Ok, até aqui, nada de surpreendente. Caro, mas sem surpresas.

Analisando com mais atenção, é possível perceber que não é qualquer mota que acompanha o pelotão a 90 km/h, em curva e contracurva, com um pendura a filmar. Também não é qualquer motard que o faz e não é qualquer operador de câmara que filma essas descidas alucinantes ou que faz aqueles malabarismos sobre a mota, com a câmara sobre o ombro, que tantas vezes vemos.

As motas têm que ser leves, os motards têm que ser altamente experientes para fazer aquela condução e conhecedores do ciclismo para perceber quais os ciclistas que devem acompanhar quando os grupos se fracionam, os cameramen têm que ter uma enorme perícia e as suas câmaras tem que ser leves para ser manejadas sobre a mota em movimento.

Depois há o helicóptero específico, com um piloto que também ele tem que perceber da poda e um operador de câmara preparado para as especificidades da transmissão num helicóptero.

Parece muito, mas ainda não está tudo. É que tudo isto junto dá para fazer uma transmissão em diferido, mas ainda não é suficiente para um direto.

As imagens e os sons do helicóptero e das motas não chegam ao camião de exteriores. É necessário um avião relay com altitude suficiente para receber as imagens e o som e fazer o envio para o camião de exteriores, onde o realizador, o operador de EVS, o misturador e os demais técnicos montam aquilo que chega às nossas televisões.


Imagem explicativa retirada do CyclingTips
Quanto maior a distância entre as motas e o camião de exteriores (que está na meta) e quanto mais montanhoso for o terreno, mais difícil é o trabalho do avião relay. Nas etapas de alta montanha da Volta a França em que a transmissão começa muito longe da meta chegam a ser necessários dois aviões relays, o que é insuportável para um organizador português. Por isso é inviável fazer uma transmissão na integra da etapa da Serra da Estrela ou da Senhora da Graça, por muito interessante que fosse.

Então, sem entrar em maiores detalhes, para captar as imagens para uma transmissão em direto de ciclismo é necessário:
- 3 motas que se adequem a este trabalho;
- 3 motards experientes;
- 3 cameramen experientes equipados de câmaras leves;
- 2 ou 3 câmaras fixas + cameramen (este número depende do tamanho das últimas retas)
- 1 heli
- 1 piloto de héli
- 1 cameraman para o héli
- 1 avião relay
- 1 piloto para o avião relay + técnicos

A isto é necessário acrescentar os profissionais que montam tudo e os profissionais que trabalham as imagens e os sons antes de chegarem até à casa de cada um de nós.


Quem tem tudo isto

Não, a RTP não tem tudo isto nem pode. Nenhum canal que transmita 10, 20 ou 30 dias de ciclismo pode dar-se ao luxo de ter este equipamento e este pessoal parado durante o resto do ano.

O que existe são produtoras que têm este equipamento e pessoal necessário (ou subcontratam parte dele) para fazer transmissões de excelente qualidade e rentabilizam os seus recursos fazendo trabalhos pelo mundo fora. Por isso ouvimos várias vezes durante a Volta a Portugal as referências aos motards e operadores de câmara que estiveram no Tour. A produtora contratada pela ASO e a France Télévisions para fazer a transmissão do Tour é a mesma contratada pela RTP e a Podium (ex-PAD) para fazer a Volta a Portugal (e muitas outras provas pelo mundo). Em Portugal, juntam-se aos profissionais da RTP.


E deveria a RTP contratar para a Volta ao Algarve?

Não!
É fácil dizer que a RTP deveria transmitir a Volta ao Algarve. É sempre mais fácil dizer o que as pessoas querem ouvir/ler e fazê-lhas partilhar com os amigos. Mas este pretende ser um espaço sincero e ponderado, e não uma feira popular.

Vou ser sincero. Se a Volta ao Algarve desse na televisão, eu não a veria. Porquê? Porque estaria a trabalhar (ou estaria a acompanhar na estrada).

A Volta a Portugal teve no último ano muito boas audiências porque em agosto os adeptos do ciclismo estão de férias. Portugal é um país que pára em agosto e no meio dessa paragem os adeptos de ciclismo estão em casa a ver a Volta. Mas em fevereiro os adeptos do ciclismo estão a trabalhar.

Basta olhar para a programação dos três principais canais nacionais para perceber o tipo de pessoa que está a dar audiência durante a tarde: maioritariamente quem está reformado ou quem está desempregado.

Este é o grande problema do ciclismo e de qualquer desporto que seja transmitido durante a semana no horário da tarde. Por isso o ciclismo só cabe em canais específicos de nicho como o Eurosport ou em canais secundários como a RTP Informação ou a TVI 24.

Como se compreenderá, é bastante difícil de obter valores dos custos, mas o blog INRNG, que é uma referência, abordou este tema durante a Volta a Omã e falou entre os 30.000 e os 50.000 euros por dia. Certo é que não tem qualquer interesse nem para a RTP nem para qualquer canal nacional investir algumas dezenas ou centenas de milhares de euros para não ter retorno.


Solução e Conclusão

A Algarvia tem estrelas, tem espetáculo, tem público mas não tem dinheiro para pagar uma transmissão televisiva que, como ficou aqui explicado, não é tão fácil quanto muitas vezes se dá a entender e que tem um custo bastante elevado. As televisões também não têm interesse em suportar estas despesas para perder dinheiro. Mas a Volta ao Algarve deveria, sem qualquer dúvida, ter transmissão televisiva. O interesse é do turismo algarvio.

O investimento para transmitir a Volta ao Algarve teria que partir do Turismo do Algarve e/ou do Turismo de Portugal, não para mostrar uma prova de ciclismo mas para mostrar o Algarve e as praias com os ciclistas como pretexto.

Com a tão ambicionada transmissão, a organização da prova teria maior poder de negociação junto das autarquias (das que podem pagam mais) e de outros operadores turísticos. Sem a transmissão, a Algarvia perde terreno para as suas concorrentes. E uma delas, logo ao lado, é concorrente do Algarve como destino turístico.

Urge então fazer ver a estas entidades o potencial da Volta ao Algarve como promotor turístico, um potencial que só pode ser alcançado através da transmissão televisiva. O organizador da Volta ao Algarve necessita de quem consiga lidar com o Turismo como até hoje nunca foi feito.

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É já este sábado que se disputa a primeira clássica de pavé de 2014, o Omloop Het Nieuwsblad. Também não terá transmissão televisiva em Portugal mas, como é costume, na página do Facebook será disponibilizado link para assistirem à prova através dos canais belgas.

Poderão também aproveitar para reler a crónica "Que comecem as clássicas da Primavera!". Foi escrita no ano passado e naturalmente que a leitura dos favoritos fica desatualizada, mas ainda assim serve para dar a conhecer um pouco mais sobre estas provas.

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A subida a Pompeiana, que tinha sido anunciada para a Milano-Sanremo e tinha feito os sprinters retirarem La Classicissima dos seus planos, afinal não fará parte da prova este ano. Os sprinters podem refazer os seus planos para 23 de março.

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