domingo, 8 de junho de 2014

Recordar o Tour: 2004, a busca do Hexa

José Azevedo no apoio a Lance Armstrong
Inicia-se hoje a série de artigos Recordar o Tour. Recuamos dez anos, até 2004, para recordar a Volta a França desse ano e ao longo das próximas semanas será feito o mesmo com as edições seguintes, uma por uma. Os escândalos de doping que apenas foram conhecidos à posterior não serão considerados, procurando assim recordar estas edições da Volta a França como foram vistas na época.

Lance Armstrong (US Postal) partia para 2004 com o objetivo de ser o primeiro hexavencedor do Tour, iniciando a sua temporada no Algarve. Curiosamente, em 96 também Miguel Indurain passou por Portugal antes de tentar o hexa. Foi no Alentejo, com Miguelón a vencer a geral e duas etapas mas a falhar no seu grande objetivo da temporada em julho.

Armstrong pediu à organização da Algarvia um contrarrelógio com mais de vinte quilómetros como condição para marcar presença. Foi o mais forte nos vinte e quatro quilómetros que ligaram Vila Real de Santo António a Tavira, superando por um segundo o seu colega Floyd Landis. No dia seguinte foi uma multidão que se deslocou ao Malhão para ver o então pentavencedor do Tour e a sua maillot jaune portuguesa, porém não foi tão fácil ver a camisola amarela como se gostaria. O mau tempo (que nem era tão mau comparado com o que é norma na Europa em fevereiro) fez com que os ciclistas andassem de capa durante grande parte do percurso e só já na parte final o texano mostrou a cor que ficou associada à sua carreira. Perderia essa tirada e a geral para Landis. A caminho do Tour venceu a Volta à Georgia (EUA) e seria quarto no Critérium du Dauphiné Libéré. No Tour apresentava-se com uma equipa de luxo, na qual José Azevedo substituía Roberto Heras, antigo braço-direito de Armstrong e agora na Liberty Seguros.

Jan Ullrich (T-Mobile) tinha estado mais próximo de Armstrong em 2003 do que em qualquer outra edição. Foram apenas sessenta e um segundos a separar os eternos rivais, com uma queda a impedir que o alemão ameaçasse o penta de Armstrong no último contrarrelógio. Ullrich tinha vencido também a Volta à Suíça e partia como líder da ofensiva ao domínio norte-americano.

Havia também uma grande expetativa sobre Iban Mayo (Euskaltel-Euskadi). O basco tinha contra si os contrarrelógios, mas desta vez eram "apenas" três que o desfavoreciam: um prólogo, um coletivo e um individual no penúltimo dia. Apesar de ser muito, era menos do que no ano anterior, pois o habitual contrarrelógio da segunda semana fora substituído por uma crono-escalada no Alpe d'Huez. E se no ano anterior tinha sido sexto, agora poderia aspirar a algo mais, depois de vencer o Dauphiné Libéré, também a Volta às Astúrias, a Subida al Naranco e a Clásica de Alcobendas. Na Volta ao País Basco Denis Menchov tirou-lhe a única vitória que escapou numa caminha quase perfeita até ao Tour.

Tyler Hamilton (Phonak) tinha sido quarto em 2003 com uma clavícula fraturada e venceu a Volta à Romandia 2004, Roberto Heras (Liberty Seguros) era duplo vencedor da Vuelta e, tal como Mayo, acreditava na vitória. Os grandes ausentes eram Joseba Beloki (ainda a recuperar da terrível queda do ano anterior) e Alexander Vinokourov, terceiro em 2003 mas vítima de uma queda na Volta à Suíça que o impediu de alinhar em Liège.

Na cidade belga que acolhia o prólogo na 91ª edição do Tour, um jovem impôs-se. Tinha 23 anos, corria pela Fassa Borloto e estava a começar a construir uma carreira de enorme sucesso. Chama-se Fabian Cancellara. O segundo classificado seria o último a transpor a linha de meta, Lance Armstrong, dois segundos mais lento que o suíço mas mais veloz que todos os seus adversários. E voltaria a ser no contrarrelógio coletivo da quarta etapa.

Nesse dia a US Postal arrasou toda a concorrência. No último ponto intermédio, a seis quilómetros da meta, a equipa norte-americana já levava um minuto de vantagem sobre a segunda classificada e levantaram o pé.

Em 2003, a Euskaltel perdeu quase três minutos e meio no contrarrelógio coletivo, o que prejudicou claramente Haimar Zubeldia e Mayo, quinto e sexto no final. Também Vinokourov minuto e meio, Hamilton 1'45'' e Basso quase dois. Para 2004 a organização criou uma nova regra, que definia os tempos máximos que cada equipa poderia perder para a classificação geral em função do lugar ocupado. Independentemente da diferença de tempo na etapa, os ciclistas que terminassem integrados na segunda equipa apenas perderia vinte segundos (ou menos) para a classificação geral, os membros da terceira classificada trinta segundos, da quarta quarenta e por aí fora, até à última equipa, cujos ciclistas não perderiam mais de dois minutos e meio. Devido a esta regra, os ciclistas da US Postal levantaram o pé na parte final, pois batessem os seus adversários por um ou dois minutos, para a classificação geral seria indiferente. Deixaram a segunda classificada (Phonak) a mais de um minuto mas Armstrong apenas ganhou vinte segundos a Hamilton e quarenta a Ullrich. Iban Mayo tinha perdido o Tour no dia anterior.

A Volta a França começou mal para a Euskaltel quando Gorka González se viu afastado da competição logo nos testes sanguíneos que antecediam a prova. Mayo começou logo com menos um gregário, mas o pior estava por vir. Na terceira etapa havia pavés, a US Postal assumiu o comando do pelotão com George Hincapie, Viatcheslav Ekimov e Pavel Padrnos para colocar na melhor posição Armstrong, o ritmo alto e os nervos antes de entrarem no primeiro setor fizeram o resto. Uma grande queda envolveu Mayo, o oitavo do ano anterior Christophe Moreau, o que viria a ser o melhor jovem dessa edição Vladimir Karpets e ainda Denis Menchov, vencedor da Volta ao País Basco e camisola branca no ano anterior. Perderam quase quatro minutos, como Thor Hushovd, então líder da prova.

A camisola amarela conquistada por Armstrong no contrarrelógio coletivo seria perdida logo no dia seguinte. Formou-se um quinteto que incluía o vencedor do Paris-Roubaix, Magnus Bäckstedt, Stuart O'Grady que acabaria por vencer a etapa e o campeão francês Thomas Voeckler. Depois dessa fuga bidão, Voeckler ficaria com mais de nove minutos de vantagem sobre Armstrong e muitos se recordarão da imagem do francês a lutar diariamente por segurar a sua liderança.

Os Pirenéus apenas chegaram no final da segunda semana, na décima segunda etapa. Armstrong tinha o hábito de chegar ao Tour num grande condição que lhe permitisse logo na primeira chegada em alto abrir vantagem face à concorrência, para depois ir ampliando no contrarrelógios. Em 2003 falhara na chegada ao Alpe d’Huez, incapaz de seguir Mayo e Vino, chegando com a companhia dos restantes rivais. Por isso a primeira chegada em alto, em La Mongie, serviria para ver a condição do norte-americano. Dois anos antes, apenas Joseba Beloki tinha acompanhado Armstrong quando o seu braço-direito Roberto Heras acelerou naquela montanha.

Ainda com Hincapie na frente, Tyler  Hamilton cedeu. Quarto no ano anterior com a clavícula fraturada, começou a etapa a 43 segundos de Armstrong, acabou a 4'22'', com as suas chances de pódio arruinadas. Depois foi Jan Ullrich, que tinha perdido o Tour 2003 na primeira chegada ao alto, no Alpe d'Huez. Armstrong chegava aos Pirenéus com vontade de destruir a concorrência, mais uma vez Ullrich chegava às primeiras montanhas com excesso de peso e não aguentou o ritmo de Rubiera (ainda antes de Azevedo entrar ao serviço), perdendo dois minutos e meio na meta. Heras também perdia o contacto.
Ivan Basso foi quem esteve mais próximo de Armstrong nas montanhas
José Azevedo acabaria por ceder a quatro quilómetros da meta perante um ataque de Francisco Mancebo (Illes Baleares). No grupo principal ainda estava uma dezena de ciclistas, mas Ullrich pedalava com um minuto de atraso e esse era o ponto positivo do dia para os resistentes na frente. Armstrong olhou à sua volta, tentou aguentar a corrida, viu alguns a atacarem, tentou aguentar mais um pouco e à falta de dois mil metros lançou-se. Ivan Basso foi o único capaz de seguir. Já na parte final, o italiano começou a colaborar e Armstrong deu-lhe a vitória para dedicar à sua mãe, que lutava contra o cancro. A camisola amarela permanecia com Voeckler, mas Armstrong tinha ganho tempo a toda a gente. A T-Mobile via Ullrich afundar-se mas Andreas Klöden foi terceiro na etapa e poderia ser o plano B.

No dia seguinte, com chegada a Plateau de Beille, José Azevedo teve uma das suas melhores (se não a melhor) performance no Tour. Na entrada para a subida final, a US Postal ainda levava cinco homens no (numeroso) grupo principal. Landis e Hincapie ficaram pelo caminho quando Chechu Rubiera fez a primeira seleção. Ao trabalho do espanhol apenas resistiram oito para além dos três US Postal, os oito mais fortes. Na primeira aceleração do português, a onze quilómetros da meta, Jan Ullrich cedeu. Com o ritmo a manter-se alto, não demorou nada para que Paco Mancebo, Oscar Pereiro e Andreas Kloden também perdessem o contacto. Georg Totschnig (Gerolsteiner) aguentou um pouco mais mas também ele ficaria por terra e dava então lugar a uma imagem que ficaria na memória dos portugueses. Numa das etapas-chave do Tour 2004, apenas Lance Armstrong e Ivan Basson aguentavam na roda de José Azevedo. A sete quilómetros da meta o luso terminou o seu trabalho com Ullrich já a um minuto e a partir dali coube a Armstrong e Basso continuarem a sua caminhada para ganhar o máximo de tempo aos rivais. Na meta, vitória de Armstrong, Basso na roda, Totschnig já a um minuto, Klöden a 1'27'', Ullrich 2'42'' e Azevedo sétimo a 2'50'', subindo ao sétimo lugar da geral. Voeckler chegava a quase cinco minutos mas na meta festejou a manutenção da camisola amarela por 22 segundos. Apenas um mau dia de Armstrong poderia dar a vitória a Basso e todos os outros já estavam demasiado afastados à saída dos Pirenéus.
Thomas Voeckler festejou em Plateau de Beille a manutenção da liderança
Ainda assim, Ullrich chegou aos Alpes decidido a melhorar o seu modesto oitavo lugar. Na décima quinta etapa atacou quase a 60 quilómetros da meta. A US Postal tinha Landis e Azevedo com Armstrong, mas Ivan Basso e a CSC não podiam arriscar. Pela quarta vez em fuga nessa edição do Tour, Jens Voigt teve que abdicar da sua posição privilegiada (estava no primeiro grupo perseguidor da cabeça de corrida) e esperar pelo grupo dos favoritos, pedalando muito vagarosamente na antepenúltima subida do dia. Ullrich foi alcançado a 28 quilómetros da meta e Voigt alvo de críticas pela comunicação social germânica que o acusava de trabalhar para Armstrong. Mas naquele Tour Ullrich preocupava mais Basso do que Armstrong e Voigt ajudou o italiano a defender o seu segundo posto. Armstrong estava noutra liga, venceu a etapa e tomou a camisola amarela de Voeckler para não mais a despir. Ulle subia para 5º e Azevedo para 6º, ultrapassando Totschnig e ganhando tempo precioso a Mancebo, que seria ultrapassado pelo português na crono-escalada do Alpe d'Huez no dia seguinte.

Quando Azevedo chegou à meta com o melhor registo, os tempos intermédios já não deixavam dúvidas quanto ao vencedor da etapa. Armstrong, que tinha dobrado Basso, ganhava com um minuto de vantagem sobre Ullrich, agora quarto, ainda com Basso e Klöden pela frente e a distâncias dificilmente recuperáveis. Azevedo, que dobrara Voeckler (partiram com quatro minutos de diferença), subia ao quinto, lugar que iria manter até ao final. Aliás, os cinco primeiros da geral estavam encontrados, faltava ajustar a ordem.

Na única etapa de montanha que faltava, Armstrong voltou a vencer, sem diferenças entre Basso e os principais homens da T-Mobile. No contrarrelógio do último dia, Armstrong conquistou a quinta etapa desse Tour, Klöden fez valer os seus dotes de contrarrelogista para subir ao segundo lugar, Basso baixava para terceiro, Ullrich ficava fora do pódio. Era a primeira vez que colocavam o alemão fora do pódio. Tinha estado ausente em 99 por lesão e em 2002 por suspensão, mas desde a sua primeira participação em 1996, nunca os adversários o tinham colocado fora dos três primeiros postos.

O prólogo tinha sido para Cancellara e a chegada a Paris seria para outro futuro monstro do pavé: Tom Boonen (Quick Step). Era a segunda vitória de etapa do belga nessa edição da Volta a França e Filippo Pozzato, com apenas 22 anos, também tinha vencido uma etapa.

Lance Armstrong tornou-se o primeiro hexavencedor do Tour e Richard Virenque (Quick Step) o primeiro a vencer a classificação da montanha pela sétima vez, superando Van Impe e Bahamontes. Na classificação por pontos, Robbie McEwen repetiu o triunfo de 2004.
Pódio final da Volta a França 2004
Resumo
Prólogo: Liège - Liège: Fabian Cancellara
1ª Etapa: Liège - Charleroi: Jaan Kirsipuu
2ª Etapa: Charleroi - Namur: Robbie McEwen
3ª Etapa: Waterloo - Wasquehal: Jean-Patrick Nazon4ª Etapa: Cambrais - Arras (CRE): US Postal
5ª Etapa: Amiens - Chartres: Stuart O'Grady
6ª Etapa: Bonneval - Angers: Tom Boonen
7ª Etapa: Châteaubriant - Saint-Brieuc: Filippo Pozzato
8ª Etapa: Lamballe - Quimper: Thor Hushovd
9ª Etapa: Saint-Leonard-de-Noblat - Quéret: Robbie McEwen
10ª Etapa: Limoges - Saint-Flour: Richard Virenque
11ª Etapa: Saint-Flour - Figeac: David Moncoutie
12ª Etapa: Castelsarassin - La Mongie: Ivan Basso
13ª Etapa: Lannemezan - Plateau de Beille: Lance Armstrong
14ª Etapa: Carcassonne - Nîmes: Aitor González
15ª Etapa: Valréas - Villard-de-Lans: Lance Armstrong
16ª Etapa: Le Bourg-d'Oisans - L'Alpe d'Huez (CRI): Lance Armstrong
17ª Etapa: Le Bourg-d'Oisans - Le Grand-Bornand: Lance Armstrong
18ª Etapa: Annemasse - Lons-le-Saunier: Juan Miguel Mercado
19ª Etapa: Besançon - Besançon (CRI): Lance Armstrong
20ª Etapa: Montereau - Paris: Tom Boonen

Classificação Geral: Lance Armstrong
Classificação por pontos: Robbie McEwen
Classificação da montanha: Richard Virenque
Classificação da Juventude: Vladimir Karpets
Classificação por equipas: T-Mobile
Prémio da Combatividade:  Richard Virenqeu





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