sexta-feira, 3 de abril de 2015

A grande Volta a Flandres de Eddy Merckx (por Fernando Blanco)

Por Fernando Blanco

Em abril de 1969, Eddy Merckx tinha apenas 23 anos de idade e seu palmarés já era impressionante, acumulando vitórias do vulto de um Campeonato do Mundo, um Giro d’Italia (vencendo todas as ‘Maglias’), 3 Milano-San Remo, Paris-Roubaix, Flèche Wallone, Gent-Wevelgen e Paris-Nice. Com o fim de carreira de Anquetil e Van Looy, Eddy era o melhor do mundo. A dúvida era quando se tornaria o melhor da história.

O jovem grande campeão era adorado, adulado e temido, mas faltava-lhe vencer uma Clássica Monumento em seu próprio país. Para os fanáticos torcedores flamengos, Merckx não era um “Flandrien” ou “Flahute”, apelido-homenagem dado àqueles que vencem os temíveis bergs e pavés do norte da Bélgica. E apesar de ter nascido em território linguístico flamengo, Eddy era do Brabant e não dos Flandres (Vlaanderen). Isso gerava um pequeno preconceito em relação a sua capacidade de vencer o Ronde van Vlaanderen, que era (e é) o verdadeiro ‘campeonato mundial dos Flandres’.

Mas finalmente chegou o domingo do Ronde van Vlaanderen de 1969 e Merckx era o favorito óbvio. A largada em Gent já se tornara um calvário para o pelotão: chuva impiedosa, vento gelado e muito frio castigavam os ciclistas naqueles minutos que antecediam o tiro de partida. O que viria depois seria muito pior.

O percurso daqueles 259 km da prova era muito diferente de hoje em dia, com uma pesada distribuição de bergs duríssimos por volta de 100 km antes da chegada – hoje em dia eles se aglomeram nos últimos 50 km.

Fato é que Merckx estava enlouquecido naquele dia terrivelmente frio. Com seus ataques, o belga provocou sucessivas fraturas no pelotão até que um grupo de apenas 20 ciclistas isolou-se na ponta faltando ainda 100 km. A elite do pelotão estava lá: o rival belga Walter Godefroot e os azzurri Gimondi, Motta, Adorni e Dancelli.

Incansável, o belga atacou nos bergs mais duros, mas não conseguiu livrar-se deles. Melhor dizendo, não conseguiu larga-los naqueles momentos-chave, mas tinha destruído suas reservas. Até que faltando ainda distantes 70 km para a chegada, Eddy fez um ataque menos duro e foi-se embora de vez. Seus rivais estavam cansados e emocionalmente drenados.

Mas você deve estar se perguntando: “Como assim, um favorito atacar a 70 km da chegada?” Quando comparamos com o que acontece hoje em dia, com ataques sérios acontecendo nos último 20 km ou até menos, atacar a 70 km do final da prova parece mesmo ser uma loucura.

Pois foi isso mesmo que seu diretor esportivo achou. A equipe Faema de Eddy Merckx era dirigida por um homem experiente e controverso. Guillaume ‘Lomme’ Driessens tinha sido soigneur de Fausto Coppi e, dizem, era um especialista em chamar os holofotes para si mesmo. Também era invasivo na vida privada dos seus protegidos. Há histórias engraçadas sobre como tentava controlar a vida sexual dos seus ciclistas líderes, assim como ensinar suas esposas a cozinhar corretamente a pasta. Ninguém gostava dele, mas a fera tinha prestígio.

Enfim, assim que notou que Eddy havia aberto um minuto do grupo e que continuava a atacar os bergs e trechos pavés como se não houvesse amanhã, Driessens colocou o seu carro ao lado dele e sem a menor finesse gritou: “O que você está fazendo? O vento contrário vai acabar com você!” E como Merckx nem se dignou a olhar para o lado, acelerando ainda mais o ritmo, Lomme disse o que ninguém havia ousado (ou voltaria a ousar) dizer para o Maior de Todos: “Você está louco?”.

Pois Eddy respondeu-lhe com apenas uma palavra: “Godverdomme!” 

Bem, o significado desta palavra para um belga é muito pesado: é uma profanação, sendo utilizada para amaldiçoar alguém. 

Quando estamos correndo, com a adrenalina a mil, é comum explodirmos e muitas vezes com fúria. Foi assim que o nosso futuro Canibal reagiu ao seu insuportável diretor, que tentava abortar aquela que, na opinião do próprio Merckx, seria a sua maior explosão física numa prova de um dia.

Pois parece que aquela situação o desafiou ainda mais e ele pedalou com mais raiva. Resultado: Merckx chegou com mais de 5 minutos de vantagem sobre o campionissimo Felice Gimondi. Eddy, o garoto do Brabant, tornava-se um herói dos Flandres. Empolgado, nas entrevistas ele agradeceu a todo mundo – da sua mãe ao mecânico, passando por todos os seus domestiques – menos a Guillaume Driessens.

Já o Lomme disse para todos que o ataque – que ele havia considerado suicida – havia sido combinado, “era uma estratégia previamente discutida”.

Merckx foi o maior vencedor de Clássicas Monumento da história, mas ele venceu o Ronde van Vlaanderen "apenas" duas vezes. Algo sempre acontecia e a prova maior da Bélgica lhe escapava. A segunda e última vez foi em 1975, vestido com o manto sagrado da camisola do arco-íris, pois ele fora Campeão do Mundial em 1974, em Montreal. Mas isso é assunto para outro post.

Agora é hora de concentração total para o grande Ronde que se aproxima.

Um forte abraço para os amigos portugueses do Carro Vassoura.

Fernando Blanco

Fernando Blanco é o autor da página Ciclismo PRO, que podem visitar clicando aqui. Com uma narrativa excelente e um conhecimento fora do comum, é uma das poucas páginas recomendadas ali na coluna do lado esquerdo do Carro Vassoura. Se visitarem, não se irão arrepender.

O artigo foi publicado no "português brasileiro" original.

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