quinta-feira, 25 de junho de 2015

"A Clean Break", uma fuga limpa, o livro de Christophe Bassons

A carreira de Christophe Bassons foi curta, apenas seis anos, mas deixou a sua marca, ainda que para a generalidade dos adeptos seja completamente desconhecido. Em poucas linhas se resume como Bassons se destacou dos demais. E em mais algumas, porque o seu livro vale tão a pena.

Bassons, jovem talento francês, corria na Festina quando em 1998 rebentou o escândalo. França e o mundo do ciclismo tremeram. O cenário era negro. Mas quanto mais negro se pintava o quadro, mais branco e virginal surgia Christophe Bassons. Outro Christophe, Moreau, quando se confessou, apontou três ciclistas que não se dopavam: Patrice Halgand, Laurent Lefèvre e Christophe Bassons. Outro ciclista, Armin Meier, também mencionou a limpeza de Bassons. Willy Voet, o soigneur da Festina que foi apanhado com 234 doses de EPO, 80 ampolas de hormona de crescimento e 160 cápsulas de hormona de crescimento num carro da Festina, disse no seu livro que Bassons era simplesmente um santo. Erwann Menthéour, no livro Secret Défonce, onde confessava a sua dopagem, disse que Bassons, por não se dopar, era um extraterrestre no pelotão.

Os organizadores e todos os agentes interessados tentaram vender a edição de 99 como O Tour da Renovação (era o novo ciclismo muito antes do Carro Vassoura) e o Le Parisien (jornal pertencente ao grupo que organiza o Tour) convidou Bassons para escrever as suas crónicas diárias. O ambiente no pelotão piorou. Pedalava durante largas horas, de início ao fim, sem que alguém lhe dirigisse a palavra. Cansado da luta desigual e do bullying de que era vítima, retirou-se em 2001. Mas deixou o seu testemunho. Uns falaram depois de serem apanhados, outros falaram depois de abandonarem o pelotão, Bassons denunciou tudo enquanto lá estava. Primeiro no Le Parisien e em 2000 com o livro Positif. Em 2014 o livro foi reeditado, depois de um encontro entre Bassons e o então já confesso Armstrong, com mais algumas considerações sobre a atualidade, e publicado em inglês. É desse livro que aqui falo.

Bassons não é do tipo que queria ser ciclista a todo o custo. Começou por brincadeira, era bom, ganhava, as equipas interessaram-se. Bassons conhecia Indurain pelos Tours que vinha a ganhar, Hinault por ser o campeão bretão, mas tudo o resto era desconhecido. Coppi, Merckx, Thévenet ou Fignon eram nomes que não lhe diziam nada. Mas entre os conjuntos interessados em Bassons estava também a poderosíssima Festina, e rapidamente lhe foi apresentado o ciclismo, mas também o seu milieu"Primeiro eu não via nada. Depois eu queria não poder ver nada (...) Percebi que dar cada gota de suor não era suficiente. Era necessário dar sangue."

"A Clean Break" (Uma Fuga Limpa) leva-nos a esse milieu, o miolo do pelotão profissional. O glamour do público, a Virenquemania, o tratamento que é dado aos heróis, as esposas que vivem à custa das estrelas e pertencem também ao circulo, as seringas nas mesas de cabeceira, as lesões inventadas para justificar autorizações médicas (TUEs), e a regra do Ça passe. Se algo não é apanhado no controlo, é como se não fosse doping.

Na Festina, Christophe Bassons tinha apenas um aliado: Antoine Vayer. Vayer publicou em 2013 o livro La preuve par 21, debruçando-se sobre as performances de 21 das maiores figuras do ciclismo moderno (dos anos 80 em diante) e é hoje uma figura de referência no Twitter no que respeita a colocar questões e estimular o pensamento crítico sobre as performances paranormais e a hipocrisia reinante. Na altura, Vayer era "apenas" o preparador físico, tinha esperanças em fazer campeões limpos e era visto pelos líderes como um figurante, que preferiam trabalhar com os médicos. Aliás, cada vez vemos menos preparadores físicos e mais médicos a trabalhar com os ciclistas, porque o que importa é o conhecimento sobre os fármacos.

Figuras também muito importantes na estrutura da Festina, e de todas as equipas que funcionam de modo idêntico, era os soigneurs, muitas vezes vistos como simples massagistas. Bassons coloca-os de outra forma. "Uma posição vaga para a qual não é necessária nenhuma qualificação específica", mas com enorme importância dentro das redes e no assessoramento à dopagem. Importância tal que muitos craques escolhem a dedo os seus soigneurs pessoais e quando mudam de equipa fazem questão de os levar. Foi o caso de Alex Zülle quando se mudou para a Festina. Bassons coloca Zülle como um gentleman, extremamente bem educado, que apenas se dopava porque precisava, ainda que muitas vezes no público. se confunda simpatia com limpeza. Segundo Bassons, foi por essas mesmas características, que o suíço foi um dos primeiros a confessar quando interrogado pelas autoridades: não sabia mentir.

Rapidamente Bassons percebeu que apenas tinha hipóteses de andar a bom nível em fevereiro e março, antes que os seus adversários começassem a carregar. Bassons terminava as provas por etapas em estado de anemia, com o seu hematócrito a cair 4 ou 5 pontos percentuais. Os seus companheiros começavam com o hematócrito num nível superior por 5 ou 6 pontos percentuais e conseguiam mantê-lo constante com o passar dos dias e do esforço.

Relata a pressão dentro da equipa. Na marquesa de massagem, um soigneur chamou-lhe à atenção. "Ouvi que não te queres injetar com recuperadores como os outros. Nós estamos numa equipa. Fazemos o que fazemos para ganhar dinheiro. Seria bom que conseguisses também algo para o pote." O pote era onde se juntava o dinheiro ganho em prémios de corridas, dividido no final do ano pelos ciclistas, pelo restante pessoal, e com uma fatia retirada para pagar o sistema de dopagem. Outra forma de suportar este era através da venda de vitórias em provas menores. Bassons estava por dentro do sistema, mas não pertencia ao sistema. Na hora de renovar o contrato, o seu diretor também deixou o alerta: se não se dopasse, ficava difícil.

Se o Caso Festina foi um pesadelo para a sua equipa, para Bassons foi a salvação para uma parte dos seus problemas. Mas não todos. Ficou cada vez mais isolado e no final da temporada deixou a equipa. Em 1999 mudou-se para a Française des Jeux e estreou-se no Tour. Tinha tudo para vencer uma etapa e os seus diretores sabiam-no. Bastava que perdesse tempo nas primeiras montanha e depois o pelotão dar-lhe-ia um triunfo de etapa para poder dizer que o Tour e o ciclismo estavam limpos, tão limpos que até Bassons, o Mr. Clean, podia vencer. Como inclusive tinha vencido no Dauphiné Libéré, também com um triunfo dado pela US Postal de Armstrong e Vaughters (camisola amarela). Mas Bassons não queria. Pelo menos, não assim. E apontou os males do ciclismo nas suas crónicas diárias no Le Parisien. Não havia Tour da Renovação. Tudo estava igual. Não havia novo ciclismo.

Em Positif, Bassons definiu aquilo que aqui chamo ironicamente "novo ciclismo". "Um ambiente no qual os diretores desportivos são sempre antigos profissionais que conhecem o milieu e estão demasiado familiarizados com a forma como isto funciona para pensarem sequer em fazerem algo diferente."

Tendo quebrado a regra de ouro, do silêncio, o pelotão começou a pressiona-lo para que abandonasse a prova e o ciclismo. Cansado do bullying, vendo que não contava com o apoio nem da própria equipa, que apenas lhe pedia que respeitasse a regra de ouro, o silêncio, abandonou o Tour.

No seu livro, Bassons fala ainda dos controlos "surpresa" conhecidos na véspera, os jovens em contacto com as máfias de ex-profissionais ainda com ligações às redes de tráfico, as substâncias utilizadas no desporto quando ainda estão em fase experimental e da "preparação médica que faz os trepadores vencerem contrarrelógios, os roladores venceram etapas de montanha e os sprinters vencerem as clássicas." Richard Virenque, Christophe Moreau ou Laurent Brochard são descritos como um "inusual tipo de budistas" para quem "a única coisa permanentemente a levitar a cima de si é o próprio hematócrito."

Manter-se limpo, não foi uma escolha.


"Eu não estava preparado para fazer tudo o que era necessário. (...) Recusei-me a abdicar da minha honestidade para sacrificar a minha saúde no altar de uma vitória. (...)
Nunca fui capaz de fazer batota para ganhar uma corrida. Uso a palavra "capaz" de propósito, devido à minha completa inabilidade neste aspeto. Não foi apenas uma questão de escolha. A minha educação - e o meu mau temperamento, a minha tendência para ser do contra, e o meu individualismo - criaram uma barreira que me fez impermeável a qualquer tentação. (...) Eu não sou um herói, apenas alguém incapaz de ceder, constrangido por certos tabus e um certo conceito de vitória, desporto e vida em geral."

Nem Bassons se vê como um herói, nem eu estou aqui para pintar heróis ou vilões, porque o mundo não é tão claro, tão linear. Mas quando a maioria está disposta a abdicar dos seus valores para pertencer ao meio e alcançar os seus objetivos, prefiro enaltecer quem está disposto a abdicar dos seus objetivos e da aceitação do sistema para preservar os seus valores, os seus escrúpulos. E no final, não haverá muitas conquistas mais dignas do que essa.

"Escrevo estas linhas para todos aqueles que formam uma guarda de honra nas estradas em julho. Eu gostaria que entendessem que estão certos em estar ali, que o ciclismo é um desporto maravilhoso, mas que estão enganados em alguns aspetos do que pensam".

Título: A Clean Break
Autor: Christophe Bassons (com Benoît Hopquin)
Edição: Bloomsbury

Idioma: Inglês
Páginas: 227

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