sexta-feira, 4 de março de 2016

Ainda a Volta ao Algarve: quem paga as transmissões televisivas?

Mais uma edição da prova disputada e regressa o tema: como é possível que a Volta ao Algarve não tenha transmissão televisiva? Não faz falta qualquer esforço para que a discussão se instale ano-após-anos, uma vez que os adeptos, acostumados a acompanhar a modalidade, percebem que algo de estranho se passa - a Volta ao Algarve é a única prova no mundo com um pelotão tão bom e sem transmissão em direto. Mas de quem é a responsabilidade?

Há dois anos escrevi um artigo onde explicava as vicissitudes e necessidades para uma transmissão televisiva de ciclismo em direto, muito provavelmente o desporto que mais meios requer para ser televisionado em direto. É normal que os adeptos/telespetadores não estejam familiarizados com o que requer uma transmissão de ciclismo. Pior é quando alguns agentes que estão no ciclismo há tantos anos (e alguns na tv) usam a não-transmissão da Volta para incendiar o debate. Como se bastassem duas câmaras e boa-vontade para transmitir uma prova em direto. Transmitir ciclismo é muito caro. Antes que o artigo se torne demasiado depressivo, digo que sim, é rentável (para alguém), mas é caro. E sem ter isso em consideração é impossível promover um debate sério e produtivo.

Se dúvidas existissem quanto a isso, o diretor da organização da Volta à Comunidade Valenciana, Angel Casero (o vencedor da Vuelta a España em 2001), disse recentemente que tinha que pagar €50.000 pela produção da prova... por dia (são €250.000 no total). Já quanto à Volta ao Algarve, o Presidente do Turismo do Algarve Desidério Silva diz que "nos contactos que fiz percebi que fazer uma transmissão com nível mundial andará em torno dos 300 mil euros." Os valores são semelhantes, a discrepância de 20% pode explicar-se pelos meios requisitados. Talvez o Turismo do Algarve tenha pedido orçamento para mais meios ou melhor qualidade, o que não interessa para o caso. O que interessa é perceber que a produção da Volta ao Algarve, para uma transmitição em direto, seria em torno de €250.000 e €300.000 euros. E uma coisa é produção, outra transmissão.

Os leitores portugueses já terão ouvido falar da Endemol e os leitores brasileiros também deverão perceber este exemplo. O Big Brother (e outros programas do mesmo nível) foram continuamente transmitidos pela TVI mas a sua produção era da Endemol. Escolho este exemplo porque julgo ser fácil de compreender mesmo para os leitores estrangeiros, mesmo existindo pequenas alterações no nome ou no formato do programa (Big Brother Brasil, Gran Hermano, etc). Existe uma produtora que produz (passo a redundância) o programa, o conteúdo. E existe um canal ou uma cadeia (nos seus vários canais) que o emite. No caso do ciclismo, acrescentado-lhe cada cadeia o seu comentário.


Quem é responsável pela promoção?

Regra geral a produção é contratada pelo organizador da prova a uma cadeia com conhecimento e expertise na área. No caso de Portugal tem sido a RTP, que tem profissionais com uma vasta experiência a produzir a Volta a Portugal. No caso das provas francesas, é a France Télévisions. Nas provas italianas é a RAI, nas provas espanholas a RTVE. Depois estas subcontratam empresas com pessoal especializado em ciclismo (cameras, motards, etc). Este pessoal roda por várias cadeias, vários países e assim torna o negócio rentável para todos. Sim, os negócios só proliferam a longo prazo se forem rentáveis para todas as partes e, mais uma vez, só é possível um debate sério sobre o tema se procurarmos uma solução proveitosa para todos. Sem equilibro, um dos alicerces parte-se, a parceria termina.

Atrás salientei que é contratada. Porque a maioria das produções televisivas apenas é feita se pagarem às televisões. Aqui e em qualquer lugar. Não, não é como no futebol em que pagam milhões. Nesse paraíso sobre rodas que é Flandres, as provas de ciclismo podem chegar a 80% de share (além dos milhões na estrada). Mas no resto do mundo são inferiores. Muito inferiores. E pagam.



E o futebol?

Num país em que o futebol está em todo o lado, torna-se impossível não o comparar com os outros desportos. Ainda para mais depois das tão acesas discussões a que assistimos recentemente sobre quem tinha lucrado mais, em negócios milionários que envolveram a venda de direitos televisivos, canais, publicidade estática, publicidade virtual e um pouco da alma se dela (ainda) fossem proprietários.

Não sendo eu adepto de futebol, há que reconhecer que o futebol é mais facilmente "vendável" em televisão do que o ciclismo. Podemos até ir mais longe: o ciclismo é o desporto mais caro de transmitir e o mais difícil de vender. (Começa a tornar-se um artigo depressivo? Calma, calma). Explico. Todos os desportos, para subir o seu valor, adaptaram os horários das transmissões para melhorarem o produto televisivo. O futebol é transmitido à noite, horário nobre, com exceção das competições inglesas, estando Inglaterra para o futebol como Flandres para o ciclismo. À parte do futebol, todos os desportos se podem ajustar para o final da tarde/noite ou, pelo menos, para o fim de semana. Já no ciclismo, por se tratar de um desporto ao ar livre, é transmitido durante o dia. E, por geralmente se tratar de eventos multidiários, é transmitido durante a semana. A tarde de quarta e quinta-feira no ciclismo a competir com o sábado à noite da bola. A tarde de trabalho com a noite de copos.

Pensemos no "público-tipo" do ciclismo. 72% dos seguidores da página do Carro Vassoura no facebook tem entre 25 e 55 anos. 94% tem entre 18 e 64 anos. Apesar do público da internet e da televisão não ser o mesmo, posso assumir que a esmagadora maioria dos potenciais adeptos de ciclismo (e de desporto em geral) está em idade laboral. Sim? Posso assumir que a maioria dos adeptos e dos potenciais adeptos de ciclismo, durante as transmissões, está a trabalhar. Penso que estes preconceitos não andarão muito longe da verdade e ninguém se chocará com eles. De resto, os três principais canais generalistas portugueses passam as tardes (de segunda a domingo) a transmitir programas que se dirigem maioritariamente a quem está em idade de reforma. Não é por acaso. É porque é esse o principal público entre as 14h00 e as 20h00. Repare-se que as três televisões partilham esta perceção (baseada também em estudos).


E compensa para os canais portugueses assumir todos os custos para produzir e transmitir a Volta ao Algarve?

Tudo? Muito dificilmente. Não acredito. Qualquer canal, se tem um programa há vários anos, é porque funciona, é rentável. Se RTP, SIC e TVI têm todas as tardes programas semelhantes é porque lhes compensa. Então, para que uma destas cadeias assumisse os custos da produção da Volta ao Algarve, todos os dias a transmissão da Volta teria que gerar um lucro:
  • Igual ao lucro dos programas já emitidos que assim se perdia (chama-se em economês "custo de oportunidade";
  • Acrescido dos 50/60 mil euros diários para pagar os custos da produção.
Mas, se fosse apenas assim, ainda não compensaria. Porque razão um canal iria pagar mais para lucrar o mesmo? Então falta acrescentar um ponto.
  • Acrescido do valor que cubra o risco dos custos suplementares
(Está a torna-se mesmo depressivo. Devia ter encontrado um bode expiatório. Ainda posso culpar alguém? Vá, isto há  de ficar melhor, prometo.)

E vender os direitos?

Ciclismo não é futebol. No futebol vendem-se direitos televisivos, no ciclismo poucos se vendem. Muitas provas - espantem-se - até pagam para ser transmitidas.

Como funcionam

Antes de avançar é necessário compreender como funcionam os direitos televisivos. Estes definem sempre três coisas: determinado canal/cadeia, pode transmitir determinada prova, em determinada região.

Talvez saiba: a RTP transmite a Volta a Portugal na RTP internacional mas a Volta a França não. Mesmo no site, não é possível ver Volta a França fora de Portugal. Tem a sua explicação.

A RTP tem os direitos de transmissão da Volta a França (e este ano Paris-Nice, Paris-Roubaix, Flèche Wallonne, Liège-Bastogne-Liège, Dauphiné e Paris-Tours) para Portugal. Tal como a RTVE tem os direitos para Espanha (Teledeporte pertence à RTVE), a RAI para Itália, a VRT para Flandres (Sporza pertence à VRT), a RTBF para a Valónia e por aí fora. Nunca teremos dois canais em Portugal a transmitir as mesmas provas, tal como não temos no futebol. Ou... mais ou menos. Como poderá ter-se dado conta, existe uma exceção: o Eurosport. O Eurosport tem direitos de transmissão para a Europa, direitos que são não-exclusivos. Mas, excluindo-lo destas contas, verá que em nenhuma região há duas cadeias a transmitirem a mesma corrida tal como não há dois canais a transmitirem o mesmo jogo de futebol.

Explicando o caso anteriormente apresentado. A RTP não pode, por exemplo, transmitir a Volta a França na RTP Internacional porque este está disponível em países onde os direitos pertencem a outros canais. Ao contrário, também se aplica. Nenhum outro canal, português ou estrangeiro, pode transmitir para Portugal porque aqui os direitos pertencem à RTP. Quem tentar, estando em Portugal, ver a Volta a França através do site da RTVE, RAI, Sporza ou outro, encontrará uma mensagem a dizer que a transmissão não está disponível "na sua área geografia" (ou "no seu país").

A venda de direitos no ciclismo

Agora que está um pouco melhor percebida (espero) a limitação dos direitos vendidos, podemos explicar um pouco melhor quem compra e quem vende. E como se paga. De acordo com o interesse que a prova desperta.

Tour, Giro e Vuelta despertam interesse por todo o mundo e há diversos canais que pretendem transmiti-los. Para isso, pagam. E há mais provas que o conseguem. Por exemplo, o organizador da Volta a França, a ASO, tem um pacote que inclui Paris-Nice, Paris-Roubaix, Flèche Wallonne, Liège-Bastogne-Liège, Critérium du Dauphiné e Paris-Tours. Juntar estas provas todas no mesmo pacote é uma forma da ASO garantir a venda dos direitos das seis provas, pois vendendo separadamente arriscar-se-ia a que alguém comprasse as três ou quatro mais importantes e as restantes ficassem sem comprador. No ano passado o pacote pertencia à TVI e tinha transmissão no cabo, este ano pertence à RTP e poderá ter transmissão em canal aberto todo o ano.

Depois existem provas como a Volta ao Algarve, mas também a Andaluzia, Comunidade Valenciana, Qatar e muitas outras (e outros desportos). Os canais podem colocar a condição: transmitir sim, mas sem pagar. Nem pela produção, nem pela transmissão. Nada. Recorde-se o que o organizador da prova valenciana disse durante a mesma: pagava 50.000€ por dia para que a mesma fosse transmitida. A cargo do organizador e de quem o quiser assumir. Ou o caso da Volta ao Algarve, que para ter transmissão internacional em 2012 tinha que oferecer os direitos e ainda (o Turismo) garantir anúncios num valor estabelecido.

Veja-se também o caso dos Campeonatos do Mundo, até 2012 distribuídos pelo Eurosport. Para 2013 foi alterado o modo de comercialização dos direitos, o preço subiu, a Eurosport não esteve disposta a cobrir as exigências pelos Campeonatos do Mundo de ciclismo de estrada, saltou fora. Alguns países ficaram sem transmissão para 2013, como foi o caso de Portugal, onde apenas se chegou a acordo a partir de 2014. Mas mesmo Espanha (que tinha dois ciclistas no grupo de quatro que lutou pelo ouro na prova principal) apenas conseguiu transmissão à última hora, para o último dia, graças a uma empresa que aposta muito no ciclismo e em Espanha.

Assim, se o pagamento não vem do lado de quem transmite, tem que vir do lado da prova. O organizador tem que encontrar os meios para pagar a produção através do que tem para vender, e se não tem comprador para os direitos que baste para pagar as despesas inerentes, resta-lhe a publicidade. No caso, quem mais e melhor se pode publicitar com a transferência da Volta ao Algarve, da Andaluzia, Comunidade Valenciana, Qatar ou Dubai são as próprias regiões e países. Para que a Volta ao Algarve seja transmitida e sirva como cartaz publicitário da região pela Europa e pelo mundo, as entidades do Turismo têm que abrir os cordões à bolsa.

E é nesse ponto, ao qual adiante regressarei, que a transmissão da Volta ao Algarve é rentável. O Turismo paga 300.000 euros para atrair novos turistas que deixarão em Portugal milhões de euros.



E porque não a RTP, enquanto estação pública?

Uma ideia muitas vezes apontada por adeptos é que a RTP, sendo uma estação pública, tem a obrigação moral de transmitir a Volta ao Algarve (e outras provas) "porque há muitos adeptos que querem ver" ou "porque tem um excelente pelotão". A ideia, assim só, não parece incorreta. Mas estes motivos são o bastante para a RTP arcar com todas as despesas da transmissão? Despesa para a RTP, lucro para o Turismo? Não me parece que faça sentido.

Mesmo o argumento que "ciclismo tem muitos adeptos" não justifica que se faça a caridade de arcar com um prejuízo em prol de outras entidades. Eu, enquanto adepto de ciclismo, quero ciclismo na TV. E enquanto adepto de basquetebol, quero a NBA na TV (sobretudo os jogos mais cedo). Como tal, tenho que aceitar que os adeptos de andebol, voleibol, hóquei em patins, futsal... todos queiram os seus desportos em direto, em canal aberto. Mas a RTP não é uma cadeia desportiva. E também há os adeptos do cinema francês ou das séries britânicas. Há quem goste de documentários de vida animal e quem prefira históricos ou culturais. A RTP, pela sua natureza, tem o dever de oferecer uma programação alternativa, algo que outros canais não querem transmitir. Mas isso não significa que tenha que transmitir tudo o que os outros não querem. Voltando atrás. Eu, enquanto adepto de ciclismo, quero ciclismo na TV. Mas eu, enquanto português contribuinte, também quero que todas as empresas públicas tenham uma gestão responsável.


Em suma...

Apesar de ser caro de transmitir, o ciclismo é rentável. Claro. E é muito rentável. Se não o fosse, não haveriam tantas transmissões aos longo do ano. Mas rentável para quem? Para o Turismo.

Imaginemos uma transmissão da Volta ao Algarve pela Europa fora. Bem feita. A mostrar as praias de Lagos e depois de Albufeira, do concelho de Lagoa, a serra de Monchique, as praias dos surfistas e os encantos da Costa Vicentina Algarvia, a Ria Formoso e o Gilão, a Serra do Caldeirão. Exibidos pela Europa fora. Com ciclistas pelo meio, mas lembrando que é uma promoção turística.



Não me parece difícil que estes spots publicitários, de uma hora ou hora e meia de exibição, com cinco dias, convença dez mil turistas europeus a comprarem bilhete de avião e marcarem umas férias. 10.000 turistas conquistados (estimativa muito baixa), a fazerem sete dias de férias e a gastarem €50 por dia são €3.500.000. Três milhões e meio. Assim, simples, contas simples, brutas, apenas para mostrar que é fácil recuperar o dinheiro investido e multiplica-lo por dez. Muito fácil. Mas se o dinheiro é recuperado através da Economia e do setor do Turismo, quem tem que abrir os cordões é o Turismo, o Estado. Seja através do Turismo de Portugal, do Turismo do Algarve ou de qualquer outro desses organismo alimentados por "dinheiro público".

O futuro

Há muita gente a trabalhar, com ideias, com boas ideias, com vontade e competência para que a Volta ao Algarve seja televisionada em direto. E há quem já trabalhe a pensar na transmissão do próximo ano. Mas falta dinheiro. Falta visão a Portugal. Para tanta coisa, falta visão a Portugal.


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