sábado, 16 de novembro de 2013

O valor do ciclismo: a tentação do exagero

A Ag2r tem 15 anos no ciclismo. Riblon venceu este ano no Alpe d'Huez
Existe no meio do ciclismo a forte convicção de que o ciclismo é o mais potente veículo de promoção para uma empresa, marca ou produto, e por esse motivo as grandes empresas deveriam apostar na modalidade. Que PT, TMN, Meo, Galp ou Continente poderiam patrocinar uma grande equipa nacional.

Ainda que o ciclismo seja, de facto, uma extraordinária forma de promoção para os patrocinadores, tal como todos os outros veículos tem as suas limitações. E muitas vezes peca-se por valorizar excessivamente os pontos favoráveis ao ciclismo, não descontando essas limitações.

Gérard Vroomen escreveu recentemente um artigo muito bem sobre a venda do ciclismo e alguns dos erros que são cometidos. Vroomem é desconhecido de 99% dos leitores do Carro Vassoura, o que é perfeitamente normal, pois não costuma expor-se tanto como outros diretores desportivos. Mas foi um dos dois fundadores da empresa Cervélo e co-CEO durante 16 anos, um dos fundadores e diretores máximos da equipa Cervélo TestTeam, atual diretor da revista digital 2r, entre outros projetos que já desenvolveu. Sem dúvida alguém que conhece o ciclismo e sabe o que é necessário para estar na elite.

Quem poder e estiver interessado, poderá ler a sua crónica completa no seu blog (www.gerard.cc). Nesta crónica do Casso Vassoura apenas me debruçarei sobre alguns pontos que considero importantes. Alguns deles já aqui tinham sido abordados mas, claro, com menos autoridade e sem a experiência de causa.

Sobreavaliar a exposição
Quando escrevi "Quanto vale a publicidade nas equipas World Tour?" houve quem se questiona-se sobre a real capacidade de valorar a exposição dos patrocinadores. Sim, é possível. Existem formas corretas de o fazer, que dão mais trabalho e requerem maior recursos, ou formas muito mais simples mas também menos precisas.

O método mais correto será aquele utilizado no estudo do CyclingNews, Bike Brands e Repucom, que serviu de base ao artigo anteriormente citado. Imaginemos que um ciclista vence uma etapa isolado e passa a linha de meta tranquilamente, de braços no ar, mostrando com enorme clareza o patrocinador principal da equipa. Imaginemos que essa fotografia sai no jornal X no tamanho de meia página. Então há que averiguar quanto custa um anúncio de meia página nesse jornal. Se custar, por exemplo, 5000€, então a exposição dessa fotografia, nesse jornal vale 5000€ para o patrocinador principal. Este é o sistema aplicado também para a televisão, rádio e internet, com as necessárias adaptações.

É um exemplo simplificado ao máximo, mas distante da realidade. Porque na maioria dos casos existem outros elementos na fotografia que nada têm a ver com a equipa, como outros ciclistas, público ou placares publicitários de outras empresas. Além disso, uma fotografia, imagens televisiva ou peça radiofónica sobre a prestação da equipa Y não tem o mesmo impacto para o público que teria um anúncio construído por (bons) especialistas em que tudo é pensado. Reparem nos seguintes vídeos:

É verdade que muita gente aproveita os intervalos para ir à casa de banho ou ir buscar algo para comer ou para beber. Não está aqui em causa o confronto entre a atenção dada à corrida vs atenção dada aos comerciais, mas sim a atenção dada à publicidade nas corrida vs a atenção dada à publicidade "em tempo próprio". Quem vê os comerciais perceberá muito melhor a mensagem do anunciante do que ao ver uma prova desportiva, seja ela qual for. Ao ver a vitória do Daniel Martin, o nosso foco está na corrida em si, não nos patrocinadores envolvidos.

Existe ainda um sem-fim de pormenores importantes. Quanto tempo os logótipos aparecem? 5 segundos fracionados por três momentos ou 5 segundos seguidos, permitindo ao telespetador que se foque nele? Com que legibilidade? Quantas vezes o nome do patrocinador é dito na peça de rádio? Em que posição está a fotografia no jornal? (reparem que nos anúncios de rádio o nome dos anunciantes é várias vezes repetido e que a publicidades dos jornais e revistas está quase sempre nas páginas do lado direito).

Todos estes "pormenores" fazem uma enorme diferença e é por isso que aqui falei do Relatório de Patrocínio no Ciclismo Profissional, em que existe essa atenção, e não falei de outros estudos dos quais não conheço a metodologia e não me parece que tal atenção tenha sido prestada. Por exemplo, segundo o estudo anteriormente citado, cada euro investido pelos principais patrocinadores das equipas World Tour teve em 2012 um retorno de 5,4€. Segundo um outro estudo, a equipa vencedor da Volta a Portugal 2012 deu um retorno de 20€ por cada euro investido pelos seus patrocinadores. Será a Volta a Portugal mais rentável para a sua vencedora do que o World Tour? Quatro vezes? Ou haverá um erro de metodologia?

Há uns meses, em conversa com um diretor de uma outra equipa que tinha recorrido aos serviços de uma (mesma) agência, expus-lhe as mesmas dúvidas sobre a metodologia aplicada nestes estudos. Concordou que todos estes pormenores teriam que ser considerados mas não sabia se o tinham sido ou não no estudo que a equipa tinha comprado. Depois do Relatório da Repucom, a diferença é evidente.

Vroomen aponta ainda um erro mais grosseiro. Segundo ele, como diretor da Cervélo TestTeam contactou várias empresas que se dediquem a este tipo de pesquisas para averiguar a exposição da equipa e apresentar aos patrocinadores. A metodologia de pelo menos uma delas consistia em calcular a quantas pessoas chegava a publicidade feita através da equipa e atribuir um valor a cada pessoa. O erro surge quando deram à Cervélo TestTeam a opção de escolher o valor para cada pessoa a quem foi exposta a equipa, podendo escolher entre 1$ ou 10$. Isto é, imaginemos que ao longo da temporada a equipa Cervélo TestTeam chegou a 10 milhões de pessoas em todo o mundo. A equipa (que contrata o serviço da agência) poderá optar por avaliar essa exposição em 10 milhões de dólares ou em 100 milhões. Obviamente a equipa escolherá os cem milhões, mas estará o valor correto? Por outro lado, se for um patrocinador a contratar os serviços, escolherá os dez milhões. Ainda que saiba que o valor real era um intermédio (por exemplo, 40 ou 50 milhões, escolherá os 10 milhões para assim ganhar força nas negociações e baixar o valor do patrocínio.

E não se caia no erro de pensar que quanto maior o valor apresentado, melhor. Para quem está do outro lado, faz toda a diferença. Mesmo que o diretor de marketing da empresa não perceba de ciclismo, se for um bom profissional conseguirá detetar os erros de metodologia como aqueles aqui referidos e, acreditem, poucas coisas são piores do que receber uma proposta com erros destes. Na empresa sentir-se-ão enganados e até os pontos positivos da apresentação ficarão sem efeito perante a desconfiança de que a informação que lhes é apresentada é fraudulenta.

Negligenciar os interesses do patrocinador

Geralmente as equipas nascem da vontade de alguém em montar uma equipa de ciclismo. O segundo passo é procurar empresas dispostas a investir o dinheiro pretendido e é aí que costumam surgir os problemas. Depois usa-se o dinheiro para colocar a equipa na estrada à maneira dos seus diretores, correr onde os seus diretores querem, como os seus diretores querem e no final do ano pede-se mais dinheiro. Os patrocinadores são tidos em conta unicamente nos últimos quatro meses do ano, quando se pretende garantir a continuidade da equipa para o ano seguinte. Essa é uma forma errada de trabalhar.

Repare-se que produtos de limpeza para a casa e marcas de cerveja dificilmente são anunciados no mesmo bloco publicitário na televisão. Isto acontece porque os primeiros são sobretudo comprado por mulheres e, como tal, a sua promoção deverá acontecer no intervalo de programas maioritariamente assistidos por mulheres. Já os os segundos são maioritariamente comprados por homens e por isso a sua promoção deve acontecer no intervalo de programas maioritariamente assistidos por homens. Não interesse apenas quantas pessoas estão a ver o programa mas sim quem compõe a audiência.

Também no ciclismo não nos podemos limitar a contabilizar quantas pessoas estão a ver as nossas marcas. É importante saber quem são essas pessoas e de que forma se encaixam no perfil de clientes ou possíveis clientes de determinada empresa, marca ou produto.

Conscientes disto, antes de abordar possíveis patrocinadores, há que perceber que setores empresariais poderão lucrar com a equipa de ciclismo e que empresas poderão ter os seus interesses publicitários satisfeitos com o apoio à equipa.

Se a equipa pretende que uma parte significativa das suas participações seja no estrangeiro, terá que procurar um patrocinador com interesses comerciais no estrangeiro. De outra forma, no médio e longo prazo não será rentável para o patrocinador, fazendo com que o mesmo rejeite a possibilidade de patrocinar a equipa ou acabe por abandonar o projeto precocemente. Uma empresa que apenas atua no seu mercado nacional não tem qualquer interesse em promover-se no mercado internacional. Desta forma, o dinheiro gasto nessas deslocações é dinheiro jogado à rua. Existem pessoas que, movidas por paixão pelo ciclismo, estão dispostas a fazê-lo. Mas são poucas no mundo,.

Isto não invalida porém a participação nos grandes eventos, como as grandes voltas. Estas acabam por ser notícia além-fronteiras, sobretudo nos países com equipas e grandes ciclistas participantes. Por exemplo, a participação da Movistar no Giro acaba por gerar notícia em Espanha, ou a participação da FDJ acaba por gerar notícia em França (se for meritória a esse nível).

A exposição obtida perante público que não se encaixa no perfil de cliente do patrocinador acaba por ser irrelevante. Imaginemos o caso de uma empresa que apenas atua no mercado do seu país. Será mais compensador ter uma exposição avaliada em 5 milhões de euros exclusivamente no seu país do que um exposição de 10 milhões a nível global, sendo 60% (6 milhões) no estrangeiro.

"Rendimentos passados não garantem rendimentos futuros"

Dizer que se pretende vencer determinada prova não significa que se consiga vencer e isso é fácil compreender. Porém, também é importante perceber que as vitórias do passado não são garantias de vitórias no futuro.

Mark Cavendish venceu 20 etapas do Tour entre 2008 e 2011, o que dá uma incrível média de cinco vitórias por edição. Não apenas cinco vitórias num ano ou em dois, mas em quatro! É algo impressionante! Porém, nada garantia que venceria cinco nos anos seguintes e acabou por vencer somente três em 2012 e duas em 2013. A equipa Omega Pharma-Quick Step não pode garantir aos seus patrocinadores que, por ter Cavendish, este vencerá cinco etapas no próximo Tour. Nem a equipa Argos-Shimano pode garantir aos seus patrocinadores que Kittel vencerá novamente quatro etapas na Volta a França do próximo ano. Basear o valor das suas equipas exclusivamente nessas premissas seria um erro.

Então, que garantias a equipa pode dar aos patrocinadores?

Em vez de garantir uma determinada exposição unicamente com base em resultados que não se podem garantir, será mais apropriada colocar os resultados previstos num intervalo mais amplo. Voltando ao exemplo anterior, a Omega Pharma-Quick Step não pode garantir as 55 vitórias de 2013 ou as 51 de 2012, mas pode garantir que em 2014 será novamente uma das mais vitoriosas e continuará a ser altamente competitiva nas grandes provas, sobretudo nas clássicas. Também uma das que têm melhor argumentos para as grandes voltas.

O que também pode garantir, isso sim, é um conjunto de ações extra-competição, envolvendo os fãs e a comunicação social, que garantam exposição dos patrocinadores além dos resultados. Essas são promessas mais fáceis de cumprir e que as grandes equipas não abdicam, tendo bons profissionais para gerir a comunicação, as relações públicas e as relações com os patrocinadores.

A diferença entre A Equipa e Os Sponsors

Além dos três pontos prévios, não se pode ignorar a diferença que existe entre o que é a equipa e o que são os patrocinadores. Expor a equipa a determinado público não é o mesmo que expor os patrocinadores.

É algo que parece tão simples na explicação mas que faz uma enorme diferença. Garantir uma enorme visibilidade da equipa não significa uma enorme visibilidade dos patrocinadores. Para os patrocinadores não adianta que a equipa tenha um equipamento muito atrativo ou que o mude três vezes a sua cor em doze meses, ou que vença todas as provas se depois (em caso extremo), ninguém souber que produtos vende o patrocinador.

Esse é um problema de muitas equipas e também apontado por Vroomem. Muitos diretores concentram-se "apenas" em resultados e em ter visibilidade, por vezes obrigam os ciclistas a dizer os nomes dos dois ou três principais patrocinadores (mesmo que estejam de fora do nome oficial, está limitado a dois sponsors) mas ignoram a necessidade de ações complementares que mostrem o que é, o que faz e o que vende o patrocinador.

Conclusão

O ciclismo é uma máquina de promoção de enorme potencial, como tantas vezes é dito. Porém, explorar esse potencial de forma correta exige conhecimento, capacidade e trabalho, muito trabalho. O artigo de Gérard Vroomen aborda alguns dos obstáculos com que equipas e patrocinadores se deparam por falta de capacidade ou vontade de trabalhar da melhor forma para explorar esse potencial. A solução por si apontada? É semelhante para equipas e para patrocinadores: trabalhar com as pessoas certas.

Não importa apenas apresentar grandes número se esses números forem irreais. Não importa chegar a muita gente se essas não forem as pessoas certas. Não importa prometer muito se estivermos a prometer algo que não se pode garantir. Não importa que as equipas tenham visibilidade se os patrocinadores não a tiveram também. E jamais tentar enganar os patrocinadores.

6 comentários:

  1. Isto não e ciclismo é uma aula de marketing. O ciclismo mundial devia ser como ciclismo português primeiro passar por clubes depois para as empresas. Os clubes ficam e as empresas não, tiram o patrocinio e depois acabou-se.

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Pedro Samuel, e sem as empresas, como os clubes montariam as suas equipas? Com que dinheiro? Implementava-se bilheteiras para os adeptos? Quotas de sócios? Essas são as principais fontes de rendimento dos clubes noutros desportos: bilheteiras, sócios e patrocinadores. No ciclismo apenas há receitas por patrocinadores.

      Cumprimentos!

      Eliminar
    2. Mas quem disse que as empresas não são fundamentais! Primeiro o clube depois as empresas. Eu digo isso porque em Portugal temos equipas com décadas. Afinal em Portugal nem tudo é mau. É um bom exemplo! Com o clube ficam sempre as bases para ir há procura de outro patrocínio. São precisos clubes de ciclismo como existem clubes de futebol.

      Eliminar
  2. Penso que o atual sistema como a maioria das equipas funciona tem a ver com o marketing de branding. Que é aquele tipo de marketing em que se faz publicidade sem que haja uma capacidade efetiva de medir o retorno de forma exata. Acho que é um pouco disso que se trata o ciclismo.

    É como a coca cola colocar um outdoor a dizer qualquer tipo de slogan sobre a coca cola. Não quer dizer que por tar ali o outdoor muitas pessoas ali perto vao passar a beber mais coca cola, mas certamente a marca vai continuar o cérebro das pessoas.

    Aqui cada vez mais as empresas estão atentas a estes detalhes e expressaste muito bem que hoje em dia os tempos são de vacas magras e as empresas não querem invertir em algo que não é pensado para ter retorno.

    Cada vez mais os próprios responsáveis das equipas devem ter a noção de que é fundamental adaptar-mos a abordagem aos patrocinadores, ou corremos o risco de passar a viver só de patrocinadores que apoiam pelo gosto no ciclismo, e não propriamente a pensar no retorno.

    O melhor artigo que li no carro vassoura até hoje. Parabéns ;)

    ResponderEliminar
  3. Daqui a pouco mais de uma hora vai ser oficialmente conhecida a equipa onde vai correr o Vitor Gamito em 2014,

    Toca a fazer uma crónica sobre isso!!

    Cumprimentos

    ResponderEliminar

Share