sábado, 26 de fevereiro de 2011

“Faz mais barulho o erro de um do que o sacrifício de muitos”

A frase é do Filippo Pozzato numa entrevista absolutamente normal em que, a propósito do caso Riccò, lhe perguntam se o doping no ciclismo é um cancro incurável. “Claro que não. Estamos a fazer muito para sair daí, mas faz mais barulho o erro de um do que o sacrifício de muito”.

Um dos grandes problemas do ciclismo, possivelmente maior até que a existência de doping, é não se saber lidar com isso. Pegando numa outra frase, desta feita de Hein Verbruggen (ex-presidente da UCI): «Nós temos que aceitar que, infelizmente, existe crime na vida normal e, no desporto, o crime é o doping. Sempre haverá pessoas a tentar fazer batota». Isto é algo tão claro como a água. Em todo o lado, em todos os sectores da nossa sociedade, haverá sempre quem esteja disposto a violar a lei para chegar aos seus objectivos. Realçar incessantemente os casos fora da lei, numa área sobre a qual nunca se fala, é desnecessário e mesquinho.

No caso do desporto, ao contrário do que o Verbruggen diz, o doping não é o único crime existente no desporto, como bem sabemos. Existe, por exemplo, o pagamento a árbitros para favorecer alguém ou a compra de jogadores com motivos de apostas, apenas para referir algo bem conhecido por todos, já que o futebol é o desporto rei no nosso país. Passa pela cabeça de alguém que amanhã venha num jornal desportivo que o 12º do campeonato filipino (país escolhido de forma aleatória) de futebol venceu o 14º com um golo em fora-de-jogo? Pois, claro que não. E acham que se um futebolista da 2ª divisão dinamarquesa (também aleatório) acusar doping, será notícia? Pois, também não me parece. Seria desnecessário e mesquinho, como desnecessária e mesquinha é a forma como a comunicação social desportiva aborda o doping no ciclismo. O ciclista X, que corre na equipa Y, lá onde o diabo perdeu as botas, nunca é falado pelos seus resultados, porque é insignificante. Porém, se acusar doping, será notícia.

No fundo, esta situação é apenas consequência da falta de capacidade existente dentro do próprio ciclismo para lidar com o doping. Se até alguns jornalistas (e “jornalistas”) da modalidade têm mais facilidade em escrever sobre doping do que sobre provas, que imagem se passa para o exterior, para quem não segue tão por dentro a modalidade? E se é esta a imagem que transmitem para a sociedade, como se conseguirão patrocinadores?

Como diz o Verbruggen, é uma questão de negócio e de vender mais (ou ter mais visitas, caso se trato de um site… já lá irei). Mas se estas pessoas, que têm espaço para mudar a imagem do ciclismo (ou, pelo menos, não lhe “tocar”) insistem em a piorar, que respeito merecem de nós, verdadeiros adeptos?

Em Portugal, metendo os nomes onde eles existem, temos o caso do “jornal” Ciclismo (jornal de uma pessoa, é jornal?), que tem sempre acesso às acusações de doping e as publica mas nunca aborda o outro lado. Dando apenas dois exemplos que me ficaram na memória: (1) noticiou as acusações do Landis sobre o Armstrong mas nada da defesa do Armstrong; (2) noticiou os problemas de Passaporte Biológico do Pellizotti, Tadej Valjavec e Jesús Rosendo, noticiou que a Liquigás estava a aguardar explicações do italiano mas não informou os seus leitores sobre as justificações do esloveno nem do espanhol. “Curiosamente”, acabaram os 3 inocentados.

Contudo, como já disse noutro artigo, também as entidades que regulam a modalidade têm que ganhar força para manter os possíveis casos de doping em segredo até à sua confirmação. Um ciclista que está a ser investigado, pode perfeitamente fingir uma lesão e ficar de fora da competição durante umas semanas até terminar a dita investigação e ser considerado culpado (e suspenso) ou inocente (e volta a competir). É uma forma simples de evitar casos como o do Contador, do Rui Costa, entre outros, com o “pormenor” de a novela do Contador se ter desenrolado no período entre-épocas. Ou seja, ele nunca teve de abdicar de uma prova por estar a ser investigado. Simplesmente, fez-se muito barulho, denegriu-se a imagem de um ciclista (nunca voltará a ser a mesma) e da modalidade perante os adeptos do desporto e a sociedade em geral, para depois… no pasa nada.

Há modalidades em que não se fazem controlos anti-doping ou se fazem poucos, evita-se ao máximo controlar as estrelas maiores e, quando há um positivo, fazem-se todos os esforços para que ninguém dê conta. No ciclismo, engrandece-se o acontecimento, que muitas das vezes não interessa a ninguém. Enquanto assim for, fará “mais barulho o erro de um do que o sacrifício de muitos”.

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Começam hoje as clássicas belgas (e também as da Primavera), com a Omloop Het Nieuwsblad (Omloop Het Volk até 2008), seguindo-se a Kuurne-Bruxelas-Kuurne no domingo e um sem-fim de outras clássicas durante os próximos meses. Não são “clássicas” por serem provas de um dia, apesar de muitas vezes se usar esse termo para tudo o que é prova de um dia (famosa 1ª Clássica dos Túneis, Lisboa, 2007), mas sim porque são “clássicas” no verdadeiro significado da palavra, e os belgas adoram isto.

Não se pode deixar nada para recuperar no dia seguinte, na montanha tal ou no contra-relógio que haverá. Nas provas de um dia é o tudo ou nada e, nas clássicas, aumenta o desejo de vencer e o público à beira da estrada. O frio, a chuva, ou a lama, quando existem, não atrapalham o espectáculo mas sim amplificam os feitos heróicos dos ciclistas. Porque lá na Bélgica, homens como Tom Boonen ou Philippe Gilbert não são apenas ídolos para os adeptos do ciclismo, são heróis de um povo.

Apesar de gostar muito do “ciclismo latino”, com o Tour, o Paris-Nice que está aí à porta e outras provas do género, sou um pouco flemish no que toca a tipo de provas favoritas.

PS: A foto escolhida para acompanhar este artigo tem apenas a ver com o segundo tema abordado, porque é isto que é bonito: ciclismo de ciclistas, público e festa.

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