A 19 de Agosto escrevi sobre o futuro do ciclismo profissional em Portugal e as dúvidas que existem, e apesar da extensão do texto houve grande interesse por parte dos leitores. Passados mais de dois meses, as dúvidas permanecem e são cada vez mais pertinentes.
Há 3 ou 4 anos atrás, ainda a Volta a Portugal estava na estrada quando se começava a falar de transferências para a temporada seguinte. Agora, quase a chegar a Novembro de 2011, ainda não há notícias sobre as composições das equipas para 2012 e nem se sabe quantas equipas “profissionais” estarão na estrada. Mesmo que continuem a ser quatro como no ano passado, não haverá mais do que três ou quatro corredores a poderem “gabar-se” de ser profissionais em Portugal.
O ciclismo “profissional” português está num estado insustentável e coloco as aspas porque as ditas “equipas profissionais” têm orçamentos cada vez mais reduzidos, as condições que oferecem aos ciclistas são cada vez piores e poucos são os que ainda se podem considerar ciclistas profissionais. Olhando ao número de portugueses no estrangeiro, que continua a subir de ano para ano, Portugal é cada vez mais um país exportador mas cada vez tem menos mercado interno. A própria falta de mercado interno é um motivo para que cada vez haja mais portugueses no estrangeiro. Se fosse há três ou quatro anos, o Vítor Rodrigues e o José Mendes nunca teriam ido correr, respectivamente, para a Caja Rural (2010) e CCC (2011), pois conseguiriam melhores condições em Portugal. Mesmo o Manuel Cardoso, o Hernâni Brôco e o André Cardoso talvez conseguissem melhores condições numa Liberty Seguros ou Benfica que investisse neles para a Volta a Portugal do que a Caja Rural (apesar de eu não saber quanto estão a ganhar lá e daí o “talvez”). Actualmente, o corredor pior pago da Caja Rural deve estar ao nível dos melhores pagos do pelotão nacional.
A bola de neve é fácil de entender e já aqui falei dela. Quantas menos equipas existirem, menos vagas há para corredores, que consequentemente baixam as suas exigências. Alguns chegam mesmo ao ponto de aceitar correr de borla, o que baixa o valor de todos os outros. Afinal de contas, se um corredor era pago a 1000€ por mês e aparece outro, ainda que de qualidade inferior, a dispor-se a carregar bidões por 300€, 200 ou até nada, qual acham que é escolhido?
Os motivos para isto são simples de entender. Uns fazem-no porque começa a ficar tarde, ainda não têm equipa e não querem admitir que não têm espaço no pelotão profissional, ou sonham com o dia em que vão ter talento para o ciclismo e vão ganhar algo. Outros fazem-no porque ainda não têm equipa e não querem procurar outro emprego, ou porque não têm estudos e não sabem fazer nada para além de andar de bicicleta ou porque simplesmente só gostam de andar de bicicleta. Já inclusive houve quem se oferecesse para correr de borla apenas por não ter ninguém interessado nos seus serviços e porque a família o podia sustentar. Os motivos podem ser vários, mas independentemente do motivo de cada um, esses andadores de bicicleta prejudicam o mercado.
Depois, como é claro, se antes as equipas pagavam a doze corredores e passam a pagar apenas a dez com dois de borla, o orçamento diminui, e se o orçamento de uma equipa diminui, as restantes também podem diminuir, o que, em época de crise e com os patrocinadores a escassearem, vem mesmo a calhar. Outra consequência é que, se a qualidade deixa de ser o único factor para se escolher quem entra no pelotão profissional e quem não entra, então o pelotão perde qualidade e as provas pioram. Se as provas perdem qualidade e atraem menos interesse, então é mais difícil arranjar patrocinadores, pois as empresas não querem patrocinar eventos de cicloturismo e com isto vão desaparecendo provas. Se desaparecem provas, os dias de retorno publicitário são menos, há menos empresas interessadas em patrocinar equipas e estas desaparecem. Como dá para ver, é uma enorme bola de neve, que vai engolindo o ciclismo português.
Do ponto de vista dos organizadores…
Para os organizadores de provas, a falta de qualidade do pelotão não é o único problema provocado pelo final das equipas portuguesas. Se antes conseguiam fazer um pelotão de dezasseis equipas com nove ou dez portuguesas e três ou quatro espanholas, em 2011 apenas tinham quatro equipas profissionais portuguesas e sete espanholas, sendo que duas delas, por serem World Tour, têm um calendário super carregado e outra era a Geox que também não tinha muito espaço vazio no seu calendário. Contando que as outras quatro equipas espanholas estariam presentes, os organizadores portugueses tinham duas opções: manter as provas nos mesmos escalões e convidar seis ou sete equipas de fora da Península Ibérica para se juntar às oito ibéricas, ou baixar as provas de categoria e convidar as formações amadoras portuguesas. A primeira opção necessitaria de um orçamento maior, a segundo permitia uma redução de orçamento. Os organizadores fizeram o que podiam.
Situações diferentes de todas as outras provas vivem a Volta a Portugal e a Volta ao Algarve. Sobre a Volta a Portugal, já muito falei no texto de 19 de Agosto e lá voltarei mais adiante.
Quanto à Volta ao Algarve, tem sido falado que o seu futuro está em risco. Tal como no ano passado, há dois anos e há três… Mais uma vez, é pedido que o Estado apoie mais fortemente a prova, mas não podemos ignorar a crise que se vive no nosso país e os cortes na despesa que o Estado tem que fazer.
A meu ver, o Estado tem que possibilitar que se pratique desporto, mas essa necessidade é sobretudo para os escalões de formação. O Estado tem que possibilitar que os nossos jovens se possam desenvolver como ciclistas, atletas, basquetebolistas, andebolistas, nadadores, etc, deve também criar condições para que possam ser desportistas profissionais mas não tem que ser o Estado a financiar grandes eventos desportivos. É verdade que nos últimos anos houve candidaturas portuguesas para a Taça América (vela) e para a Ryder Cup (golfe) e havia apoio do Estado, com o Turismo de Portugal a investir milhões. Investir é palavra-chave. Se a Associação do Algarve de Ciclismo pretende que o Estado invista mais, é necessário que haja um projecto convincente, que não deixe o Estado com dúvidas quanto á rentabilidade de apoiar a prova. Porque pode ser rentável! Transmitir a Volta ao Algarve para toda a Europa pode ser muito rentável para o país e especialmente para a região, mas certamente é necessário investimento e o Estado, na situação em que está, não vai investir se não o convencerem. Não esperem é que os responsáveis pelo Turismo de Portugal conheçam o potencial da Volta ao Algarve tão bem quanto os adeptos deste desporto (se bem que estes, na sua generalidade, têm uma visão do assunto que peca por excesso). É preciso mais do que conversas e ameaças de que a prova está em risco. Como escrevi em Fevereiro passado, 2+2 são sempre 4, mas 4 nem sempre é suficiente.
O que tem que ser feito
Sabem os meus leitores habituais, que costumo basear os meus artigos em opiniões pessoais e respeito sempre quem têm opiniões contrárias à minha. Porém, penso que todos concordarão que algo tem que ser feito e que o ciclismo português tem que ser remodelado.
O ciclismo português está cada vez mais semelhante ao colombiano, em que existem três ou quatro equipas continentais com condições inferiores às nossas (cada vez menos inferiores, é verdade) e mais algumas não-UCI, correm as mesmas provas durante quase todo o ano e têm como ponto alto a Volta à Colômbia. No final do ano há dois ou três que se destacaram e vêm para a Europa. A vantagem de adoptar o modelo colombiano seria uma redução de custos para as equipas e provas, as desvantagens seriam praticamente isolar o país da Europa, tornar muito mais difícil que os nossos melhores corredores saiam para grandes equipas e que se volte às condições que existiam em 2007 ou 2008. Apesar da necessidade de alterar o estado de coisas, há que manter os poucos e frágeis filamentos que nos unem a um patamar superior onde já estivemos e ao qual queremos voltar.
O que pode ser feito
Durante esta semana, o Jornal Ciclismo apresentou algumas medidas que poderiam ser implementadas. Como vem sendo hábito, o artigo não é assinado e eu parto do princípio que o artigo é da autoria de José Santos, director desportivo do Boavista de João Cabreira e director do site que desde a Volta a Portugal vem lançando suspeitas sobre a equipa de Tavira.
Uma das propostas apresentadas passa por permitir que apenas 60% dos corredores de cada equipa sejam profissionais, argumentando que facilitaria a criação de equipas e aumentaria o número de profissionais, se em vez de quatro equipas de dez profissionais houvesse sete equipas de seis profissionais (42 no total) e quatro amadores. Porém, esse raciocínio é desenvolvido sobre duas grandes mentiras: a primeira, de que o salário mínimo é respeitado, pois todos sabemos que muito poucos corredores estão a ganhar os mil euros mensais estipulados como mínimo; a segunda, que os corredores recebem doze salários por ano, quando na verdade apenas recebem oito ou nove, conforme os casos. Retirar as poucas condições que têm a 40% dos profissionais, não é tolerável.
Proponho eu uma alternativa: e se em vez do actual salário mínimo de mil euros que não é respeitado, porque não baixar esse salário para 700 ou 600€ mas com um controlo apertado para ter a certeza de que ninguém passa daí para baixo? Pode parecer muito pouco e é mesmo muito pouco, mas mais de metade do pelotão nacional está a receber menos do que isso. Ao baixar o mínimo estipulado pelo regulamente, talvez aqueles poucos que estão a cima dele vejam o seu salário reduzido, mas ao aumentar a vigilância para que o novo mínimo seja cumprido, estar-se-á a proteger os corredores e a aumentar a qualidade do pelotão e das corridas. Assim, em vez das equipas contratarem quem aceita correr por menos, contratariam quem tem qualidade. Sim, é verdade que, para o regulamento ser cumprido no que toca ao salário, é necessário que alguém denuncie as ilegalidades e quem aceitou correr de borla não denunciará a situação. Mas e se a denúncia partir dos corredores que vão para o desemprego por não aceitarem submeter-se a esta falta de condições? É uma hipótese.
Como medida de auxílio às equipas, poderiam ainda aceitar que o limite fosse ligeiramente inferior para corredores no primeiro ano de profissionalismo, sendo que não poderia haver mais do que dois corredores por equipa nesta situação (apesar de poderem ter quantos neo-pros quisessem) e que os contractos destes teriam que ser de dois anos e no segundo ano com o mínimo “normal”. Assim, as equipas mais facilmente daria oportunidades aos mais novos e escolheriam quais os sub-23 que mereciam essa oportunidade, pois não os poderiam descartar no final da primeira temporada. Não existindo obrigatoriedade de ter neo-pros, esta medida consistiria apenas numa forma de baixar os gastos das equipas que a quisessem aproveitar e de promover a renovação do pelotão nacional.
A Volta a Portugal
Como todos sabemos, o ciclismo português depende essencialmente da Volta a Portugal e este ano tivemos uma Volta a Portugal disputada entre uma dúzia de corredores, o que apaixona pouca gente. É importante subir o nível da prova sem aumentar os custos, se possível, até reduzindo.
Em 2012, continuará a ser difícil atrair equipas estrangeiras de qualidade aceitável, pois a Volta a Portugal continua a ter doze dias. O problema não é coincidir coma Vuelta, o problema é ter doze dias e enquanto assim for coincidirá sempre com outras provas. Em relação ao ano passado, continua a sobrepor-se à Volta a Dinamarca, importantes provas por etapas francesas e clássicas italianas, sendo a diferença principal que, em lugar de coincidir com o final da Volta à Polónia e início do Eneco Tour, coincide com a Vuelta. Na prática, já era como se coincidissem em 2011, pois a distância era tão pouca que todas as equipas preferiam usar a Volta a Burgos como preparação para a Vuelta e só vinham a Portugal dois ou três corredores que desistiam a meio e depois estariam na Vuelta. Esta situação é até melhor se considerarmos que Euskaltel e Movistar poderão correr em simultâneo a Vuelta e a Volta (se nisso tiverem interesse), enquanto anteriormente era demasiado carregado fazer Polónia, Eneco, Burgos, Portugal e Espanha.
Uma grande vantagem em relação a 2011 é que Burgos 2016 e Orbea poderão estar presentes, o que não aconteceu no ano passado por estarem a correr a Volta a Burgos. Por serem equipas com onze ou doze corredores, não podem correr duas provas em simultâneo mas, uma vez que não podem correr a Vuelta por serem apenas continentais, poderão estar na Volta.
Para manter a Caja Rural e a Andalucia presentes e facilitar a vinda de outras equipas, como as já referidas Movistar e Euskaltel (sem as grandes figuras, evidentemente), uma boa medida passava por reduzir o número de corredores por equipa de nove para oito, como sugere o Jornal Ciclismo (no meio de tanta coisa, nalguma hei-de concordar com eles). Equipas de nove para a Volta a Portugal é um hábito antigo sem qualquer lógica no panorama actual, em que apenas nas três grandes voltas e na Volta a Portugal as equipas são de nove elementos. Reduzindo para oito o número máximo, os custos para a organização seriam menores.
Se alterar o limite máximo de corredores apenas depende do organizador, a última medida que proponho depende de autorização especial da UCI. Muito se tem falado se a Volta se deve manter na categoria 2.1 ou baixar a 2.2, permitindo assim a presença de equipas amadoras. Se assim fosse, os custos seriam menores para a PAD e mais equipas e corredores portugueses poderiam correr a prova, mas com isto ninguém se interessaria em fazer equipas profissionais. Quem é que quereria fazer uma equipa profissional, se com uma amadora poderia correr todo o calendário, excepto Volta ao Algarve e duas ou três provas em Espanha às quais costumam ir? Rapidamente Boavista e Tavira (que por esta altura ainda procuram patrocinadores principais) baixariam as suas equipas para o escalão amador, seguir-se-ia Efapel, Paredes e dificilmente apareceria alguém interessado em fazer uma equipa profissional, acabando assim o ciclismo profissional em Portugal.
O que eu proponho, e que teria que ser autorizado pela UCI, é que, perante a situação extraordinariamente grave em que o país se encontra, se permitisse que duas ou três equipas amadoras disputassem a Volta. Haveria um Ranking até aos Campeonatos Nacionais e as duas ou três equipas amadoras que mais pontos somassem teriam direito a participar na Volta, com uma equipa sobretudo de corredores sub-23 e apenas dois que ultrapassem essa idade. Assim sendo, as equipas profissionais e que querem vencer a Volta a Portugal, continuariam a ter a vantagem de levar conjuntos teoricamente mais fortes, as melhores equipas amadoras teriam a hipótese de correr a Grandíssima e ter um maior retorno publicitário, os jovens sub-23 teriam mais hipóteses de se mostrar e a PAD teria mais equipas portuguesas, o que baixaria os custos da prova. Não é fácil, mas para situações extraordinárias, medidas extraordinárias. Há que tentar.
Terminado mais um extensíssimo texto, que venham daí as vossas opiniões sobre estas sugestões e outras de vossa autoria.
PS: Obviamente a redução de custos com policiamento seria um importante alívio para os organizadores e com isso todos concordamos, por isso nem vale a pena ir por aí.