segunda-feira, 29 de outubro de 2012

O que é afinal o doping?

Doses de Eritropoietina. Tem fins terapéuticos, mas é mais
mediática por ser uma substância proibida na desporto
Durante os últimos dias falou-se em doping no ciclismo como há muito tempo não se falava, talvez desde 2006, quando estoirou a Operação Puerto (que vai a julgamento em breve). Mais do que a condenação de um ciclista e que o abandono de vários patrocinadores, alguns deles com muitos anos na modalidade, vimos nas últimas semanas que a forma como o doping está no ciclismo é insustentável. Numa próxima crónica vou apresentar a minha ideia e proposta de reformulação sobre esse assunto, mas antes é necessário falar um pouco sobre o que é o doping, pois nestes dias viu-se muita confusão, inclusive nalgumas pessoas ligadas ao desporto.


Definição de doping

Não quero ser chato, mas não há nada melhor para definir doping do que o próprio código da Agência Mundial Anti-Doping (AMA em português, WADA em inglês). Segundo este código, doping é definido pela ocorrência de uma ou mais das seguintes violações anti-doping:

1. Presença de uma substância proibida ou seus metabólitos ou constituintes numa amostra de atleta; 
2. Uso ou tentativa de uso, pelo atleta, de substância proibida ou método proibido;
3. Recusar ou impedir, sem justificação adequada, submeter-se à recolha de amostra após notificação de acordo com as regras anti-doping;
4. Violação da disponibilidade exigida ao atleta para realizar testes fora-de-competição, incluindo o não preenchimento dos formulários de localização. Qualquer combinação de três testes falhados dentro de 18 meses, constituirá uma violação ás regras anti-doping;
5. Adulteração ou tentativa de adulteração de qualquer parte do controlo anti-doping;
6. Posse de substâncias proibidas ou métodos proibidos;
7. Tráfico ou tentativa de tráfico de qualquer substância proibida ou método proibido;
8. Administração ou tentativa de administração para qualquer atleta em competição de qualquer método proibido ou substância proibida, ou administração ou tentativa de administração para qualquer atleta fora de competição de qualquer método proibido, substância proibida, encorajamento, auxílio, ocultação ou qualquer outro tipo de cumplicidade envolvendo a violação ou tentativa de violação de uma regra anti-doping.

Não vou estar a traduzir tudo, porque o texto é massudo e demasiado científico, mas aqui fica em traços gerais. A AMA define no seu Código o que é proibido, o Governo Português aceitou-o em Decreto e depois cada Federação nacional só tem é que o aceitar.


Exemplos

Daí cai logo um dos erros que muitas vezes ouvi nos últimos dias, incluindo de figuras ligadas ao desporto: "isso é doping no ciclismo, mas no futebol/basquetebol é permitido". Errado! Quando os médicos de Zinedine Zidane, Xavi Hernández, entre outros, falam abertamente de transfusões sanguíneas como sendo um processo moderno de ajudar na recuperação, estão a falar de doping. Não é a UCI que defini transfusões sanguíneas como doping, mas sim a Agência Mundial Anti-Doping. Aliás, o Código da Agência Mundial Anti-Doping foi criado para acabar com a anterior confusão de que algumas substâncias e métodos eram proibidos nuns países mas não em outros, ou nuns desportos mas não em outros.

Outra confusão bastante frequente é de que algo é doping porque melhora o rendimento. Não necessariamente. É doping tudo o que é proibido pela AMA e há vários motivos para algo ser proibido. Pode ser realmente a melhoria física que causa mas também pode ser o caso de outras drogas, como a cannabis, haxixe, cocaína, heroína, que obviamente não causam qualquer benefício na esmagadora maioria dos desportos. Ainda assim, em 2008 e 2009 houve o debate se Tom Boonen deveria ou não ser condenado pelo uso de cocaína. Efectivamente, ele violou o Código da AMA, mas acabou por não ser suspenso por se tratar de uma violação que não melhorava o seu rendimento.

Mesmo as substancias que aumentam o rendimento desportivo, não aumentam de igual forma em todos os desportos. Por exemplo, existem substâncias que aumentam a concentração e podem representar uma significativa ajuda a xadrezistas ou atiradores, mas não a ciclistas ou maratonistas, há substâncias e métodos que ajudam na recuperação (como a EPO ou as transfusões), há substâncias que aumentam a força, enfim... existem muitos desportos, várias capacidades necessárias em cada um deles e várias substâncias que aumentam algumas capacidades mas não todas, e consequentemente são úteis numas modalidades mas não noutras.

E essa substâncias e métodos proibidos que aumentam o rendimento desportivo, há que ter em conta que nada foi criado com esse propósito. Trata-se sim de medicamentos criados para combater doenças. Por exemplo, EPO (abreviatura de Eritropoietina), é muito utilizada no tratamento a cancros.

Há ainda a situação de que algumas substâncias apenas são consideradas doping a partir de uma certa quantidade. Por exemplo, até 2003 (salvo erro), a cafeína era proibida a partir de 12µg/mL (equivalente a 3 cafés em pouco tempo, segundo leio na internet), mas entretanto saiu da lista de substâncias proibidas e assim deixa de ser doping. Tornou-se menos benéfica para os desportistas? Não, mas saiu da lista e é isso que faz a diferença entre ser ou não ser doping.

Mas, como se sabe, não é necessário acusar nenhuma substância proibida para violar o Código da AMA. Por exemplo, Michael Rasmussen violou o ponto 4 em 2007, quando foi estagiar para Itália para preparar a Volta a França mas disse que ia para o México. Outro exemplo é o de João Cabreira, que foi suspenso pelo Conselho Disciplinar da FPC, depois foi inocentado pelo Conselho Jurisdicional por não ter acusado nenhuma substância proibida, mas finalmente foi suspenso pelo TAS porque uma substância encontrada na sua urina consistia uma violação ao ponto 5.


Sumário

Quem dirige o ciclismo não pode decidir o que é proibido, mas não tem que fazer tudo como está a fazer. Lance Armstrong perdeu sete Voltas a França por testemunho de colegas, sem a sua admissão. Zidane e Xavi (entre outros) admitem que fazem transfusões e nada se passa. Será que é o ciclismo que está certo? Fica a pergunta no ar até à próxima crónica... mas quem quiser, pode desde já ir comentando.

3 comentários:

  1. Não me parece intelectualmente honesto trazer os casos do futebol à baila dessa forma. Primeiro, o código da WADA só está em vigor desde 1 de Janeiro de 2009, ou seja, antes disso praticamente cada federação podia ter as suas próprias regras. Logo, o caso de Zidane está "fora-de-jogo" e o de Xavi está "em cima do risco". Em segundo lugar, o código da WADa não prevê sanções, pelo que, mesmo aplicando o código da mesma forma em todo o lado, as punições não podem ser comparadas.

    Para outras núpcias fica a discussão sobre o efeito do doping num desporto onde pode haver substituições, os desportistas não precisam de participar em todos os eventos da competição para serem considerados vencedores, etc. Há doping no futebol, sem dúvida, mas a forma correcta de abordar não é esta.

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  2. Obrigado pelo comentário, Anónimo, mas o Código da AMA entrou em vigor em 2004. Entretanto sofreu reformulações, mas não é verdade que só esteja em vigor a partir de 2009.

    Além disso, "não parece intelectualmente honesto trazer casos de outros desportos" porque convém a muita gente que haja dois ou três desportos que sejam tratados de forma diferente. Mas disso, falarei mais adiante ;)

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  3. Excelente post!
    Fico a aguardar a proxima cronica!

    Cumps,
    JN

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