sábado, 3 de novembro de 2012

Doping. Como encarar?

O ciclismo está cada vez menos atractivo para os patrocinadores e prova disso é que para 2013 apenas há 19 equipas interessadas em ser World Tour. Já não é um problema motivado  apenas pela crise em países como Espanha e Itália. Depois dos recentes escândalos de doping, vários patrocinadores de peso deixaram a modalidade, como foi o caso da Rabobank, da Q8 (empresa petrolífera do Kuwait que durante 7 anos patrocinou a Quick Step e várias clássicas belgas), a Bigmat (2ª patrocinadora da FDJ) ou a Chipotle (principal patrocinadora da equipa sub-23 da Garmin e ex-2ª patrocinadora da equipa principal). Algumas delas disseram que os recentes casos de doping não eram o motivo, mas o certo é que, tendo que cortar em publicidade, escolheram cortar no ciclismo... porque já não é atractivo. Será que a luta anti-doping está a ser feita da forma certa?

Antes de continuar, é recomendável que tenham lido o artigo anterior, O que é afinal o doping?. É também necessário perceber que ninguém se dopa devido à dureza do desporto, tal como nenhum político aceita subornos por dificuldades financeiras. Políticos (e outras "figuras de respeito") aceitam subornos para ser mais ricos; desportistas dopam-se para ser mais rápidos, mais fortes, mais resistentes, terem mais concentração etc, etc. 

Não se trata de "vou dopar-me para conseguir subir o Alpe d'Huez", mas sim de "vou dopar-me para subir mais rápido"; não se trata de "vou dopar-me para aguentar a maratona", mas sim de "vou dopar-me para ser mais rápido" (mesmo que seja nos 100 metros ou na corrida para o salto em comprimento"; não se trata de "vou dopar-me para cabecear melhor e ter mais pontaria de remate", mas sim de "vou dopar-me para saltar mais alto e chutar mais forte, do primeiro ao último minuto"; não se trata de "vou dopar-me para aguentar um jogo de ténis", mas sim de "vou dopar-me para chegar àquela bola do último set e estar mais fresco para a colocar onde quero"; e etc, etc.

Não tenham ilusões sobre isto: o doping existe em todas as modalidades. Não digo que todos os desportistas se dopem (longe de mim dizer tal coisa), mas existe doping no pelotão do Tour, na maratona dos Jogos Olímpicos, no Campeonato do Mundo de futebol, no Roland Garros ou no Torneio de Wimbledon, na NBA, etc, etc. Não é por isso que o desporto se torna menos belo.

A muita gente não convém que se fale de doping noutros desportos, mas não podemos tratar o ciclismo como um caso isolado. Recuso-me a abordar o problema como se só no ciclismo existisse doping. A quem pensa o contrário, quem quer acreditar que só nesta modalidade existem batoteiros, sugiro que pare de ler aqui e feche a página.

Por exemplo, a Agência Mundial Anti-doping não tem autorização para fazer controlos na NBA, sendo a própria Liga a responsável pelo programa anti-doping, o qual é criticado pela AMA. A NBA não quer (e não pode) apanhar uma estrela com doping. Isso era mau para o negócio e, como já disse, o desporto não se torna menos belo por isso.

Os adeptos chegam a pagar mais de 300 dólares para estar próximos dos jogadores ou 100$ a uma distância "não muito longe" (valores de um "jogo normal") e não se importam com o que os jogadores tomam. Em média, cada equipa joga 15 jogos por mês, chegam a jogar 3 jogos em dias consecutivos (em casa, ou estados vizinhos) e fazem muitas viagens de 4 e 5 horas de avião. Quem vai aos pavilhões ou quem vê em casa (como eu) apenas quer que eles saltem, corram, sejam agressivos a defender e habilidosos a atacar. Se antes tomaram um batido de morango ou hormona de crescimento? Ninguém pensa nisso.

Outro exemplo interessante de ver é o do ténis, que já publiquei na página Facebook do Carro Vassoura. Há alguns anos que se percebeu como funcionava o doping e que os controlos mais efectivos não eram os feitos em competição, mas sim fora dela. Segundo a Federação Internacional de Ténis, em 2011 fizeram 21 controlos sanguíneos fora de competição (18 masculinos, 3 femininos) e 110 em competição. No ciclismo, no mesmo ano, foram feitos 3314 controlos sanguíneos fora-de-competição, 631 em competição, 1299 em pré-competição e 601 em pré-competição para controlo dos níveis sanguíneos (penso que seja para Passaporte Biológico).

São 131 controlos sanguíneos no ténis, 5845 no ciclismo. Assim, não é de estranhar que se encontrem mais "dopados" no ciclismo do que no ténis. O que ganha o ciclismo com tantos controlos? "Limpeza" não ganha, pelo contrário, perde patrocinadores e credibilidade. Alguém gosta menos de ténis por ter menos controlos anti-doping e, consequentemente, ser maior a hipótese de ter campeões dopados não-detectados? Não, o ténis não perde nada por isso, como não perde a NBA ou nenhuma outra competição/modalidade.

Com isto, não quero defender que, porque se dopam noutros desportos, se devem dopar no ciclismo. O que estou a colocar em causa é obsessão com a luta anti-doping, nomeadamente através de suspensões exemplares. Olhemos para a história do doping no ciclismo.

Olhando sobre o passado...


Ainda nos anos 50, Fausto Coppi admitiu que usava "a bomba" (para a asma) de modo a aumentar o seu rendimento, Eddy Merckx acusou positivo por três vezes (foi expulso do Giro 1969 que liderava e perdeu um Giro di Lombardia 1973), Joop Zoetemelk acusou várias vezes, Joaquim Agostinho perdeu duas Voltas a Portugal, Marco Chagas uma e foi expulso de mais duas.... e o que acontecia na altura? Eram expulsos da prova e regressavam na prova seguinte. Merckx, depois de ser expulso do Giro 1969, ganhou a Volta a França desse ano. Bernard Thévenet, depois de ser expulso do Paris-Nice 1977, ganhou o Tour desse ano (e já tinha ganho em 1975). Nada disso impediu que todos eles fossem estrelas nas suas épocas.

Olhando hoje para o passado, esses castigos parecem excessivamente curtos, mas não podemos ignorar que nessa época o ciclismo ganhou muita popularidade na Europa e poderia ter ganho em todo o mundo se existisse o universo digital que existe hoje e que nos permite acompanhar o que se passa em qualquer lugar do mundo.

...olhando para o presente...


A partir da década de 90, com o objectivo de acabar com o doping no ciclismo, endureceram-se os castigos. Em vez de cada controlo positivo dar uma expulsão de prova, o primeiro positivo passou a dar dois anos de suspensão. Actualmente o primeiro positivo resulta numa suspensão entre dois e oito anos e o segundo entre 15 e 20 anos. Isso acabou com o doping no ciclismo? Não.

Até há pouco tempo eu defendia que a primeira suspensão devia dar imediatamente irradiação, excepto se o ciclista colaborasse com as autoridades e denunciasse o traficante, isto para combater a omertà que, como na máfia, existe no ciclismo: quem não diz nada, cumpre a suspensão e volta; quem denunciar o traficante ou a equipa, está fora do jogo.

Olhando o que se tem passado nos últimos anos, acho que estamos a pecar por excesso. Não apenas por Armstrong, sobre o qual já escrevi muito e não me vou repetir, mas olhemos para o caso de Alejandro Valverde. Em 2009 o Comité Olímpico Italiano (CONI) conseguiu demonstrar cientificamente que havia sangue seu na posse de Eufemiano Fuentes, em Maio foi suspenso por dois anos em território italiano mas apenas em Maio de 2010 a suspensão foi alargada a todo o mundo (até final de 2011), sendo-lhe retirados os resultados conquistados desde o início de 2010, incluindo uma Volta Mediterrânica, uma Volta à Romandia, duas etapas na Volta ao País Basco e pódios no Paris-Nice, Volta ao País Basco e Liège-Bastonge-Liège.

Pior foi o caso de Contador, que teve um controlo positivo no Tour 2010 (apesar de não melhorar o rendimento uma quantidade tão reduzida de clembuterol, é positivo) e a suspensão só chegou em Fevereiro de 2012, perdendo todos os resultados desde a data do controlo, incluindo um Giro d'Itália (e muito mais) em que não acusou positivo. A história não se reescreveu e o Giro d'Itália 2011 foi mesmo ganhou por Contador, mas acrescentam-se páginas e neste caso é um continuo acrescentar de páginas negras.

Estes casos mostram o quanto a UCI e restantes autoridades do ciclismo estão dispostas a pisar e repisar cada caso, o que torna o ciclismo na modalidade ideal para as agências anti-doping de cada país. As agências têm que mostrar serviço, tal como a GNR ou PJ. No caso da PJ são necessárias algumas investigações mais mediáticas, a GNR tem que fazer Operações Stop em que chame a polícia para se mostrar e as brigadas anti-doping têm que apresentar casos de doping para manterem as verbas estatais. Para ter controlos anti-doping positivos, basta procurar e o ciclismo é a modalidade ideal.

Pensemos no caso de Portugal. Modalidades sem destaque mediático, como bilhar às três tabelas ou saltos para a piscina, não aparecem nos jornais. Como tal, não vale de nada ter controlos positivos aí, que só vão ser abordados pela comunicação social no balanço de final do ano. Por outro lado, temos uma modalidade extremamente mediática: o futebol. Mas aí há outros problemas. Jogadores dos principais clubes não podem ser apanhados, porque as grandes empresas e grupos empresariais que patrocinam os grandes clubes, a selecção, a Liga e as restantes grandes competições são os grandes patrocinadores das campanhas políticas. Se quem paga as campanhas têm interesses nos clubes, estes tornam-se intocáveis (veja-se o Caso Nuno Assis, em que a ADoP conseguiu suspender o jogador mas não conseguiu que o seu clube fosse investigado). E à parte dos jogadores dos principais clubes, não vale a pena a ADoP se mexer, porque depois a suspensão ficaria a cargo da Liga ou da Federação Portuguesa de Futebol e seria de apenas alguns jogos.

Já o ciclismo é uma aposta segura em quase todos os países, pois um controlo positivo no ciclismo dá lugar a manchetes em jornais e espaço de antena na televisão, onde é aplaudido o trabalho das agências anti-doping. Isto não é válido em quase todos os países.

Alguém se lembra de recentes casos de doping de belgas, holandeses ou ciclistas de equipas destes países? Na Bélgica e na Holanda o ciclismo é tão popular quanto o futebol, grandes empresas investem em equipas e provas de ciclismo e a modalidade é tão protegida quanto o futebol em Portugal. O único caso recente foi o de Boonen com a cocaína, mas esse não foi tratado como um caso de doping "normal". Foi sim tratado como uma figura pública muito acarinhada (como um futebolista em Portugal ou uma grande estrela da música) que era consumidor de drogas pesadas.

Além disso, o ciclismo já está tão marcado que é muito mais fácil convencer alguém de um controlo positivo no ciclismo do que em outras modalidades virgens (ou pseudo-virgens).

...e olhando para o futuro


Não vão conseguir acabar com o doping. Essa é uma ilusão que se tenta vender depois de cada escândalo. Tentou-se através do aumento dos castigos, mas sem sucesso. Ao contrário, perde-se constantemente patrocinadores para modalidades em que os castigos são menos severos, o que leva ao aumentar de ciclistas desempregados. Vale a pena continuar a insistir nesta luta, ou é melhor reduzir as penas?

É verdade que o doping não se adequa ao espírito olímpico, pois cria uma vantagem/desvantagem cientifica/tecnológica, mas também me parece que o desporto actual  já não se adequa a esse espírito. Deixaram de ser os adeptos a financiar os clubes e passaram a ser as empresas. Quem investe no desporto, procura aumentar o destaque da sua empresa, marca ou produtos, associando-a a algo bonito. Não importa o que está por dentro, mas sim como os clientes (da empresa, marca ou produto) o vão ver. Se quisessem associar-se ao naturalismo, metiam outdoors em praias de nudismo e publicidade na Playboy. Aí é o lugar do "tal e qual como veio ao mundo".

Vale a pena continuar a deixar a modalidade manchada na comunicação social, os patrocinadores a virarem as constas, cada vez menos equipas e mais ciclistas no desemprego? Não me parece.

O que defendo não é a liberalização do doping, mas sim a redução das penas no ciclismo, tornando-se mais próximas do que acontece em quase todas as modalidades. Não vale a pena continuarmos a pensar que o ciclismo é o único desporto com um bom programa  anti-doping e os outros pecam por defeito. Começo a acreditar que os outros estão certos e que o ciclismo peca por excesso.

A redução das penas resultará na diminuição do mediatismo do doping no ciclismo. Se, em vez de dois anos e irradiações, as suspensões por substâncias leves forem de apenas três meses e as suspensões por EPO, transfusões e outros métodos/substâncias pesados fossem de seis meses (não sendo contabilizados os meses fora de época*), teriam muito menos destaque na  comunicação social. Continuava a haver doping, mas o ciclismo recuperava atractividade para os patrocinadores.

Porque no fundo, a luta anti-doping é um circo manipulado. Durante 2013 existirão poucos controlos positivos (dentro do que a UCI pode controlar) para parecer que o doping é coisa do passado, uma criação de Lance Armstrong. E daqui a uns anos aparecerá alguém a confessar que se dopou em 2013. Cá estaremos para comentar.




* O que sugiro não são suspensões de 6 meses como as de Leipheimer, Danielson e Vande Velde, de Setembro a Março, mas sim suspensões em que não fosse contabilizado o período mais morto da temporada, por exemplo, entre 15 de Outubro e 15 de Janeiro. Um ciclista que acusasse positivo a 1 de Setembro ficaria sem correr até 1 de Junho, sendo os seis meses distribuídos por Setembro, meio Outubro, meio Janeiro, Fevereiro, Março, Abril e Maio. Um ciclista que acusasse a 1 de Março, por exemplo, regressaria a 1 de Setembro, sendo contabilizados os meses de forma normal.

3 comentários:

  1. excelente artigo! Mas eu sou da opinião que as penas deviam subir, mas passarem a existir também com a mesma severidade nos outros desportos. Não é um ciclista levar 6 meses e o Frey levar um jogo de castigo! Não é uma evidencia condenar uns, e outros terem um controlo próprio da liga! No entanto tudo o resto concordo, unicamente com a ressalva de que, o doping mais que um problema do desporto, é e deve ser encarado, como um problema de saúde pública!

    Cumprimentos

    PS: e já agora, novidades para a nova época em Portugal? Nada??

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  2. Parabens pelo artigo! Muito bom.

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  3. Análise e reflexão muito completas. Agora tem de se pensar quem é que controla as próprias agências controladoras e a forma credível como é feito o controloanti-doping. A redução da sanções nos ciclistas não resolve; pelo contrário descredibiliza.

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