Pódio da Volta a França de 98 |
Nada. Com necessidade de escrever algo que possa ser publicado nos sites e jornais para os quais trabalham, muitos jornalistas já escreveram sobre as amostras dos controlos anti-doping de 1998 e 99, um tema sobre o qual poderiam escrever algo interessante mas não o farão, ou não o sabem fazer. Acabarão por publicar apenas o que leram nas "letras gordas" da comunicação social estrangeira, alterado pelas limitações na língua inglesa e francesa, como se viu nas más traduções da última entrevista dada por Lance Armstrong. Não todos, claro, mas a triste maioria.
Quem ficará surpreendido ao ler hoje que Marco Pantani e Jan Ullrich venceram a Volta a França dopados, "notícias" tantas vezes dadas e recordadas?
Seria interessante que algum jornalista nos pudesse contar um pouco mais sobre o ciclismo que se praticava em 1998 e como se encontrava o doping e a luta anti-doping na altura. Noutras modalidades, estava em 98 como está hoje. Ou melhor, ainda está hoje como estava em 98.
Contexto 1998
O livro A Morte de Marco Pantani, brilhantemente escrito por Matt Rendell e publicado em 2006, ajuda-nos a relembrar como se via a luta anti-doping antes do caso Lance Armstrong, das primeiras deteções de CERA em 2008 e da Operação Puerto. O livro não foi escrito para defender ou acusar Pantani mas sim para nos retratar a vida e a morte do Pirata, depois de entrevistadas muitas pessoas próximas do ciclista e de realizado um grande trabalho de investigação.
Entre 1998 e 2000 deram-se acontecimentos marcantes na história da luta anti-doping, desde o Caso Festina às primeiras deteções de EPO, passando pela expulsão de Pantani do Giro 99.
Durante a década de 90 a EPO foi-se instalando no pelotão até chegar a um uso quase generalizado. Não eram necessários grandes esquemas para fugir aos controlos anti-doping, pois a EPO não era detetada, tal como a CERA não era até junho de 2008. Apenas em 2000 foi aprovado o primeiro teste que detetava EPO e o primeiro positivo data de 2001, tendo como protagonista o ciclista Bo Hamburguer.
Antes de mais, é importante compreender como funciona a EPO. A EPO não é a poção de Asterix nem os espinafres de Popeye que permitem a um sedentário ganhar a Volta França ou qualquer outra prova de ciclismo. A EPO tem como função regular a produção de glóbulos vermelhos, responsáveis pelo transporte de oxigénio até aos tecidos. No ciclismo, atletismo e noutros desportos de fundo a oxigenação é um fator determinante no rendimento dos desportistas. Quanto mais glóbulos vermelhos, melhor funciona o processo de oxigenação, especialmente importante para a recuperação nas provas por etapas, mas também para a recuperação em períodos de maiores cargas de treino.
Uma vez que a EPO não era detetada nos controlos anti-doping mas era sabido que muitos ciclistas faziam uso, em 1997 a UCI estabeleceu em 50% o limite de hematócrito aceite. O hematócrito é e percentagem de volume de sangue ocupado por glóbulos vermelhos e, porque a EPO aumenta a produção de glóbulos vermelhos, aumenta consequentemente o hematócrito. A UCI considerou que os 50% apenas poderiam ser ultrapassados através do uso de produtos proibidos e quem o ultrapassasse era suspenso por duas semanas. Mas porque não se podia acusar o ciclista de se dopar sem acusar positivo, oficialmente a suspensão era por "motivos de saúde". Foi o que aconteceu a Marco Pantani na Volta a Itália de 1999. Pantani tinha vencido quatro etapas, tinha a camisola rosa, preparava-se para vencer o seu segundo Giro consecutivo e seria a sua terceira grande volta, pois também havia vencido o Tour de 98. Antes da penúltima etapa foi informado de que lhe tinha sido detetado um hematócrito de 52% e por isso seria suspenso por duas semanas, não alinhando nessa etapa.
O trabalho dos médicos não era ludibriar os controlos mas sim garantir que os 50% não eram ultrapassados. Até 1997 muitos ciclistas andavam na casa dos 60%, como Riis e o próprio Pantani. No Milano-Torino 1995 sofreu uma aparatosa queda e teve que ser submetido a uma cirurgia. Nas análises realizadas nessa altura registou um hematócrito de 60,1%.
Hoje é fácil explicar e compreender tudo isto, mas em 1999 a suspensão de Pantani apanhou quase toda a gente de surpresa. Em A Morte de Marco Pantani, o proprietário da Mercatone Uno chega a dizer que Pantani poderia não ter caído em desgraça (morreu de overdose de cocaína) se não tivesse sido apanhado no anti-doping. Enquanto hoje se suspeita de todos (principalmente depois de Armstrong confessar que passou sem problemas centenas de controlos em que estava dopado), na altura muita gente acreditou que se tratava de um erro e o Pirata estava limpo (mesmo depois do Caso Festina). Em 2000 venceria duas etapas no Tour
O trabalho dos médicos não era ludibriar os controlos mas sim garantir que os 50% não eram ultrapassados. Até 1997 muitos ciclistas andavam na casa dos 60%, como Riis e o próprio Pantani. No Milano-Torino 1995 sofreu uma aparatosa queda e teve que ser submetido a uma cirurgia. Nas análises realizadas nessa altura registou um hematócrito de 60,1%.
Hoje é fácil explicar e compreender tudo isto, mas em 1999 a suspensão de Pantani apanhou quase toda a gente de surpresa. Em A Morte de Marco Pantani, o proprietário da Mercatone Uno chega a dizer que Pantani poderia não ter caído em desgraça (morreu de overdose de cocaína) se não tivesse sido apanhado no anti-doping. Enquanto hoje se suspeita de todos (principalmente depois de Armstrong confessar que passou sem problemas centenas de controlos em que estava dopado), na altura muita gente acreditou que se tratava de um erro e o Pirata estava limpo (mesmo depois do Caso Festina). Em 2000 venceria duas etapas no Tour
Não pretendo com todo este paleio retratar Pantani como o criador da dopagen ou o maior prevaricador de todos os tempos. Pantani é uma enorme e marcante figura da história do ciclismo e tem sobre si um espetacular trabalho que me permite ser mais preciso e correto a falar sobre ele do que outros desportistas, mas não foi o primeiro ciclista dopado e muitos dos seus colegas de pelotão já confessaram que também usavam EPO na década de 90. Foram os casos de Bjarne Riis, Erik Zabel, Bobby Julich e muitos outros.
Inquérito do Senado francês
O Senado francês abriu uma comissão de inquérito sobre o doping no desporto e a eficácia da luta anti-doping. Não é uma questão apenas de ciclismo e das Voltas a França de 98 e 99. A re-análise feita em 2004 às amostras de 98 e 99 não serve para perseguir ciclistas mas sim para evidenciar um dos maiores problemas do desporto: a luta anti-doping não tem sido eficaz ao longo dos anos. Se o é agora, só daqui a uns anos saberemos. Para já, resta a certeza de que o ciclismo tem o mais avançado programa de combate ao doping.
Durante o período em que se sabia da existência da EPO mas esta era indetetável, estabeleceu-se a já referida norma dos 50%. Seguiu-se o problema da CERA (EPO de 4ª geração), que em 2007 já era utilizada por ciclistas mas só em meados de 2008 passou a ser detetada (Stefan Schumacher foi 3º nos Mundiais 2007 e Riccò 2º no Giro 2008 utilizando CERA). E depois da CERA se tornar detetável permaneceu o problema das autotransfusões como o maior conhecido. Ainda hoje as autotranfsusões não são detetáveis através de uma amostra mas o Passaporte Biológico (PB) foi implementado precisamente para, através da comparação de amostras recolhidas ao longo do tempo, permitir que se descubram indícios desta prática. Claro que a modalidade que criou o PB foi o ciclismo e poucas o implementarem. Por exemplo a FIFA já implementou uma espécie de Passaporte Biológico em algumas competições e pretende que todos os jogadores presentes no Mundial do próximo ano tenham os seus perfis biológicos, mas a eficácia desta medida é altamente questionável. O PB assenta o seu funcionamento em comparações efetuadas ao longo do tempo. Quanto mais amostras se recolherem de um atleta, mais eficiente será o PB e é igualmente fundamental que as amostras seja consistentes ao longo de vários meses/anos, não apenas de algumas semanas. À semelhança da EPO, as transfusões servem para facilitar a recuperação e podem representar um grande benefício na recuperação, não apenas entre dois dias de competição, mas também no período de preparação pré-competição
Inicialmente a publicação dos resultados desta comissão de inquérito estava agendada para 18 de julho, data da subida ao Alpe d'Huez, mas foi adiada para não coincidir com a Volta a França.
Muitos jornalistas esperavam ansiosamente o dia de hoje e o momento em que fossem pronunciados os nomes dos culpados, uma expetativa que aumentou quando ontem o Le Monde publicou que Pantani, Ullrich e Julich (os três primeiros da Volta a França de 98) teriam sido apanhado nas análises feitas em 2004. Em vez disso, o Senado francês optou por deixar bem claro que o principal não eram os nomes e por isso não haveria a tão aguardada lista.
Ainda que os nomes não estejam presentes no relatório da investigação, cruzando os resultados dos controlos (publicados sem nomes) com outras informações é possível chegar a muitos ciclistas. A maioria deles, ou porque ao longo da sua carreira tiveram positivos, ou porque já tinham confessado, ou pelas equipas que passaram, não é novidade. São os casos de Pantani, Ullrich, Julich, Zabel, Hamburguer, Marcos Serrano, Mario Cipollini, Eddy Mazzoleni, entre outros.
Relativamente a estes ciclistas, são culpados por se doparem mas também vítimas de uma época em que era obrigatório recorrer ao doping para ser competitivo. Naquela época tinham que escolher entre correr limpos e estarem afastados das vitórias ou doparem-se como os seus adversários para lhes poder fazer frente. Estes fizeram a escolha que se sabe. Outros nunca saíram do anonimato.
Muitos jornalistas esperavam ansiosamente o dia de hoje e o momento em que fossem pronunciados os nomes dos culpados, uma expetativa que aumentou quando ontem o Le Monde publicou que Pantani, Ullrich e Julich (os três primeiros da Volta a França de 98) teriam sido apanhado nas análises feitas em 2004. Em vez disso, o Senado francês optou por deixar bem claro que o principal não eram os nomes e por isso não haveria a tão aguardada lista.
Ainda que os nomes não estejam presentes no relatório da investigação, cruzando os resultados dos controlos (publicados sem nomes) com outras informações é possível chegar a muitos ciclistas. A maioria deles, ou porque ao longo da sua carreira tiveram positivos, ou porque já tinham confessado, ou pelas equipas que passaram, não é novidade. São os casos de Pantani, Ullrich, Julich, Zabel, Hamburguer, Marcos Serrano, Mario Cipollini, Eddy Mazzoleni, entre outros.
Conclusão
Esses serão alguns dos nomes mais falados do dia, talvez dos próximos dias, mas o assunto acabará por ser esquecido. O Senado conseguiu amortecer parte do impacto e não haverá suspensões nem resultados anulados. Ainda assim, é pena que o tema seja esquecido, porque algo deveria ficar na cabeça de todos os agentes desportivos: a luta anti-doping tem tido muitos problemas. Os vários organismos internacionais deveriam juntar esforços para combater o problema, mas não o farão. Se só há positivos no ciclismo, fazemos de conta que só existe doping no ciclismo.Relativamente a estes ciclistas, são culpados por se doparem mas também vítimas de uma época em que era obrigatório recorrer ao doping para ser competitivo. Naquela época tinham que escolher entre correr limpos e estarem afastados das vitórias ou doparem-se como os seus adversários para lhes poder fazer frente. Estes fizeram a escolha que se sabe. Outros nunca saíram do anonimato.