quinta-feira, 22 de agosto de 2013

Rescaldo

Termina a Volta a Portugal, vitória de Alejandro Marque, tão apertada quando surpreendente, tão surpreendente quanto justa. Não deixa de ser curioso que, caso existissem bonificações, os quatro segundos de diferença seriam... zero. Existindo bonificações, Alejandro Marque e Gustavo César teriam ficado com as mesmas horas, os mesmos minutos e os mesmos segundos. Nesse caso, Marque venceria no desempate pelos centésimos gastos no contrarrelógio, que são o critério de desempate quando existem cronos (ver regulamento - artigo 11, 1), 3º parágrafo), as únicas etapas em que os centésimos importam, sejam coletivos os individuais (no crono coletivo ambos ficam com o mesmo tempo).

Os quatro segundos de diferença entre os dois colegas - e amigos - baixam a fasquia dos cinco segundos que separaram Claus Moller e Joan Horrach em 2002, ano marcante pela imagem do pódio preenchido na totalidade pela Maia, a equipa que então dominava o panorama nacional. Nesse ano, pelo contrário, não fossem as bonificações e a vantagem de Moller teria sido consideravelmente maior. Nesse ano, como neste, Rui Sousa foi terceiro. É o quarto terceiro posto de Rui Sousa na Volta, com onze anos entre o primeiro e o último, um caso raro de longevidade.

A OFM venceu sendo, de longe, a melhor equipa. O que faltou de união à Efapel, a OFM teve para dar e vender, se tal fosse possível. Uma casa não se faz apenas de tijolos, uma equipa não se faz apenas de ciclistas e qualidade sobre a bicicleta. Faz-se também de homens (mulheres, rapazes ou raparigas conforme o caso) e algo que os una.

O resultado final é surpreendente. Sem dúvida. Bom, pelo menos para mim, que afirmei convictamente (e sem vergonha de o recordar) que os homens da OFM não eram homens para discutir a Volta a Portugal. Afinal eram, foram-no.

No rescaldo é fácil fazer as "previsões" e dizer que sempre se acreditou nos ciclistas que vencem. No final da Volta, aos microfones da RTP, com o sorriso natural de quem vê um colega vencer (o que não acontece em todas as equipas), Mário Costa disse que nem o próprio Marque acreditaria que poderia vencer a Volta. Tão surpreendente quanto isso, mas venceu.

O desporto, como a vida, está cheia de surpresas. Exemplo frequente no ciclismo é a vitória de Laurent Jalabert na Vuelta 1995 (curiosamente, também com um colega no pódio, Bruyneel, com Olano pelo meio), que ninguém esperaria antes de começar essa temporada. Se até numa prova como a Vuelta há surpresas, porque não pode haver na Volta? Pode, pôde.

Gustavo César tem aqui mais uma oportunidade de relançar a sua carreira. Começou em Portugal, no Boavista, e já ao serviço da Kaiku deu nas vistas na Volta a Portugal de 2006, depois de se desenvencilhar dos seus colegas de fuga para vencer a chegada a Santa Quitéria e vestir a camisola amarela, sendo um dos dez líderes diferentes nos dez dias de prova. Foi para a Karpin (depois Xacobeo), pela qual conquistou a maior vitória da sua carreira, a Volta à Catalunha. Os patrocinadores (que não tinham gostado de ver a vitória de David Cañada dois anos antes), também não gostaram que nesse ano a vitória fosse disputada entre Veloso, Rigoberto Urán (21 anos na altura), Rémi Pauriol e Josep Jufre. Foi aí que os organizadores voltaram a incluir montanhas para atrair os grande trepadores e relançaram a corrida para o nível que teve este ano.

Em fuga conseguiu mais uma importante vitória, na Vuelta 2009, mas no ano seguinte a equipa terminou e, porque ninguém queria os galegos de Álvaro Pino, em 2011 ficou sem correr. Em 2012 tentou relançar a carreira na Andalucia mas a equipa terminou no final do ano e preparava-se para ficar mais um ano sem correr, depois de uma temporada apagada. João Cabreira decidiu deixar o ciclismo, a OFM ficou com uma vaga na equipa, chamou Veloso, apostou tudo na Volta e foi o que se viu, com vitória na Torre e 2º lugar na geral.

Depois vem Rui Sousa e a Efapel, que foi tudo menos equipa. Carlos Pereira é o alvo de todas as críticas. Mas será? No ciclismo real, ao contrário dos jogos de computador ou de marionetas, os ciclistas têm vontade própria. Mesmo que o diretor desportivo tenha as decisões mais acertadas do mundo, cabe aos ciclistas cumpri-las ou não. Há boas decisões que são ignoradas mas também acontece o caso de diretores que tomam más decisões, os ciclistas ignoram e acabam por ser bem-sucedidos.

O erro foi feito no outono passado, quando se decidiu juntar demasiados galos para o mesmo poleiro. O que haveria a fazer na Volta?

O que o diretor desportivo da Efapel pediu aos seus ciclistas, só eles saberão, e seria interessante conhecer várias versões. Bom, em pouco tempo todo o pelotão conhecerá meia dúzia de versões, porque como as coisas andam, parece que ninguém vai aguentar muito tempo calado. Não vale a pena é baixar muito o nível, nem cuspir na travessa que dividiram.

Também existe controvérsia em torno do Nuno Ribeiro. Desde sempre se soube que o Nuno ia, em simultâneo, ser ciclista de uma equipa e presidente de outra, na qual teria sempre as portas abertas. Ainda assim, nesta Volta nunca achei que o Nuno Ribeiro estivesse a correr em favor da OFM-Quinta da Lixa. Não esteve a favor do Rui Sousa nem do Hernâni Brôco mas também não esteve em benefício da OFM. Aliás, foi um ataque seu na primeira etapa da Serra da Estrela que eliminou Délio Fernández da luta pela geral. Não fosse isso e teria ficado mais próximo do pódio.


O crescimento do ciclismo nacional?

O ciclismo está diante de uma oportunidade magnífica para se reerguer. Rui Costa levou de volta o ciclismo para a boca das pessoas e com isso ganhou espaço na comunicação social. Não esteve nas manchetes dos jornais desportivos mas esteve nos telejornais, o que é melhor. Mesmo quem não acompanha o ciclismo, sabe quem é o Rui Costa e espera a qualquer momento uma vitória (calma, tem estado de férias).

A Volta a Portugal teve as melhores audiências dos últimos anos. Desde 2007 que não havia tanta gente a ver a Volta através da televisão e isso é ótimo para os patrocinadores. Outra prova de que o ciclismo está a ganhar peso é a entrada nos telejornais da SIC. Ao noticiar a Volta a Portugal, a SIC estava a publicitar um produto da RTP, da concorrência. Ainda assim, a Volta conseguiu o seu espaço e isto é muito importante.

E a TVI24 confirma a aposta no ciclismo, transmitindo a Vuelta.

Para todos?...

Estará o ciclismo português a crescer. Para alguns, sim. Para os ciclistas, enquanto houver ciclistas, a aceitar correr de borla, não.

A RTP realizou uma peça tão oportuna quanto difícil. Quanto ganham os ciclistas? A resposta é difícil. Alguém se orgulha de trabalhar muito por pouco? Normalmente denunciam-se essas situações com revolta, não com orgulho. E qual o homem (ou mulher), adulto, que vai dizer para tanta gente que não recebe o suficiente para se sustentar? Por isso, a peça era difícil de fazer. A tentação de mentir seria grande.

Ainda assim, a RTP conseguiu juntar cinco testemunhos que se complementam na perfeição. Relembre-se que o salário mínimo das equipas continentais é estabelecido pelas federações nacionais. No caso de Portugal, o mínimo é de 1000€ mensais (12000€ anuais), em Espanha é de 1100€ mensais para os sub-25 e 2000€ mensais para os restantes, em Itália é de 23000€ anuais para neo-profissionais (em Portugal é 2400€, menos um zero) e 27.500€ para os restantes. Ou pelo menos era assim em 2011, último regulamento que aparece no site da Federazione. Teria algum ciclista a coragem/ousadia de admitir que ganha menos que isso, ou seja, denunciar que a sua equipa está à margem dos regulamentos?

O Hugo Sabido, 2º na última Volta, um dos melhores do pelotão nacional e dos menos mal pagos, diz que ganha entre 1000 e 1500€. E ainda acrescenta que, no seu entender, em Portugal nenhum ciclista é bem pago. O Bárbio, que corre na italiana Flaminia e por isso teria que receber quase 2000€ por mês, relembra que o mínimo para Portugal é de mil euros e é quando se ganha isso, o que no seu caso não acontece. O seu colega Amaro Antunes destaca outro problema. "Mil euros, pouco mais que isso, e às vezes atrasados". Manuel Cardoso, que corre por uma equipa Continental Profissional (mínimo 2.500€ mensais), também conhece o panorama nacional e sabe bem do que fala. Atira "vemos gente a enriquecer e os corredores a ganhar muito pouco". Quem conhece, percebe o que diz o Manuel. Aliás, falou pouco mas falou muito bem. E o Micael Isidoro diz que ganha 12000€ anuais. É reler estes dois parágrafos e tirar conclusões.


Ou para alguns?

Pegando nos indicadores da audiências, vendo o ciclismo a interessar cada vez mais à comunicação social e a reconquistar público, acredito que está diante de uma excelente oportunidade de crescer. Pegando no que dizem os ciclistas, acredito que apenas cresça para alguns e não é para os heróis. E aqui entramos na parte pior.

Ao longo destes 3 anos de blog, em que passou de uma dúzia de leitores para milhares, assumi por muitas vezes as minhas convicções de forma dura, ou incisiva, se quiserem. Não sou dono da verdade, mas sou dono das minhas convições, por vezes certas, por vezes erradas.

Sempre defendi que os ciclistas, que são os protagonistas e os heróis, devem ser remunerados de acordo com o que fazem. O dinheiro dos patrocinadores, deve ser para a equipa, para os ciclistas, e não para financiar outras atividades, declaradas ou não declaradas.

Também sempre defendi uma aposta na juventude. Nunca fui contra a vinda para Portugal de ciclistas de qualidade, fossem da vizinha Espanha ou da longínqua Austrália. Se existe a possibilidade de contratar um grande valor, porque não fazê-lo? (e essa oportunidade será enorme em 2014, com o final da Euskaltel) Mas se é para contratar um banal ciclista estrangeiro, mais vale contratar um português. Não apostando nos jovens portugueses, não há renovação do ciclismo português. Temos na estrada a melhor geração de sempre do ciclismo português, a que mais vitórias de classe mundial conquistou, mas Sérgio Paulinho tem 33 anos, Manuel Cardoso 30, e o Rui Costa e o Tiago Machado, apesar de mais jovens, não são eternos. Daqui a uns anos, quem serão as estrelas do ciclismo nacional?

Sem aposta nos jovens, não há renovação, não há mais Rui Costa's ou Tiago Machado's. E sem sucessores, perde-se a visibilidade da modalidade. Portugal gosta dos seus campeões. O triatlo cresceu com a Vanessa Fernandes, mas que destaque tem o triatlo depois da sua retirada?

Os jovens precisam de tempo para amadurecer? Claro. Mas estando numa equipa amadora ou numa continental o calendário é praticamente o mesmo. Desde que não lhes peçam que estejam a tope de fevereiro a agosto, não é daí que vem o mal. Regressemos à Volta, e para entrar nas conclusões.

Esta Volta veio dar razão ao que eu dizia que as contratações de Jesús Rosendo, Javier Ramírez e Raúl Gárcia eram desnecessárias. Não acrescentaram nada às suas equipas que justificasse a contratação a meio da temporada. Por outro lado, os angolanos que chegaram ao Banco BIC não pelo que poderiam valer desportivamente mas pelos interesses do patrocinador, foram duas agradáveis surpresas. Tendo o Walter Silva desistido da Volta ao Algarve logo ao primeiro dia e tendo o Igor Silva sofrido tanto para terminar, não acreditava que conseguissem concluir a Volta, ultrapassando as onze etapas, com Senhora da Graça, Penhas da Saúde, Penhas Douradas, Lagoa Comprida e Torre. Mas depois mês e meio em Portugal, surpreenderam, com o Igor Silva a terminar e o Walter Silva a ficar muito próximo desse feito, desistindo apenas no dia da Torre (último obstáculo). Foi cerca de mês e meio a trabalhar com gente que conhece o ciclismo europeu, uma experiência importante para eles e que mostra que a parceria pode funcionar muito bem. O Banco BIC "oferece" investimento ao CC Tavira para melhorar a equipa, o CC Tavira oferece experiência e know-how ao ciclismo angolano.

Por outro lado, esta Volta veio mostrar que eu não tinha nenhuma razão quando às questões salariais. Nem eu, nem quem comigo concordava, nem os diretores que tentam dar as melhores condições possíveis aos seus ciclistas e se esforçam para cumprir o prometido. Pagar salários e cumprir os acordos não é importante.

Começas a atrasar salários em abril, em junho já cortaste a metade do plantel e investes esse dinheiro a garantir que tens dois ou três ciclistas que vão estar a tope na Volta. Não interessa se fizeram o ano todo a discutir vitórias ou se fizeram o ano todo apagados. Dois ou três andam, dão nas vistas, o patrocinador fica contente, pareces um excelente diretor desportivo (mesmo que os ciclistas corram livremente ignorem o que mandas), o patrocinador mantém o patrocínio mais um ano, mantens  a equipa e o teu ganha-pão e está tudo bem. Exceto para os ciclistas que estão desde Maio ou Junho sem receber e só voltarão a receber em janeiro (se encontrarem equipa). Para esses a situação não está tão fácil, pagar as contas está difícil, sustentar os filhos também, mas também parece que somos poucos os que nos preocupamos com isso.

Também continua a valer a pena ter ciclistas a correr de borla, sobretudo se forem jovens. Pegas em dois ou três jovens, dizes que não podes pagar nada mas que vais cumprir o seu sonho de disputarem a Volta a Portugal e, se no ano seguinte as coisas estiverem melhores, continuam na equipa e vão ter direito a salário e tudo. Os pais pagam a alimentação, dão casa, se for preciso ainda compram a suplementação e mais alguma coisa que faça falta para ser ciclista na equipa tal, que contribui com menos que a família. Se algum dos jovem der nas vistas, até podes ser considerado um grande diretor desportivo, que aposta muito nos jovens (se é que se pode considerar aposta algo que não tem salário, ou seja, não tem investimento, não tem risco). Termina o ano, o que deu nas vistas fica, os outros que andaram a carregar bidões desde fevereiro nem foram à Volta nem renovaram o contrato e voltam para uma equipa amadora (ou ficam na tua novamente de borla), mas tu mantens a imagem de homem que aposta nos jovens, na época seguinte arranjas outros dois ou três para correrem de borla e fazes uma equipa com 100 mil euros. É mais do que suficiente para tirar o teu ordenado.

E ainda te podes dar ao luxo de aproveitar as câmaras da TV para dizer que foi muito difícil meter a equipa na estrada, mas depois de muito trabalho conseguiste, porque gostas muito dos ciclistas e é tudo pelos ciclistas.

Mesmo que haja mais dinheiro para as equipas, enquanto os ciclistas não se unirem, não há salvação. Porque se existem ciclistas a aceitar correr de borla, as equipas não precisam de gastar mais dinheiro em salários. Recebem mais dos patrocinadores, gastam o mesmo com os ciclistas... para onde vai o excedente?

Há diretores que tentaram dar as melhores condições possíveis aos ciclistas, foram totalmente sinceros e esforçaram-se ao máximo para dar tudo o que tinham prometido. Acreditem, também há bons diretores. Infelizmente, saem da Volta sem os seus objetivos cumpridos.

Os truques e esquemas de agora são os mesmos há demasiado tempo e continuam a ser premiados. Continuam a valer a pena.

11 comentários:

  1. Bela crónica Rui, em especial a última parte relacionada com os salários e com os jovens que correm praticamente de borla.

    Abraço

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  2. os jovem precisam, não é "os jovens precisão"...

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  3. Muito boa crónica Rui, e na parte em que te referes aqueles ciclistas que vieram a meio da época para realizar a VaP, não podia estar mais de acordo contigo!
    Abraço

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  4. Vi agora a lista de participantes no próximo Tour de L'avennir e reparei que a equipa portuguesa não vai.

    Perdi alguma coisa? Não era suposto ir uma equipa portuguesa?

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    1. PElo que sei a Federação fez cortes financeiros e com isso não vai haver seleção portuguesa no Tour de L'avenir. É pena.

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  5. Top! Não é preciso dizer mais nada!

    Cumprimentos

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  6. Obrigado pelos comentários.

    Parrulo, a seleção não conseguiu o apuramento. Na Volta a França do Futuro apenas têm presença as 20 primeiras da Taça das Nações. No caso, Canadá, Equador, Irão e Republica Checa abdicaram. Às 16 primeiras classificadas, juntaram-se a Equipa Mista UCI (que também tem sempre presença assegurada) e as convidadas Espanha (21º), Áustria (22º) e Suíça. Ficou de fora Portugal (23º).

    Cumprimentos!

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  7. Estava aqui a ler a crónica e pensei: "parabéns pela crónica". Mas depois refleti e melhor e pensei: de facto não está de parabéns... porque afinal só diz verdades...

    Confuso hein? De facto é de louvar a forma como expões a ferida dos jovens ciclistas e dos salários.

    Gostei da forma subtil como mataste um diretor desportivo que nós cá sabemos em meia dúzia de palavras. Enfim a culpa não é dele mas sim dos ciclistas que se sujeitam a correr em tais condições.

    Enfim, parabéns pelo texto. "Não parabéns" pelo facto de tudo isso ser verdade infelizmente.

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  8. Bela crónica Rui, em relação à última parte relacionada com a organização e gestão das equipas é pena não conhecermos os nomes dessas equipas/directores. Ainda sobre esse assunto, os patrocinadores estão ao corrente dessas situações que relata?

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  9. E a juntar ao(s) dictor(es), convém não esquecer quem mais defende em Portugal, que os ciclistas em especial os jovens devem correr de borla.
    Quem é que determina os salários dos sub 25?
    Num país em que os directores da Federação ganham mais que os ciclistas com vamos ficar?

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