Frank Schleck nos pavés do Tour 2010 |
A Volta a França do próximo ano, hoje apresentada, terá nove setores de pavé, num total de 15400m deste piso, tudo nos últimos 70 quilómetros da quinta etapa. Os argumentos a favor e contra não faltam.
A perceção que tenho é de que a maioria dos adeptos é favorável à inclusão dos setores de pavé no Tour ou dos caminhos de tenha no Giro. Ainda que a palavra sterrato tenha um tom mais poético e romântico (como a língua italiana em geral), não significa outra coisa se não isso mesmo: um caminho de terra.
Porque as grandes voltas (e sobretudo o Tour) devem ser o mais variadas possível, porque será uma etapa diferente, porque será uma etapa imprevisível e emocionante, ou porque será como misturar a grandeza do Tour e do Paris-Roubaix, os argumentos a favor dos pavé no Tour existem e têm a sua força. Porém, e apesar de aceitar todos estes argumentos, continuo a ser adverso estas situações.
Saberão os leitores de mais longa data que as minhas provas favoritas são precisamente o Paris-Roubaix e a Volta a Flandres (não por esta ordem), mas também o Circuito Het Nieuwsblad (Omloop) ou o Prémio E3 de Flandres. A imprevisibilidade de cada setor de pavé e os ritmos que os ciclistas conseguem impor naquele piso enquanto saltam no selim, atacando sentados, é algo que me fascina, bem como o facto de tudo ser decidido naquele dia. E este último aspeto, que julgo fazer toda a diferença, é algo que não acontece nas provas de três semanas.
Os pavês têm o seu lado negativo. É que no meio da sua imprevisibilidade e das emoções geradas, os setores de paralelo provocam aquilo que mais me revolta no ciclismo (mais do que qualquer escândalo): os furos e as quedas. Sobretudo as quedas. E é bastante diferente acontecer numa prova de um dia, ganha ou perdida naquele dia, do que numa prova por etapas, ganha ao longo de 23 dias mas perdida em qualquer um deles.
Como custa (!) ver um ciclista passar meses a preparar-se para um objetivo e depois, ainda antes de poder começar realmente na sua disputa, ver toda a preparação estragada por algo que não poderia controlar. Foi assim com Boonen este ano, foi assim com Cancellara no ano passado, foi assim com Boonen no Paris-Roubaix de 2011... enfim, não faltam exemplos.
Parte final da 5ª etapa do Tour 2014 |
E não é preciso recuar muito no tempo para ter um excelente exemplo: Sep Vanmarcke. O belga da Belkin (então ainda era Blanco), caiu na Volta a Flandres e esteve fora da discussão daquele que era o seu primeiro grande objetivo da temporada. Mas a queda em Flandres não o impediu de disputar o Paris-Roubaix. E quando digo "disputar", não digo "participar". Refiro-me mesmo à disputa, à luta, pela prova. Sep Vanmarcke foi o único capaz de encostar Cancellara às cordas até final e apenas nos últimos metros o suíço se conseguiu impor. Em Roubaix não teve qualquer impacto a queda e o tempo perdido uma semana antes.
Isso não acontece no Giro nem no Tour. Já nem me refiro às mazelas "sérias" que poderão resultar de quedas, como fraturas. Refiro-me apenas a azares mais "simples". Uma "simples" queda, um furo, uma corrente que salta ou o simples azar de ficar preso atrás de uma queda, pode levar ao atraso de vários minutos. Claro que os mesmos azares podem acontecer em qualquer momento, mas não há como negar que no paralelo as hipóteses de ocorrência aumentam consideravelmente. E no Tour, além da luta pela vitória no dia, teremos que contar com todos os homens da geral e os seus gregários a batalhar por um lugar na frente do pelotão antes da entrada em cada setor.
Um azar no paralelo, não deita por terra apenas aquele dia. Pode deitar todo um Tour. Uma queda, mesmo que não tenha fraturas, tem mazelas que no dia seguinte terão que ser suportadas na estrada. Não há descanso, o que faz com que qualquer pequena mazela se torne mais significativa do que caso ocorresse numa clássica. Entre clássicas há descanso, no Tour o descanso é muito diferente.
Na última vez que houve pavé no Tour, em 2010, foram mais de treze quilómetros e apenas se registou uma queda importante nas contas para a geral: Frank Schleck, quinto classificado do ano anterior e terceiro no ano seguinte. Parece pouco, mas recuando até 2004 temos um caso muito mais severo. Dois setores, totalizando apenas 3,5 quilómetros, fizeram com que Zubeldia e Iban Mayo perdessem quase quatro minutos, eles que tinham sido quinto e sexto no ano anterior e partiam como candidatos ao pódio. O mesmo tempo perdeu Menchov (11º e melhor jovem em 2003) e Moreau e Karpets, que sem o tempo perdido pelos pavés teriam terminado no top-10.
Quadro resumo das últimas etapas com pavé no Tour |
Mas o tempo perdido nos pavés não é igual ao tempo perdido em qualquer outra etapa? Sim, é. Para a classificação é, e o que interessa é a classificação real e não as classificações morais. Por isso, sim, o tempo é igual. No entanto, não posso deixar de pensar que nestas etapas não se ganham Tours, apenas se perdem.
Apesar da Volta a França ser vista como uma prova para ciclistas completos, basta olhar para os últimos vencedores (desde o ciclismo especializado) ou os últimos pódios para ser perceber que a definição de "completo", na Volta a França, não vai além da montanha e do contrarrelógio. Com mais ou menos contrarrelógio, com mais ou menos chegadas em alto, o vencedor é sempre alguém que sobe com os melhores e faz contrarrelógios ao nível dos melhores. Ou, se os quilómetros de crono não forem exagerados, alguém que se defenda, como o Andy Schleck naquelas três anos em que foi segundo.
Os homens do pavé, Cancellara, Boonen ou Hushovd certamente quererão estar presentes e lutar pela etapa, podendo mesmo fazê-lo em isolado, ou seja, ganhando tempo. Mas não são estes os homens que lutarão pela geral final. Os trepadores, os contrarrelogistas, aqueles que por norma discutiriam os lugares do pódio, terão muito mais a perder do que a ganhar. Para eles será um dia de sobrevivência. Se algum adversário ficar para trás e perder tempo, melhor para eles, mas não se espere ver Froome, Nibali ou Quintana a acelerar para ir por ali fora a ganhar tempo. As suas equipas poderão tentar provocar o erro (má colocação) dos adversários, mas para o resultado final este dia será mais marcante pelo tempo perdido de alguns do que pelo tempo ganho de outros.
Conclusão
Em suma, e porque o artigo já vai extenso, esta etapa tem os seus pontos positivos que não nego. Mas colocando na balança, vejo os pontos negativos com maior peso. Até porque este é um Tour que me parece bem desenhado (tema para outro dia).
Não existindo contrarrelógio antes do penúltimo dia, os trepadores menos capacitados para um crono plano, como Quintana ou Rodríguez, poderão manter uma disputada batalha com Froome, pelo menos, até ao contrarrelógio, ao contrário deste ano em que perderam três minutos logo a meio da prova. Porém, temo que alguns dos homens com aspirações ao top-10, ou até algum dos poucos homens capazes de fazer tremer Froome (a nove meses da prova, é o principal candidato) fique arredado da discussão por um azar nos pavés. Infelizmente, parece-me algo muito provável, mas este é um dos casos em que espero estar errado.
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