segunda-feira, 20 de outubro de 2014

Irá alguém aceitar o desafio de Tinkoff para correr as 3 grandes?

Os 4 desafiados: Quintana, Froome, Nibali e Contador
O desafio foi recentemente lançado por Oleg Tinkoff: um milhão de euros (a dividir) se Contador, Froome, Nibali e Quintana disputassem as três grandes voltas em 2015. Tinkoff tem esta capacidade de se fazer notícia pela sua excentricidade e pelo constante quebrar da normalidade, mas a sua ideia não deverá passar do falatório à prática.

Completar consecutivamente o Giro, Tour e Vuelta tem sido o desafio do australiano Adam Hansen, que desde a Vuelta 2011 leva dez grandes voltas, igualando o registo do espanhol Marino Lejarreta entre 88 e 91. Mas se Hansen pode disputar as três grandes com as únicas responsabilidades de terminar e ajudar os seus companheiros (aproveitando pelo meio alguma oportunidade que surja para vencer etapa), tal não é nem pode ser aceite a ciclistas como Contador, Froome, Nibali e Quintana, dos quais se espera sempre um papel de grande relevo. Se é possível renderem a grande nível no Giro, Tour e Vuelta do mesmo ano, só a experiência o poderia confirmar, mas olhando a história não me parece ser.

Houve recentemente alguns casos de ciclistas que conseguiram disputar as três grandes voltas e ser competitivos em alguma delas, mas nunca nas três. Foram os casos de Carlos Sastre em 2010 (7º na Vuelta, 8º no Giro mas apenas 20º no Tour) ou Marzio Bruseghin em 2008 (3º no Giro, 10º na Vuelta mas apenas 27º no Tour). No entanto, para encontrar alguém que se tenha posicionado entre os dez melhor das três numa mesma temporada, é necessário recuar até aos anos 50. Aconteceu em 1955 com o francês Raphael Geminiani (3º na Vuelta, 4º no Giro, 6º no Tour) e em 57 com o italiano Gastone Nencini (9º na Vuelta, 1º no Giro e 6º no Tour). Nem Merckx, nem Hinault, nem ninguém foi capaz de melhorar estes registos, excelentes mas ainda assim distantes do que seria lutar pela tripla vitória.

Para observar este desafio no passado há que recordar que até 1994 a Volta a Espanha decorria na primavera, entre abril e maio. Terminada esta, apenas existia uma semana de descanso até à Volta a Itália. E da italiana à francesa, três. Em teoria, a mudança registada em 95 veio facilitar o caminho a quem ambicionasse vencer duas grandes voltas consecutivas, pois seria maior o período de descanso entre elas. Porém, é apenas uma das variáveis e não a de maior relevância para o resultado final. Antes, com as provas mais próximas, havia com uma maior frequência alguém que vencesse em duas consecutivas. Foram os casos de Coppi (49 e 52), Anquetil (64), Merckx (70, 72 e 73), Battaglin (81), Hinault (82 e 85) e Indurain (92 e 93). Onze vezes em 46 anos, uma a cada quatro anos. Desde 1995, com o novo calendário, apenas um ciclista venceu duas provas de três semanas consecutivas, foi Marco Pantani em 1998. Uma vez em vinte anos. Mas se passou a existir mais distância entre as provas, porque se tornou mais difícil esta missão de bisar? (e ainda mais triplicar)

O desporto é feito de comparação e ninguém é bom ou mau por si só. Subir uma montanha em 38 minutos é bom ou mau? Não depende da montanha, mas dos adversários. Se estes forem capazes de a subir em 36 minutos, então o que levou 38 esteve mal. Se os adversários subirem em 40 minutos, então os 38 são uma excelente marca. E o mesmo raciocínio se aplica a qualquer desporto. Por exemplo, terminar um jogo de futebol com um golo marcado é bom ou mau? Se o adversário não marcar, é bom. Se o adversário marcar dois, o golo marcado vale zero pontos.

Anteriormente, apesar de existir menos tempo para descansar, a situação era bastante semelhante para quase todos os favoritos. Até o final dos anos 80 era usual que os candidatos à vitória do Tour chegassem à prova rainha com a Vuelta ou o Giro disputado, ou algumas das clássicas da primavera como Milano-Sanremo, Volta a Flandres ou mesmo Paris-Roubaix. Não todos, mas muitos faziam um calendário impensável nos dias de hoje, num período marcado pela hiperespecialização. Estavam mais próximos de estar em pé de igualdade.

Um ciclista que queira agora disputar a vitória no Tour depois de o ter feito no Giro estará em clara desvantagem pelo desgaste. Não será por acaso que, desde Pantani em 98, ninguém conseguiu sequer subir aos dois pódios num só ano. Já na Vuelta temos visto alguns ciclistas renderem a bom nível depois do Tour, nomeadamente Valverde e Joaquim Rodríguez. Mas é necessário recuar até 2008 para encontrar alguém que tenha estado no pódio de Paris e Madrid: Carlos Sastre, vencedor do Tour, terceiro na Vuelta.

O desafio lançado por Tinkoff não é financeiramente aliciante e desportivamente apenas interessa... a Alberto Contador.

250 mil, 333 mil ou 500 mil euros, dependendo de quantos aceitassem o desafio, é uma quantia que, à primeira vista espanta. É um valor muito elevado para os cidadãos comuns e para 99% dos ciclistas, mas aqui trata-se do 1% que está no topo da pirâmide. Quintana, que renovou contrato ainda antes de vencer o Giro, tem um salário que ronda os dois milhões de euros anuais. Froome e Nibali, que assinaram os seus contratos já com um palmarés mais consolidado, têm um vencimento superior ao colombiano. São ciclistas com contratos que ultrapassam os dois milhões de euros, aos quais acrescentam os contratos de patrocínio, os prémios monetários alcançados nas provas (apesar de serem divididos com os colegas) e os cachets para participar em critérios e outros eventos. Tendo as suas equipas a pagar tanto para serem competitivos nas principais provas e montras do calendário, o bónus de Tinkoff para serem menos competitivos não deverá ser aliciante.

Mas o desafio lançado pelo russo poderá não ser tão inocente e tão mãos largas como quer fazer parecer. Ainda não era conhecido o percurso da Volta a Itália e já Alberto Contador tinha anunciado que em 2015 queria lutar pela vitória no Giro antes do Tour, o que representará (caso se confirme) uma desvantagem face aos seus adversários na grande boucle. Conseguindo levar os seus principais oponentes a idêntico desgaste, Tinkoff conseguiria equilibrar a disputa.

No final de contas, a ideia de Tinkoff será mais uma para a coleção das que foram tema de debate e observação mas que não passaram disso mesmo. Tentar bisar é um risco, tentar o pleno impossível. E nenhum dos ciclistas desafiados irá sacrificar um ano da sua carreira desta forma. 

Se não souber o que fazer com o milhão de euros que poupa, Tinkoff poderá seguir a sugestão de Nibali: construir equipas de jovens.


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