segunda-feira, 19 de julho de 2010

Desportivismo a mais ou a menos ?

O Tour de Schleck & Contador continuou hoje, na 15ª etapa com chegada a Bagneres-de-Luchon. Tem sido um Tour muito interessante e a bem da verdade, isto sim é um Tour aberto - tanto Schleck como Contador nestes últimos dias têm-se apresentado a um nível muito próximo (e muito alto). Apesar de hoje Contador ter ganho um importante avanço, ainda assim, penso ser justo dizer que a corrida está longe de ter terminado.

A grande questão levantada após a etapa de hoje é, inevitavelmente, o ataque de Contador após o problema mecânico que afligiu Schleck.

Para já, tenho de admitir, antes de dar a minha opinião, que estou a torcer pelo ciclista da Saxo Bank. Não me importo de assumir que quero ver Andy de amarelo nos Campos Elíseos; é um ciclista jovem e ambicioso, tem evoluído imenso. Contador já tem dois Tour's na mão e apesar de dar espectáculo, o estilo do luxemburguês é igualmente apaixonante e parece-me que beneficiou da ausência do irmão, assumindo-se finalmente como líder indiscutível da equipa - algo que lhe tem faltado nos últimos anos.

Ainda assim, acho que anti-desportivo não é Contador ter atacado, anti-desportivo é criticar o ataque de Contador.

O ciclista espanhol está há meses a preparar-se para o Tour. A equipa dele está há meses a preparar-se para o Tour. Eles contrataram vinte ciclistas a pensar no Tour; os cazaques pagam-lhe centenas de milhares de euros para ele ganhar o Tour. Ele passou semanas em reconhecimentos, estágios, treinos. Este é o objectivo do ano, o momento do ano e a única altura do ano onde o ciclismo é visto por fanáticos, fãs e muitos que apenas vêm ciclismo uma vez por ano. É, por excelência, a grande montra publicitária e, obviamente, a grande aposta da maioria das equipas.

Agora, imaginem que recheado de fair-play, Contador hoje esperava por Schleck e perdia o Tour por dez ou quinze segundos. Imaginando que o espanhol está na Rabobank, para facilitar, e encontra-se com o presidente do super banco holandês, o que responderia à pergunta porque não ganhou? Queimou investimentos na ordem das dezenas de milhões de euros em vários anos, queimou o esforço de dezenas de profissionais, desde mecânicos a gregários, porque teve... fair-play? Destruiu a confiança em seu redor porque foi cavalheiro? Não estou a ver o presidente do Banco dar-lhe uma cartola e uma bengala para Contador ser um verdadeiro gentleman inglês, acompanhado por um prémio Simpatia.

O facto de Contador estar na Astana, uma equipa um pouco diferente do habitual, não lhe retira este peso extra, pelo contrário - os cazaques, que apesar de longíquos se dizem grandes fãs de ciclismo, como ficariam de ver a sua equipa perder por um acto de cavalherismo?

Bom, qual seria a reacção do povo holandês se ao minuto 90 da final do Mundial, o Robben estava sozinho frente ao Casillas e, ao ver o guarda-redes espanhol escorregar, parava a bola e esperava que ele se levantasse para rematar? Ridícula Holanda por não ter posto a bola fora quando o Torres caiu no tempo de compensação do Mundial. E o miúdo estava mesmo lesionado!

É fácil e curiosamente estranho que haja comparações futebolísticas desta situação com o habitual "pôr a bola fora" quando um jogador cai. Ainda estou para ver numa FINAL (porque o Tour é a grande final da Champions na versão do Ciclismo), perto do fim (porque a bem dizer, etapas a sério, só há mais duas), uma equipa em desvantagem interromper uma hipótese única de empatar o jogo por dito fair-play. Aliás, quando há golos manifestamente irregulares, nunca vi uma equipa marcar um auto-golo por fair-play. Nunca vi um tenista ceder um ponto porque a bola bateu na tela e passou para o outro lado. Nunca vi um piloto de fórmula 1, na última corrida do Mundial, ver o seu adversário ficar para trás porque teve um problema mecânico e esperar por ele. Nunca vi um basquetebolista falhar lances livres porque a falta foi mal assinalada. Porque raio o ciclismo tem de ser diferente? E reforço, é preciso ser profissionalmente responsável acima de tudo: hoje foi dos momentos mais decisivos da temporada. Os investimentos pagam-se ou perdem-se esta semana. Assim como a Sky perdeu dinheiro com o Wiggins e a BMC com o Evans, Astana, Saxo Bank, Rabobank lucram e trabalharam o ano inteiro para momentos como hoje. O ciclismo tem uma componente de negócio muito importante e o orçamento de uma das maiores equipas é similar ao das grandes equipas portuguesas com uma excepção - quase não tem receitas directas.

E isto na verdade abrange qualquer um de nós com empregos mais normais.

Como dizia Hushovd no dia de Spa: I've been riding all day for the stage win and the green jersey and I end up with nothing," Hushovd continued. "This is not fair. Will the same thing happen tomorrow? Will the times for GC be taken before the pavés sections? If Alberto Contador or another big rider crashes tomorrow on the cobblestones, he's entitled to ask for the race to be neutralised too! So when will we race, really?" O ciclismo é mesmo assim. Ninguém esperou pelo Roche hoje, e se tivesse sido o Samuel Sanchez ou o Menchov, não haveria problemas de falta de cavalherismo de ninguém. Mas como foi o Schleck, é a crise e a polémica. Injusto, não? Fair-play só para os dois que lutam pela geral, mais ninguém?

É fácil lembrar aquela vez que Ullrich esperou por Lance em Luz Ardinen. Foi um gesto notável do ponto de vista moral, desastroso a nível desportivo e irreparável a nível financeiro. Num ano a Team Bianchi esteve no ciclismo e fez zero - podia ter ganho um Tour e Ullrich sai do ciclismo, não propriamente visto como um gentleman, mas como o segundo atrás de Lance. E, se tivesse sido "anti-desportivo", se calhar tinha ganho o Tour. Felizmente poderá contar aos netos que em 2003 foi um sujeito 5*.

É preciso muito esforço para relembrar outro momento desse género, até porque, honestamente, não existem. O azar bate à porta de todos. Faz parte da corrida. Nos contra-relógios alguém abranda porque o outro fura? Ou porque o outro cai? Mas será que um advogado "perdoa" o engano de um colega do outro lado? Será que alguém que concorre num concurso público pede um novo concurso porque o seu adversário teve um problema? O mundo e o desporto encara o imprevisto como inevitável. O ciclismo assim deve ser. Não é uma questão de nobreza. Ou o Lance ganhou de forma menos nobre porque o Beloki e Ullrich caíram em 2003?

Bom, tudo isto para dizer que Contador fez o que qualquer profissional fez. Foi responsável, teve uma oportunidade, aproveitou-a, ganhou tempo e deu um passo importante na classificação geral. Não desperdiçou o trabalho de centenas de pessoas, dezenas de milhões de euros de um país em desenvolvimento por simpatia. Aqui não há simpatias. Isto é o Tour. E assim como em qualquer desporto o que interessa é ganhar - dentro dos limites legais - Contador aproveitou a sorte e ganhou. Mérito a ele. Argumentos morais são sempre bonitos, mas parecem-me claramente injustos e parciais. Senão o ciclismo nunca era a sério, como disse o Hushovd.


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Há momentos, notei que numa casa de apostas as odds de Contador caíram para 1.18 contra 4.75 de Andy Schleck, odds para Contador inferiores para as de Portugal à partida contra o jogo da Coreia do Norte. Mas parece-me cedo para o luxemburguês atirar a toalha ao chão. Menchov aparece a 34; Samuel Sanchez a 67 e Van den Broeck a 201. Odds gigantescas, a provar quão remota é de facto a hipótese de alguém fora Contador e Schleck ganhar. Mas a raiva do luxemburguês pode até dar-lhe força extra para quinta-feira, claramente o dia decisivo. E parece-me que, ganhando a etapa, bastam-lhe apenas 30 segundos de diferença na etapa para ter boas hipóteses de vencer o Tour.

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