segunda-feira, 23 de julho de 2012

Sir Bradley Wiggins, o Gentleman em que ninguém acreditava

Esta é a história de Bradley Wiggins, um tipo peculiar que se sagrou vencedor da Volta a França. Poderá não ter sido o Tour mais interessante de sempre, e todos poderemos concordar que já vimos uma mão cheia de Voltas a França mais disputadas, mas Wiggins e a Sky merecem toda a minha admiração pelo objectivo que marcaram e pelo percurso que fizeram até ele. Um artigo que adorei escrever e espero que gostem de ler. Garanto que vão ler aqui coisas que não sabiam.

Bradley Wiggins, nascido a 1980 em Gent (Bélgica), filho de pai australiano e mãe britânica, da qual herdou a nacionalidade. Aos dois anos de idade, foi com a mãe Linda (como a de Armstrong) para Inglaterra, depois desta se separar de Gary Wiggins, pistard alcoolico e consumidor de afetaminas, que viria a abandonar o filho. Porém, apesar da quase nula relação que teve com o pai durante a infância e do ódio que lhe ganhou na juventude, Brad começou a carreira desportiva pela pista.

Em 2000, com apenas 20 anos, ganhou a sua primeira medalha olímpica, de bronze, na perseguição colectiva. Viria a ganhar mais cinco, bronze no Madison, prata na perseguição colectiva e ouro na perseguição individual em 2004, e ouro na perseguição individual e colectiva em 2008, tornando-se assim uma referência do desporto inglês.

Além das 6 medalhas olímpicas e 12 outras medalhas em Campeonatos do Mundo de pista (7 títulos), Wiggins competiu na estrada desde 2002, pois a pista dava pouco dinheiro. Por entre medalhas e mais medalhas, falta de dinheiro e algum alcool, na estrada Wiggins era um excelente contra-relogista. De 2002 a 2007, correu por equipas francesas, primeiro na Française des Jeux (2002-03), depois Crédit Agricole (04-05) e finalmente na Cofidis (06-07), mas foi em 2008 que tudo começou a mudar.


Primeira vitória de Wiggins na estrada:
etapa rainha da Volta a França do Futuro 2005
Sempre foi o jovem pistard que, de vez em quando, aparecia na estrada e fazia uns boas contra-relógios, e poucos poderão imaginar que a sua primeira vitória em linha foi na etapa rainha da Volta a França do Futuro. Foi em 2005, antes da prova ser restrita a sub-23, numa etapa com sete contagens de montanha, em que Wiggins foi o mais resistente de um grupo de cinco fugitivos.

A fuga ao Doping


Wiggins nunca foi meigo a falar do pai e também nunca o foi a falar de doping. Nunca poupou críticas a quem se dopasse e o positivo de um colega em 2007 deu-lhe a volta às entranhas

Com o Tour a partir de Londres, o prólogo era o seu grande objectivo e antes disso, como preparação, tinha sido 2º no curto contra-relógio do Circuito de la Sarthe, vencido o prólogo dos 4 Dias de Dunkerque e do Dauphiné Libéré. No prólogo do Tour foi 4º e no longo contra-relógio da 13ª jornada desse ano foi 5º, passando para 4º depois da desclassificação de Vinokourov por doping. "Vi os meus dados e o seu tempo (de Vinokourov) era suspeito, era um rendimento sobre-humano" disse relativo a esse dia.

Já antes tinha carregado contra Landis, acusando-o de "enganar todos os ciclistas" e alertando que "se continuar assim, dentro de dez anos acabou-se o nosso desporto".

Porém, foi a 25 de Julho que estalou o que, para Wiggins, era uma bomba. Nesse dia foi anunciado um positivo de Cristian Moreni, seu colega de equipa, e no dia seguinte a Cofidis retirou-se do Tour. Wiggins classificou Moreni como "um estúpido, por entrar nessa rede", recusou-se a utilizar o equipamento da equipa quando saiu do hotel, exclamou "que se fod@ o Tour!" e no aeroporto, de regresso a casa, deitou o equipamento da Cofidis ao lixo. Ainda o voltou a vestir e a ganhar dois contra-relógios com ele, mas em 2008 foi para a HTC, onde se juntou a Mark Cavendish, com o qual se sagrou nesse ano campeão mundial de madison.

A conversão à estrada (2008-09)


Apesar dos dois títulos olímpicos e três mundiais conquistados em 2008, Wiggins quis mudar a sua vida profissional. Ser lançador de Cavendish e lutar por contra-relógios não chegava para satisfazer as suas ambições nem a sua carteira. Queria mais, queria ser como Indurain, e no final da temporada saiu da HTC com esse objectivo. O mundo ficou espectado com a sua prestação no Tour seguinte, mas a verdade é que quando decidiu mudar-se para a Garmin, em 2009, disputar o Tour era o que motivava o britânico.

Wiggins e as suas magras pernas em 2009
Nesse ano, fez uma classificação geral discreta no Giro. Aliás, desde 2005 que disputava grandes voltas e sempre com classificações gerais discretas: 123º no Giro 2005, 123º no Tour 2006, 134º no Giro 2008 e 71º em 2009, além do abandono já referido no Tour 2007. A diferença é que agora estava muito mais magro, depois de vários meses sem competir na pista e a dedicar-se a perder peso sem perder potência. O Giro foi disputado ainda nessa fase de perda de peso, portanto, longe do que seria o novo Wiggins.

Com quatro etapas de montanha no Tour, aí defendeu-se, para nos 56 km de contra-relógio individual e 39 km de crono colectivo conquistar o quarto lugar, atrás de Contador, Andy Schleck e Armstrong. Meses depois conquistaria o seu primeiro título nacional de estrada, no contra-relógio, e anunciava a sua mudança de equipa.

Projecto Team Sky (2010-11)


A grande novidade no pelotão para 2010 seria a Sky, equipa que ambicionava conquistar o Tour com um britânico e Bradley Wiggins era a hipótese menos improvável. Nem se pode considerar a "mais provável", pois só os britânicos acreditavam que tal fosse possível e, aos olhos do mundo, o 4º lugar do ano anterior era caído do céu e nunca voltaria a chegar perto. Depois de intensas negociações com a Garmin para que o libertassem, assinou pela Sky, dirigida por Dave Brailsford, que já o tinha acompanhado no sucesso da pista desde os Jogos Olímpicos de Atenas. No fundo, a Sky seria a equipa de estrada da Federação Britânica de Ciclismo.

Para 2010, Wiggins optou por correr novamente o Giro antes do Tour, sendo 40º no Giro e 24º no Tour, em notória quebra de forma na segunda metade da prova. Saiu do Tour com uma grande desilusão mas uma lição ainda maior. «Agora sei que não posso fazer duas grandes voltas tão próximas uma da outra», analisou, acrescentado ainda que a solução passaria por uma concentração em altitude como preparação para o Tour.

Em 2011 mostrou-se, desde o início da temporada, um contra-relogista que poderia estar próximo de Cancellara e Tony Martin, mas faltava confirmar que era capaz de subir ao nível (ou melhor) do Tour 2009. Venceu o Critérium du Dauphiné mas ainda poucos acreditavam que poderia lutar pela vitória na prova rainha. Dizia a maioria dos críticos/analistas que estava em forma demasiado cedo e acabaria por falhar novamente no Tour. Da minha parte, não o coloquei como candidato ao Tour. Defendi eu, na altura, que a Wiggins não se podia exigir o mesmo que a Contador, Andy Schleck ou Cadel Evans e que era altura do britânico estar satisfeito pois, independentemente do que acontecesse no Tour, tinha conquistado a sua maior vitória até então e, provavelmente, a maior que teria na sua carreira de estrada.

A aventura na Volta a França do ano passado resumiu-se a uma semana, desistindo à 7ª etapa com a uma fractura na clavícula e sem tempo para mostrar que era (mesmo) um candidato à vitória. Redireccionou o seu objectivo para a Vuelta, onde terminou em terceiro, realizando uma prova quase perfeita. Falhou apenas na rampa mais inclinada do Angliru (a mais de 20%) e aí perdeu as suas hipóteses de vencer, terminando atrás de Juanjo Cobo e o seu colega Froome. Finalizou a temporada com o vice-título mundial de contra-relógio e o objectivo claro: vencer o Tour 2012.

Após a Vuelta, já havia algumas pessoas (para além dos seus directores) a acreditar que Wiggins seria capaz. Aí comecei também eu a acreditar. O percurso anunciado tinha pouca montanha e sem grandes rampas, facilitando a sua defesa, e muito contra-relógio, onde poderia marcar grandes diferenças para toda a concorrência.

A chegada ao outro céu (sky) (2012)


Após a 1ª etapa da Volta ao Algarve:
Porte e Boasson Hagen em recuperação
activa
Tive o privilégio de acompanhar a primeira competição de Wiggins em 2012, a Volta ao Algarve, então com o equipamento de campeão britânico de fundo. Na altura já se sabia que Contador não correria a Volta a França, havia demasiado contra-relógio para os irmãos Schleck e eu começava a ver Wiggins como um homem para pódio em França. Na Volta ao Algarve foi 3º, trabalhando para o seu colega Richie Porte, que viria a vencer. Mais do que a vitória de Wiggo no contra-relógio (frente a Martin) ou de Porte na geral, o que mais me surpreendeu foi todos os ciclistas da Sky, depois de comandarem o pelotão durante a primeira etapa, montarem as suas bicicletas nos rolos para iniciar a fase de recuperação activa. Após a segunda etapa, vencida por Hagen, enquanto o norueguês estava no pódio, já os seus colegas estavam no mesmo ritual. O que estavam a fazer não se devia a nenhum descoberta científica recente, pois há muito anos que se conhece o conceito e benefícios da recuperação activa após os longos esforços, mas nunca eu tinha visto uma equipa tão rigorosa nesse aspecto.

Depois da Sky arrasar a Volta ao Algarve (3 etapas, 1º e 3º no pódio, classificação por pontos e equipas), Wiggins foi para França vencer o Paris-Nice. Seguiu-se a Volta à Catalunha, antes da qual anunciou que iria ajudar os seus companheiros. A gestão de recursos humanos feita pela Sky foi perfeita: Wiggins dava novamente espaço a Porte e agora também a Urán, que o tinha ajudado a vencer o Paris-Nice. Wiggins desistiu à terceira etapa para não comprometer a sua preparação para o Tour, num dia de condições meteorológicas muito adversas. Urán venceu uma etapa, foi quinto na geral e assim se mantinha satisfeito um jovem talento e um grande trepador da equipa.

Voltou a competir na Romandia, onde venceu uma etapa em linha, o contra-relógio e a geral. Todos diziam que estava em forma demasiado cedo e que falharia no Tour. Na verdade, Evans já no ano passado tinha vencido Tirreno-Adriático (na mesma altura que Paris-Nice) e Romandia antes do Tour, mas os críticos de Wiggins carregavam forte no argumento de que estava em forma muito cedo.

Seguiu para estágio na ilha de Tenerife, onde fez 32 mil metros de subida acumulada, tal como já tinha feito em Abril. Voltou de lá a dizer que tinha treinado mais duro do que a Volta a França, com subidas, calor e estradas vazias, e que não se sentia nervoso quanto ao Tour, mas sim excitado. Entretanto, Michael Rogers, outro dos escudeiros com que contava para o Tour, vencia a Volta à Baviera e Mark Cavendish três etapas no Giro. Todos satisfeitos a caminho do grande objectivo.

Em Junho, Wiggins disse que ia ao Dauphiné para ganhar, que queria ganhar Dauphiné e Tour e voltaram as críticas de que estava a ser demasiado optimista e chegaria à Grande Boucle com forma muito adiantada. O que se propunha fazer não é algo histórico, que nunca ninguém tivesse feito. Miguel Indurain (uma das grandes referências do britânico) fé-lo em 1995, Armstrong em 2002 e 2003 e mesmo Cadel Evans e Contador já estiveram perto. Evans foi 2º em ambas as provas em 2007 e 2008 e 2º no Dauphiné do ano passado antes de vencer o Tour; Contador foi 3º no Dauphiné 2009 e 2º em 2010, dois anos em que venceu o Tour (desclassificado posteriormente em 2010, é certo). Além disso, muito pouca gente consegue perceber o nível de desenvolvimento cientifico do projecto da Sky. Aliás, acho que só eles mesmo saberão. Basicamente, a Federação Britânica passou para a estrada o rigor e desenvolvimento cientifico que os levou a dominar os velodromos do mundo. Eles sabem exactamente do que são capazes, quais os seus limites físicos.

Quanto ao Tour, já se sabe. A Sky tinha os dois corredores mais fortes e a melhor equipa. Se alguém vos disser que os homens da Sky só se tornaram bons agora, não liguem. Retirando Cavendish e Eisel, que estavam lá para outras lutas, Wiggins tinha seis excelente companheiros: (1) Froome, sobre o qual já aqui falei; (2) Michael Rogers, que tem um curriculo impressionante mas para referir apenas resultados de grandes voltas basta dizer que foi 9º no Tour 2006 e 6º no Giro 2009; (3) Richie Porte, 7º e melhor jovem no Giro 2010; (4) Siutsou, que acabou por desistir por lesão mas foi 16º no Tour 2008, 15º no Giro 2009 e 9º no Giro 2011; (5) Knees, que surpreendeu muita gente pela ajuda que deu a Wiggins, mas antes de ser gregário na Sky foi 26º no Tour 2008 e 20º no Tour 2009; (6) Hagen, o todo-o-terreno que não é trepador mas já era um dos mais completos do mundo enquanto sub-23 e continua a sé-lo.

Isto, apenas para referir resultados em grandes voltas e antes de estes corredores estarem na Sky. Repito: se alguém vos disser que os homens da Sky só se tornaram bons agora, ignorem. Durante estes dias tenho ouvido e lido esses comentários, não muitas vezes, mas mais do que gostaria. A Sky é uma equipa com um enorme orçamento, que conseguiu construir uma equipa espectacular, talvez a mais completa desde a criação do Pro Tour, quando as equipas passaram a ter cerca de trinta corredores.

Sir e Gentleman


Na primeira etapa dos Pirenéus, Cadel Evans furou por diversas vezes, já na parte final da etapa, e a Sky abandonou a cabeça do pelotão à espera que o australiano reentrasse, sendo ele, na altura, o mais perigoso adversário na luta pela camisola amarela. Alguns adeptos não gostaram da atitude e achavam que a Sky devia ter feito o mesmo que a Liquigas e a Lotto: endurecido a corrida para que Evans ficasse fora da luta pelo pódio.

Nascido na Bélgica, filho de pai australiano, mas britânico
No final Wiggins declarou que, se não ganhava tempo a subir, não faria sentido ganhar a descer por um furo do adversário, a imprensa francesa apelidou-o de "gentleman" e, mesmo quem defendia que a equipa inglesa devia ter aproveitado o azar de Evans, terá que admitir que o camisola amarela foi um nobre cavalheiro. Não precisou disso para voltar para regressar vitorioso ao seu país, onde disputará os Jogos Olímpicos.

Depois de Cavendish se sacrificar no Tour, no dia 28, nos Jogos Olímpicos, vai acontecer o contrário. Cavendish tem como grande objectivo da temporada ser campeão olímpico e esse objectivo é partilhado pela Team Sky/Federação Britânica de Ciclismo. Froome será o primeiro gregário de Cavendish, enquanto David Millar, Ian Stannard e Wiggins serão os lançadores. Com excepção de Millar, todos são ciclistas da Sky.


Dia 1 de Agosto será a vez de Wiggins atacar o ouro na prova de contra-relógio, dividindo o favoritismo com o actual campeão olímpico e quatro vezes campeão mundial Fabian Cancellara e o actual campeão mundial Tony Martin. Independentemente do que aconteça nos Jogos Olímpicos, ainda este ano deverá receber o título de Sir, título dado pela rainha.

Sir Bradley Wiggins ou apenas Wiggo, em 2013 o Tour voltará a ser o objectivo e agora já todos sabem do que ele é capaz!

2 comentários:

  1. Gostei muito deste artigo parabéns Rui.
    Realmente a sky ganha este tour com muita classe e as maiores ameaças a Bradley Wiggins pareciam ser mais internas do que externas com as supostas desavenças com Froome, que parece-me ser o melhor gregário de Wiggins e é inclusive mais forte que ele na montanha. No entanto de ressalvar uma coisa que referiste no artigo, a Sky deu espaço a todos os gregários de Wiggins para brilhar antes do Tour excepto Froome que terá a sua oportunidade na Vuelta e vai medir forças com os melhores trepadores do mundo.

    Só tenho pena de não ter visto o post no facebook em que dizias que ias publicar cronicas dos leitores sobre o Tour ontem.
    Estás a pensar em dar essa oportunidade outra vez na durante a Vuelta ou na nossa Volta a Potugal?

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    1. Boa noite, Davide.

      A oportunidade ainda está em aberto para o Tour. Informação em:
      https://www.facebook.com/CarroVassoura/posts/371254026273051


      Cumprimentos

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