Tal como a montanha coloca a nu as fragilidades de muita
gente, o recente comunicado emitido por Lance Armstrong tornou visíveis as
fragilidades de muitos jornalistas nacionais encarregues de escrever sobre ele.
Nem todos, claro, porque há bons profissionais, mas quem escreveu/disse que
José Azevedo pode vencer duas Voltas a França como resultado do Caso Armstrong
errou redondamente.
Lembro-me da primeira conferência de imprensa em que estive
presente. Foi em 2007, antes da Volta ao Algarve, e tinha como protagonista
Alessandro Petacchi, que na altura já levava 17 vitórias em etapas na Vuelta, 19
no Giro e 4 no Tour, sendo portanto uma figura muito interessante para
entrevistar. Com cerca de vinte jornalistas na sala, portugueses e
estrangeiros, esperava uma conferência de imprensa interessante, com boas
perguntas e boas respostas. Em vez disso, um jornalista de um “jornal de
referência” decidiu perguntar se Petacchi era religioso, como estava a família
e qual o clube de futebol preferido. Pela primeira vez, vi aí, in loco, as limitações dos jornalistas
a quem estava entregue a secção de ciclismo em alguns jornais.
O jornal holandês De Telegraag fez um artigo em género de
curiosidade, chamado “Quem fica com as vitórias no Tour?”. Relembre-se que na Holanda o ciclismo não é
um desporto de rodapé mas sim o segundo desporto mais popular, muito próximo
até do futebol. Na Holanda, o ciclismo não aparece nos jornais apenas quando o
tema é doping. Em vez disso, faz capa (até nos jornais generalistas) sempre que
se disputa uma grande prova ou quando há novidades sobre corredores holandeses
ou a Rabobank.
Nesse artigo, o De Telegraaf fazia o seguinte exercício: se
retirarmos das classificações todos os corredores que, em algum momento da sua
carreira, foram condenados ou investigados por doping, quem ficaria com os
títulos? E com os restantes lugares do pódio? Exercício espectável, diga-se. No
site d’A Bola, pode ler-se o título “José Azevedo pode vencer dois Tours” e, no corpo da notícia, “se todos os ciclistas associados a
escândalos de doping forem penalizados, o português pode reclamar os títulos de
2002 e 2004, segundo o jornal holandês De Telegraaf.” Já no site da RTP, o
título é igualmente errado “José Azevedo pode ganhar com destituição de Lance Armstrong” mas no corpo da
notícia a situação é melhor explicada: “se fossem desclassificados todos os
ciclistas envolvidos em casos de dopagem na Volta a França, o português José
Azevedo ascenderia à qualidade de vencedor da prova em 2002”. No telejornal de
sexta-feira, voltaram a insistir no erro: “José Azevedo poderá vir a ser
considerado o vencedor da Volta a França em 2002. (…) A USADA quer banir
Armstrong do ciclismo e retirar-lhe todos os títulos desde 1998, o que daria o
título de 2002 a José Azevedo”. Errado. “Se forem” e “se fossem”, é diferente. “Se
forem” indica que existe a possibilidade de acontecer; “se fossem” indica que
não vai acontecer. É apenas especulativo.
A USADA quer retirar os títulos de Armstrong mas é a UCI
quem o poderá fazer. Se o fizer (repito: se o fizer), e duvido que o faça,
Azevedo não será vencedor da Volta a França de 2002 nem de 2004, pois nenhum
dos outros que o antecederam na classificação perderam os seus resultados.
Estes foram os resultados “na estrada” dessas duas Voltas a França:
2002: 1º Lance Armstrong; 2º Joseba Beloki; 3º Raimondas Rumsas;
4º Santiago Botero; 5º Igor González Galdeano; 6º José Azevedo
2004: 1º
Lance Armstrong; 2º Andreas Klöden; 3º Ivan Basso; 4º Jan Ullrich; 5º José
Azevedo
Dos 8 ciclistas que ficaram à frente de Azevedo nestes dois
anos, nenhum perdeu os seus resultados anteriormente citados. Vou explicar cada
situação sucintamente, pois são todas muito fáceis de compreender.
Lance Armstrong
Sobre Lance Armstrong, nada melhor do que o artigo aqui publicado ontem, da autoria do advogado Diogo Martins. Basicamente,
falta saber se a UCI aceita a decisão da USADA e retira os resultados a
Armstrong, pois só a UCI o poderá fazer. Se a UCI retirar os resultados de
Armstrong (desde 1998, como a USADA pretende), os vencedores seriam os segundos
classificados: Joseba Beloki (02) e Andreas Klöden (04).
Ivan Basso
Ivan Basso foi referenciado na Operação Puerto em 2006, em
2007 admitiu as suas relações com Eufemiano Fuentes dizendo que planeava fazer
uso de transfusões sanguíneas no Tour de 2006 mas que não chegou a fazer, uma
vez que toda a trama foi descoberta antes desse Tour. Recebeu dois anos de
suspensão, contabilizando os dias de suspensão provisória imposta pela CSC
(onde corria). Não perdeu qualquer resultado.
Jan Ullrich
Ullrich foi referenciado na Operação Puerto e desde logo as
autoridades alemãs e suíças (onde tinha licença) abriram investigações sobre as
ligações entre o corredor e Eufemiano Fuentes. Em 2008 a investigação alemã foi
encerrada por falta de provas de culpa e em 2010 a Federação Suíça de Ciclismo
também encerrou a sua investigação porque Ullrich já não era membro da mesma e,
assim, a FSC perdia jurisdição sobre
o caso. A UCI recorreu para o TAD e em Fevereiro deste ano saiu o veredicto:
Ullrich culpado, é-lhe aplicada uma suspensão desde Agosto de 2011 e são-lhe
retirados todos os resultados desde Maio de 2005 até ao final da sua carreira
(Junho de 2006), não perdendo, portanto, o 4º lugar de 2004. Após a decisão do
TAD, admitiu publicamente que se tinha dopado.
Raimondas Rumsas
A polícia descobriu uma autêntica farmácia no carro da sua
esposa, mas ele reclamou inocência. Dizia que nada daquilo era para ele. Em
2003 acusou EPO e foi suspenso por um ano, mas os resultados anteriores não lhe
foram retirados, mantendo o 3º lugar do Tour 2002.
Igor González de Galdeano
Em 2003, González de Galdeano acusou salbutamol, um produto
para a asma. As autoridades francesas suspenderam-no por seis meses mas a
suspensão apenas foi válida em França, pois a UCI não a aceitou e, assim sendo,
só pode ser aplicada ao território em gaulês. Não pôde correr a Volta a França
desse ano mas os resultados anteriores não foram alterados. Manteve o 5º lugar
do Tour 2002 e depois de cumprida a suspensão voltou a competir normalmente.
Andreas Klöden
Alegadamente, durante a Volta a França de 2006 (que começava
junto à fronteira com a Alemanha) deslocou-se a Friburgo (Alemanha) com alguns
colegas de equipa para receber transfusões sanguíneas. Nunca foi condenado por
nada. Os resultados mantêm-se.
Santiago Botero
Foi referenciado na Operação Puerto, investigado pela
Federação Colombiana de Ciclismo e considerado inocente. Assim sendo,
obviamente, os seus resultados não foram alterados.
Joseba Beloki
Situação bastante fácil de explicar mas que deve causar
embaraço para os jornalistas portugueses. Joseba Beloki foi, inicialmente, referenciado
pela imprensa como investigado na Operação Puerto. A Operação Puerto foi
tornada pública em Maio de 2006 e no mês de Julho Joseba Beloki foi oficialmente
retirado do processo juntamente a Alberto Contador, Isidro Nozal, Allan Davis e…
Sérgio Paulinho. Esses foram os primeiros a ser retirados do processo, dado que
nada indicava que se tivessem dopado. Assim sendo, nunca quis eu ligar Beloki,
Contador, Isidro Nozal, Davis ou Paulinho a Eufemiano Fuentes pois, se as
autoridades acharam que não havia motivos para os investigar, não vou ser eu
retira-los os resultados. Mas fica a pergunta para quem quer retirar Beloki das
classificações de 2002: também querem retirar ao Sérgio Paulinho a medalha
olímpica de 2004?
Conclusão
Aqui sim, uma vitória de Azevedo: a etapa rainha da Volta à Alemanha 2003 |
José Azevedo foi 6º na Volta a França 2002 e 5º na Volta a
França 2004. Se A UCI retirar os resultados de Armstrong (ainda não se
pronunciou sobre a sua intenção quanto a isso), Azevedo sobe a 5º e 4º nesses
dois anos.
Basso e Ullrich assumiram o seu envolvimento na Operação
Puerto mas não perderam os resultados alcançados anteriormente à sua ligação
com Eufemiano Fuentes. Rumsas e González de Galdeano foram os únicos a acusar
positivo mas os resultados anteriores ao controlo permanecem iguais (incluindo
os respectivos 3º e 5º lugares no Tour 2002) e, no caso do espanhol, a suspensão
só teve efeito em França. Andreas Klöden foi acusado pela comunicação social
mas nunca foi condenado e as acusações dizem respeito a 2006, não aos anos em
que, supostamente, José Azevedo venceria o Tour. Santiago Botero e Joseba
Beloki foram inicialmente referenciados na Operação Puerto, Botero foi julgado
e considerado inocente e Beloki nem chegou a ser julgado, já que foi retirado
do caso no mesmo dia que Sérgio Paulinho.
*****
*****
Outros artigos sobre este caso:
05/07/12: Julho, época de caça ao Homem
24/08/12: Caso Lance Armstrong: verdades
Este comentário foi removido pelo autor.
ResponderEliminarCarro Vassoura.
ResponderEliminarNeste grande folhetim (pois os todos dias se escreve) sobre Armstrong.
Ainda não foi dita a última palavra! Não importa o que USADA diga ou UCI. A última palavra, se Armstrong apelar. Será dada pela CÃS (Court of Arbitration for Sport). Depois todo aquele relatório apresentado pela USADA, não tem valor Jurídico. Pois tudo se baseia em testemunhos. E não de provas. Os testemunhos de Floyd Landis e Tyler Haniton não são de crédito, pois eles memos se contradizem quando interrogados pela USADA.
Finalmente. Um Júri Federal composto de advogados profissionais. Durante dois anos de Investigações. O caso foi encerrado por não haver provas sobre o Doping de Armstrong. Neste caso (se eu entendo) Ele foi absolvido!
O Folhetim continua.
Jc