O bom David Blanco, que foi conquistado por Portugal e
conquistou os portugueses ao ponto da vitória dele ou de um português ser
idêntica, tornou-se há poucas horas o primeiro penta-vencedor da Volta a
Portugal. Fez história e aqui está a sua história.
Foi em 2000 que David Blanco chegou a profissional, perto de
cumprir 25 anos. Mais tarde do que a maioria dos outros corredores, “atraso”
justificado pelo seu percurso académico em Administração e Direcção de Empresas
na Universidade de Santiago de Compostela. No ano anterior tinha sido terceiro
na Volta a Portugal do Futuro e esse resultado terá sido um dos maiores
factores de interesse da equipa de Paredes. A amizade de Ezequiel Mosquera,
então corredor de Paredes, terá sido outra importante ajuda.
Com alguns bons resultados, aqui e ali, nas duas primeiras
temporadas, no final de 2001 decidiu
colocar de parte o ciclismo e começar carreira como corretor da Bolsa de
Valores de Madrid. Quatro meses chegaram para perceber que preferia ser
ciclista. Em Junho ainda conseguiu arranjar lugar na ASC-Vila do Conde e
correr a Volta a Portugal, terminando em 21º
2003 foi o ano de dedicar-se de corpo e alma ao ciclismo,
pela Porta da Ravessa-Tavira, e foi aí que começou a dar os primeiros sinais
claros de que poderia chegar longe na modalidade. Segundo na chegada à Torre,
quinto na classificação final da Volta a Portugal, conseguiria a sua primeira vitória internacional no GP CTT Correios
desse ano, na Figueira da Foz. A boa temporada valeu-lhe um lugar na
Comunidad Valenciana e por aí se manteve até 2006. Nos dois primeiros anos,
destacam-se muitos resultados de mérito, incluindo o 10º posto da Vuelta 2004 e
o 12º em 2005. Nesse ano foi convocado
para representar a selecção espanhola nos Campeonatos do Mundo… de Madrid.
2006 foi um ano agridoce. Ácido, pelo rebentar da Operação
Puerto, que envolveu profundamente a equipa Comunidad Valenciana e a impediu de
disputar a Volta a França, doce porque foi o ano da sua primeira vitória na
Volta a Portugal.
A primeira vitória, em 2006 |
Foi uma Volta a Portugal cheia de volte-faces. Pelo segundo
ano consecutivo sem chegada à Torre, existia em muitos portugueses o desejo de
ver Cândido Barbosa vencer, desejo esse alimentado pela comunicação social que
vi nesta a mais fácil forma de manter a população agarrada à Volta. Além de
Cândida Barbosa, o duelo entre a LA Alumínios de Américo Silva e a
Maia-Milaneza de José Zeferino era alimentado por Nuno Ribeiro, Rui Sousa e
Héctor Guerra de um lado, João Cabreira, Bruno Pires, Pedro Cardoso e Danail
Petrov do outro. Claus Moller, pela Barbot, deixava antever que a vitória não
era um dado assegurado para LA ou para a Maia, mas David Blanco chegou a essa
Volta sem maior destaque.
Foi uma Volta atípica. Durante os seus dez dias, houve dez líderes
diferentes e nove vencedores de etapa. Apenas Blanco bisou, vencendo na Guarda
e o contra-relógio final. Depois de uma longa fuga até Fafe, Ricardo Mestre foi
de camisola amarela para a etapa da Senhora da Grança, onde vingou uma fuga de
mais de 100 km, integrando Cabreira, Guerra, o austríaco Christian Pfannberger
e Carlos Pinho. Blanco foi um dos que fez a subida mais rápido mas perdeu 2.30
minutos. No dia seguinte, nova fuga formada nos primeiros quilómetros com
homens importantes terminava com a vitória de David Blanco, Cândido Barbosa em
segundo e Pfannberger a arrebatar a liderança, depois de nova presença na escapada
certa. No penúltimo dia, o austríaco não aguentou as subidas às Penhas Douradas
e à Torre (a 80 km da meta) e a amarela transformou-se num Prémio Carreira de
Carlos Pinho. No contra-relógio final, Blanco recuperou o minuto que o separava
da liderança e cavalgou do 5º para o 1º lugar. Primeiro triunfo na Volta a
Portugal, primeiro de cinco.
Com o final da Comunidad Valenciana, voltou a assinar pela
equipa de Tavira, patrocinada pela espanhola DUJA, agora com o objectivo claro de
vencer a Volta a Portugal. Foi o único ano em que falhou. Na ascensão à Torre
cedeu ainda muito cedo, perdeu quase três minutos e meio e ficou-se pelo quinto
lugar final. Tinha falhado na preparação e não estava a 100% na Volta. Aprendeu com os erros e em 2008 não falhou.
Na Volta a Portugal de 2008, a organização cometeu o erro de
colocar a Torre logo à 3ª etapa. Uma longa fuga deu a vitória a Rui Sousa, mas
David Blanco ganhou aí um minuto a Héctor Guerra e três a Ruben Plaza, os mais
perigosos adversários com vista ao contra-relógio do último dia. A Liberty
Seguros atacou, a equipa de Tavira defendeu, Blanco agarrou a roda de Héctor
Guerra e na Senhora da Graça chegou à camisola amarela. No contra-relógio
defendeu a vantagem que tinha conquistado para Guerra logo na terceira etapa e
conquistou a segunda Volta a Portugal. Depois de ultrapassar a linha de meta,
no alto de Santa Quitéria (Felgueiras), sentou-se no chão, encostado às
barreiras publicitárias, exausto com toda a equipa e todos os jornalistas em
seu redor. Fizeram-se momentos de
silêncio, depois quebrados por um grito que misturava satisfação e alívio.
2006 não tinha sido por acaso, triunfo repetido.
No final desse ano, Blanco
protagonizou uma pequena acção que mostra bem a sua forma de ser e que
dificilmente esquecerei. No site que eu tinha na altura,
CiclismoDigital.com, foi organizada uma votação para eleger o melhor ciclista
da temporada. Criei um endereço de e-mail próprio para a votação e cada pessoa
poderia votar uma vez, enviando um mail com o seu voto. Houve até ciclistas que
tiveram a família inteira a votar. Não foi o caso do David. O David, por sua
vez, também votou. Enviou um e-mail que dizia algo como “Voto em Héctor Guerra.
Excepto o dia da Torre, ele foi o melhor.” Até hoje, acho que nunca referi este
episódio em público porque o David também não o fez para ser público. Hoje, no
dia em fez história na Volta, achei por bem trazer aqui este exemplo da sua humildade.
Para 2009, David Blanco partia como grande favorito e
esperava-se que a maior ameaça fosse Héctor Guerra, que novamente estava a
realizar uma extraordinária temporada. Logo no primeiro teste, na Senhora da
Graça, Guerra mostrou que já estava em período descendente da sua forma e, ao
contrário, Nuno Ribeiro chegava à camisola amarela graças a uma fuga. Blanco
foi o mais rápido entre os homens que começaram a subida final no pelotão mas
perdeu quase dois minutos para Nuno Ribeiro e João Cabreira, vencedor desse dia
(os dois seriam posteriormente desclassificados por doping).
Torre, 2010 |
Na chegada à Torre, no penúltimo dia de prova, David Blanco
mostrou uma condição física incrível. Furou, reentrou no grupo principal e
ainda foi segundo, apenas atrás de Nuno Ribeiro. No contra-relógio final não conseguiu
recuperar o atraso, ficado a 1.24m de Ribeiro, mas os posteriores controlos
anti-doping positivos do português deram a Blanco a vitória na Torre, a vitória
no contra-relógio (que era de Guerra) e, mais importante, a vitória na
classificação geral. Foi a vitória que menos prazer lhe deu, apenas conquistada
na secretaria.
A Volta a Portugal de 2010 é a mais fácil de descrever: não
deu hipóteses.
Após ser tetra-vencedor da Volta a Portugal e empatar com
Marco Chagas enquanto recordista, o desafio do penta era aliciante, mas não foi
o mais aliciante. A empresa Geox queria apostar forte no ciclismo e
patrocinaria a ex-Saunier Duval e ex-Footon-Servetto com 50 milhões de euros
para cinco anos. Os directores da equipa queriam Blanco e, com Denis Menchov e
Carlos Sastre já assegurados, a presença na Volta a França parecia uma certeza.
Blanco teve que escolher: tentar a 5ª Volta a Portugal ou participar pela
primeira vez na Volta a França. Blanco escolheu o segundo objectivo.
Na despedida, no Festival de Pista de Tavira, a cidade que o
acolheu de coração, as lágrimas apareceram-lhe nos olhos. Ele tinha dado à
cidade três vitórias na Volta a Portugal, a cidade tinha-lhe dado a
oportunidade de fazer história mas a ligação chegava ao fim.
A Geox não foi convidada para o Tour e a época foi salva
desportivamente pela vitória de Juanjo Cobo na Volta a Espanha. Apesar disso, a
empresa italiana de calçado rescindiu contrato e a equipa acabou. Em Outubro,
Blanco descobriu que tinha uma bactéria a destrui-lhe o estomago mas já nada
podia fazer quanto aos resultados dessa temporada, que tinham sido desastrosos.
Muita gente deu a sua carreira desportiva como terminada mas ele, cabeça-dura
como poucos, acreditava que, sem doenças, ainda podia disputar a Volta a
Portugal de 2012. Queria regressar a Portugal e de preferência em Tavira, mas
lá não havia dinheiro para mais um. Chegou a acordo com a Efapel-Glassdrive em
Março.
O percurso ao longo da presente temporada, já aqui foi
descrito ainda antes da Volta. O David, inteligentíssimo e sempre consciente
das suas capacidades mas também das suas limitações, sabia que não podia
conquistar vitórias de Março a Agosto. Numa entrevista aqui há uns anos (não
sei o ano concreto nem sei se a li ou se fui eu que a fiz), o David explicava
que, com o passar dos anos, cada vez demorava mais tempo a estar em forma.
Chegava lá, mas tardava.
Depois de um 2011 desastroso (como o próprio sempre admitiu)
e sem vitórias em 2012, muitos não acreditavam que vencesse a Volta nem que,
sequer, estivesse na luta. Mas Blanco tinha, aqui e ali, demonstrações de que
podia subir com os melhores e que podia estar entre os primeiros classificados
do contra-relógio final.
Na etapa da Senhora da Grança pareceu muito justo, mas o
suficiente para não perder tempo. Na Torre atacou, ainda longe da meta, para a
vitória e para a camisola amarela. 24 meses depois, 740 dias depois, voltava a
vencer e a estar de amarelo, não com o amarelo da Efapel, mas com o amarelo da
Volta a Portugal. No dia antes tinha dado o seu amuleto da sorte ao adversário mas
também amigo Ricardo Mestre, vítima de queda que chegou a assustar.
Foi 4º no contra-relógio e ficou a um pequeno passo da
vitória. Além da sua prestação, certamente terá ficado muito agradado pela
vitória de Alejandro Marque, um dos amigos mais próximos. Em Lisboa
consagrou-se vencedor da Volta a Portugal 2012, com 22 segundos de vantagem
para Hugo Sabido. Transpôs a linha de meta de braços no ar, como em 2010, a
primeira ocasião em que teve etapa de consagração. Quando os microfones se
aproximaram, tentou responder às perguntas mas a emoção não o deixou. Estava
outra vez com as lágrimas a chegarem aos olhos, como na despedida de Tavira,
quando os jornalistas dispersaram para que conseguisse passar.
Agora, cabe a ele mesmo decidir o seu futuro. Se regressa
para tentar a sexta vitória, ou se arruma a bicicleta e se dedica a outra
actividade, seja relacionada com os seus estudos ou não, pois capacidade
intelectual não lhe falta. Seja qual for a escolha, Portugal e os portugueses
estão conquistados. Parabéns, David Blanco!
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