domingo, 26 de agosto de 2012

A História que fez David Blanco


O bom David Blanco, que foi conquistado por Portugal e conquistou os portugueses ao ponto da vitória dele ou de um português ser idêntica, tornou-se há poucas horas o primeiro penta-vencedor da Volta a Portugal. Fez história e aqui está a sua história.


Foi em 2000 que David Blanco chegou a profissional, perto de cumprir 25 anos. Mais tarde do que a maioria dos outros corredores, “atraso” justificado pelo seu percurso académico em Administração e Direcção de Empresas na Universidade de Santiago de Compostela. No ano anterior tinha sido terceiro na Volta a Portugal do Futuro e esse resultado terá sido um dos maiores factores de interesse da equipa de Paredes. A amizade de Ezequiel Mosquera, então corredor de Paredes, terá sido outra importante ajuda.

Com alguns bons resultados, aqui e ali, nas duas primeiras temporadas, no final de 2001 decidiu colocar de parte o ciclismo e começar carreira como corretor da Bolsa de Valores de Madrid. Quatro meses chegaram para perceber que preferia ser ciclista. Em Junho ainda conseguiu arranjar lugar na ASC-Vila do Conde e correr a Volta a Portugal, terminando em 21º

2003 foi o ano de dedicar-se de corpo e alma ao ciclismo, pela Porta da Ravessa-Tavira, e foi aí que começou a dar os primeiros sinais claros de que poderia chegar longe na modalidade. Segundo na chegada à Torre, quinto na classificação final da Volta a Portugal, conseguiria a sua primeira vitória internacional no GP CTT Correios desse ano, na Figueira da Foz. A boa temporada valeu-lhe um lugar na Comunidad Valenciana e por aí se manteve até 2006. Nos dois primeiros anos, destacam-se muitos resultados de mérito, incluindo o 10º posto da Vuelta 2004 e o 12º em 2005. Nesse ano foi convocado para representar a selecção espanhola nos Campeonatos do Mundo… de Madrid.

2006 foi um ano agridoce. Ácido, pelo rebentar da Operação Puerto, que envolveu profundamente a equipa Comunidad Valenciana e a impediu de disputar a Volta a França, doce porque foi o ano da sua primeira vitória na Volta a Portugal.

A primeira vitória, em 2006
Foi uma Volta a Portugal cheia de volte-faces. Pelo segundo ano consecutivo sem chegada à Torre, existia em muitos portugueses o desejo de ver Cândido Barbosa vencer, desejo esse alimentado pela comunicação social que vi nesta a mais fácil forma de manter a população agarrada à Volta. Além de Cândida Barbosa, o duelo entre a LA Alumínios de Américo Silva e a Maia-Milaneza de José Zeferino era alimentado por Nuno Ribeiro, Rui Sousa e Héctor Guerra de um lado, João Cabreira, Bruno Pires, Pedro Cardoso e Danail Petrov do outro. Claus Moller, pela Barbot, deixava antever que a vitória não era um dado assegurado para LA ou para a Maia, mas David Blanco chegou a essa Volta sem maior destaque.

Foi uma Volta atípica. Durante os seus dez dias, houve dez líderes diferentes e nove vencedores de etapa. Apenas Blanco bisou, vencendo na Guarda e o contra-relógio final. Depois de uma longa fuga até Fafe, Ricardo Mestre foi de camisola amarela para a etapa da Senhora da Grança, onde vingou uma fuga de mais de 100 km, integrando Cabreira, Guerra, o austríaco Christian Pfannberger e Carlos Pinho. Blanco foi um dos que fez a subida mais rápido mas perdeu 2.30 minutos. No dia seguinte, nova fuga formada nos primeiros quilómetros com homens importantes terminava com a vitória de David Blanco, Cândido Barbosa em segundo e Pfannberger a arrebatar a liderança, depois de nova presença na escapada certa. No penúltimo dia, o austríaco não aguentou as subidas às Penhas Douradas e à Torre (a 80 km da meta) e a amarela transformou-se num Prémio Carreira de Carlos Pinho. No contra-relógio final, Blanco recuperou o minuto que o separava da liderança e cavalgou do 5º para o 1º lugar. Primeiro triunfo na Volta a Portugal, primeiro de cinco.

Com o final da Comunidad Valenciana, voltou a assinar pela equipa de Tavira, patrocinada pela espanhola DUJA, agora com o objectivo claro de vencer a Volta a Portugal. Foi o único ano em que falhou. Na ascensão à Torre cedeu ainda muito cedo, perdeu quase três minutos e meio e ficou-se pelo quinto lugar final. Tinha falhado na preparação e não estava a 100% na Volta. Aprendeu com os erros e em 2008 não falhou.

Na Volta a Portugal de 2008, a organização cometeu o erro de colocar a Torre logo à 3ª etapa. Uma longa fuga deu a vitória a Rui Sousa, mas David Blanco ganhou aí um minuto a Héctor Guerra e três a Ruben Plaza, os mais perigosos adversários com vista ao contra-relógio do último dia. A Liberty Seguros atacou, a equipa de Tavira defendeu, Blanco agarrou a roda de Héctor Guerra e na Senhora da Graça chegou à camisola amarela. No contra-relógio defendeu a vantagem que tinha conquistado para Guerra logo na terceira etapa e conquistou a segunda Volta a Portugal. Depois de ultrapassar a linha de meta, no alto de Santa Quitéria (Felgueiras), sentou-se no chão, encostado às barreiras publicitárias, exausto com toda a equipa e todos os jornalistas em seu redor. Fizeram-se momentos de silêncio, depois quebrados por um grito que misturava satisfação e alívio. 2006 não tinha sido por acaso, triunfo repetido.

No final desse ano, Blanco protagonizou uma pequena acção que mostra bem a sua forma de ser e que dificilmente esquecerei. No site que eu tinha na altura, CiclismoDigital.com, foi organizada uma votação para eleger o melhor ciclista da temporada. Criei um endereço de e-mail próprio para a votação e cada pessoa poderia votar uma vez, enviando um mail com o seu voto. Houve até ciclistas que tiveram a família inteira a votar. Não foi o caso do David. O David, por sua vez, também votou. Enviou um e-mail que dizia algo como “Voto em Héctor Guerra. Excepto o dia da Torre, ele foi o melhor.” Até hoje, acho que nunca referi este episódio em público porque o David também não o fez para ser público. Hoje, no dia em fez história na Volta, achei por bem trazer aqui este exemplo da sua humildade.

Para 2009, David Blanco partia como grande favorito e esperava-se que a maior ameaça fosse Héctor Guerra, que novamente estava a realizar uma extraordinária temporada. Logo no primeiro teste, na Senhora da Graça, Guerra mostrou que já estava em período descendente da sua forma e, ao contrário, Nuno Ribeiro chegava à camisola amarela graças a uma fuga. Blanco foi o mais rápido entre os homens que começaram a subida final no pelotão mas perdeu quase dois minutos para Nuno Ribeiro e João Cabreira, vencedor desse dia (os dois seriam posteriormente desclassificados por doping).

Torre, 2010
Na chegada à Torre, no penúltimo dia de prova, David Blanco mostrou uma condição física incrível. Furou, reentrou no grupo principal e ainda foi segundo, apenas atrás de Nuno Ribeiro. No contra-relógio final não conseguiu recuperar o atraso, ficado a 1.24m de Ribeiro, mas os posteriores controlos anti-doping positivos do português deram a Blanco a vitória na Torre, a vitória no contra-relógio (que era de Guerra) e, mais importante, a vitória na classificação geral. Foi a vitória que menos prazer lhe deu, apenas conquistada na secretaria.

A Volta a Portugal de 2010 é a mais fácil de descrever: não deu hipóteses.

Após ser tetra-vencedor da Volta a Portugal e empatar com Marco Chagas enquanto recordista, o desafio do penta era aliciante, mas não foi o mais aliciante. A empresa Geox queria apostar forte no ciclismo e patrocinaria a ex-Saunier Duval e ex-Footon-Servetto com 50 milhões de euros para cinco anos. Os directores da equipa queriam Blanco e, com Denis Menchov e Carlos Sastre já assegurados, a presença na Volta a França parecia uma certeza. Blanco teve que escolher: tentar a 5ª Volta a Portugal ou participar pela primeira vez na Volta a França. Blanco escolheu o segundo objectivo.

Na despedida, no Festival de Pista de Tavira, a cidade que o acolheu de coração, as lágrimas apareceram-lhe nos olhos. Ele tinha dado à cidade três vitórias na Volta a Portugal, a cidade tinha-lhe dado a oportunidade de fazer história mas a ligação chegava ao fim.

A Geox não foi convidada para o Tour e a época foi salva desportivamente pela vitória de Juanjo Cobo na Volta a Espanha. Apesar disso, a empresa italiana de calçado rescindiu contrato e a equipa acabou. Em Outubro, Blanco descobriu que tinha uma bactéria a destrui-lhe o estomago mas já nada podia fazer quanto aos resultados dessa temporada, que tinham sido desastrosos. Muita gente deu a sua carreira desportiva como terminada mas ele, cabeça-dura como poucos, acreditava que, sem doenças, ainda podia disputar a Volta a Portugal de 2012. Queria regressar a Portugal e de preferência em Tavira, mas lá não havia dinheiro para mais um. Chegou a acordo com a Efapel-Glassdrive em Março.

O percurso ao longo da presente temporada, já aqui foi descrito ainda antes da Volta. O David, inteligentíssimo e sempre consciente das suas capacidades mas também das suas limitações, sabia que não podia conquistar vitórias de Março a Agosto. Numa entrevista aqui há uns anos (não sei o ano concreto nem sei se a li ou se fui eu que a fiz), o David explicava que, com o passar dos anos, cada vez demorava mais tempo a estar em forma. Chegava lá, mas tardava.

Depois de um 2011 desastroso (como o próprio sempre admitiu) e sem vitórias em 2012, muitos não acreditavam que vencesse a Volta nem que, sequer, estivesse na luta. Mas Blanco tinha, aqui e ali, demonstrações de que podia subir com os melhores e que podia estar entre os primeiros classificados do contra-relógio final.

Na etapa da Senhora da Grança pareceu muito justo, mas o suficiente para não perder tempo. Na Torre atacou, ainda longe da meta, para a vitória e para a camisola amarela. 24 meses depois, 740 dias depois, voltava a vencer e a estar de amarelo, não com o amarelo da Efapel, mas com o amarelo da Volta a Portugal. No dia antes tinha dado o seu amuleto da sorte ao adversário mas também amigo Ricardo Mestre, vítima de queda que chegou a assustar.

Foi 4º no contra-relógio e ficou a um pequeno passo da vitória. Além da sua prestação, certamente terá ficado muito agradado pela vitória de Alejandro Marque, um dos amigos mais próximos. Em Lisboa consagrou-se vencedor da Volta a Portugal 2012, com 22 segundos de vantagem para Hugo Sabido. Transpôs a linha de meta de braços no ar, como em 2010, a primeira ocasião em que teve etapa de consagração. Quando os microfones se aproximaram, tentou responder às perguntas mas a emoção não o deixou. Estava outra vez com as lágrimas a chegarem aos olhos, como na despedida de Tavira, quando os jornalistas dispersaram para que conseguisse passar.

Agora, cabe a ele mesmo decidir o seu futuro. Se regressa para tentar a sexta vitória, ou se arruma a bicicleta e se dedica a outra actividade, seja relacionada com os seus estudos ou não, pois capacidade intelectual não lhe falta. Seja qual for a escolha, Portugal e os portugueses estão conquistados. Parabéns, David Blanco!

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