Um ano depois de cair e fraturar a clavícula em quatro locais,
Fabian Cancellara regressou à Volta a Flandres para vencer de forma magistral.
Não foi uma revolta de escravos que este Spartacus liderou, mas talvez uma
revolta para com todo o azar que o perseguiu ao longo de 2012, culminando da
melhor forma uma corrida próxima da perfeição da Radioshack.
A Volta a Flandres dos 100 anos não começou da melhor forma,
com Tom Boonen a cair ainda nos quilómetros iniciais e a abandonar. Os exames
médicos não apresentam fraturas mas o campeão belga falhará o
Paris-Roubaix, o que é uma pena. Independentemente de serem fãs de Cancellara, Sagan ou outro, todos os que gostam de ciclismo gostam que todos os melhores protagonistas estejam na estrada.
Como esperado, a primeira fuga do dia foi dominada por
ciclistas de equipas belgas: Tosh Van der Sande (Lotto), Tim De Troyer (Accent
Jobs), Kevin Claeys (Crelan) e Laurens de Vreese (Topsport), com Jetse Bol
(Blanco), Jacob Rathe (Garmin) e Michael Morkov (Saxo-Tinkoff) pelo meio. O que
poucos ou ninguém esperaria era que fosse a Europcar assumir desde muito cedo a
perseguição aos fugitivos, não permitindo que estes chegassem sequer aos quatro
minutos de vantagem.
Sendo curta a diferença entre fugitivos e pelotão, o
surpreendente André Greipel (Lotto) atacou para se chegar à frente com o seu
companheiro Marcel Sieberg, o segundo classificado da última Algarvia Michael
Kwiatkowski (Omega Pharma), Vincent Jerome (Europcar) e Maarten Tjallingii
(Blanco).
Duas equipas estiveram hoje fantásticas taticamente: Lotto e
Radioshack. Os belgas da Lotto, sem um super candidato à vitória mas
acreditando nas possibilidades de Jurgen Roelandts, apostaram por colocar
vários homens na frente para poderem depois ajudar o ex-campeão belga. E Greipel, que não tinha hipóteses de disputar ele mesmo os primeiros lugares, sacrificou-se por um colega, mostrado o porquê de todos dizerem maravilhas a seu respeito desde o dia em que chegou à Lotto. Já da
parte da Radioshack, controlaram muito bem a corrida, sobretudo com Hayden
Roulston e Stijn Devolvder mas também com Gregory Rast e Yaroslav Popovych sempre disponíveis.
Não são super-gregários para estar junto de Cancellara nas duas subidas finais
mas também não era isso que o suíço precisava. Bastava-lhe que os colegas
controlassem a corrida até à última passagem pelo Oude Kwaremont.
Esperar ataques dos principais favoritos antes dessa
dificuldade era pedir demais. Ao contrário do que acontece no Paris-Roubaix,
na Volta a Flandres é mais provável que exista um mini-pelotão a 30 ou 40
quilómetros da meta e nem Cancellara seria capaz de escapar a um grupo com
vários homens da Sky, BMC e Omega Pharma a perseguir. Mesmo no antigo percurso
(até 2011) era algo habitual que a decisão acontecesse nos últimos dois muros, como
foi o caso de 2007 (Alessandro Ballan) ou 2011 (Nick Nuyens), com as surpresas
de Stijn Devolver (2008 e 2009) e uma extraordinária dupla Cancellara-Boonen
(2010) pelo meio.
Como previsto na antevisão da corrida, foram as últimas
subidas a Oude Kwaremont e Paterberg a fazer a diferença. Todas as subidas
desta prova se adaptam a Fabian Cancellara mas Oude Kwaremont é a única que
lhe permite meter um ritmo infernal durante quilómetro e meio e eliminar
todos os seus adversários, um por um. Todos menos Peter Sagan, que aguentou firmemente
na sua roda, para se juntarem a Jurgen Roelandts que entretanto se tinha
isolado na frente.
Peter Sagan ficou então numa situação ingrata. Se todos
tínhamos visto na televisão que o eslovaco tinha sofrido muito no final da
subida, mais do que ver, ele tinha sentido enormes dificuldades para aguentar o
ritmo de Cancellara e sabia que todas as energias lhe fariam falta na subida a
Paterberg. Mas ali tinha que escolher. Ou colaborava com o seu rival e
arriscava-se a que lhe faltasse energia na última dificuldade, ou não
colaborava e arriscava-se a que fossem os dois absorvidos. Optou e bem pela
primeira opção. Era preferível ultrapassar o Paterberg em segundo do que ser
alcançado pelos perseguidores depois do esforço feito na subida anterior.
Roelandts foi o primeiro a ceder no Paterberg e, tal como
Boonen sofreu neste muro na edição do ano passado, Sagan provou o sabor de ver
o seu rival a distanciar-se. Mas enquanto Ballan e Pozzato foram incapazes de
se desfazer de Boonen em 2012, desta fez Cancellara esteve num nível
suficientemente superior para rapidamente ganhar 10s a Sagan.
A partir daí já se sabe como funciona: Cancellara mete o seu
ritmo de contra-relogistas e atrás que se organizem para o apanhar. Raramente o conseguem.
Escrevi há um ano atrás, no rescaldo do Paris-Roubaix, que apenas três
ciclistas de clássicas assumiam sempre as suas responsabilidades sem medo:
Boonen, Cancellara e Gilbert. Sagan continua a não pertencer a este grupo. Com
um Roelandts desgastado, Sagan tinha que assumir a perseguição a Cancellara,
não tanto para a vitória, mas para fugir ao grupo de perseguidores de modo a
poder chegar ao segundo lugar. Se fosse alcançado, ficaria fora do pódio.
Durante alguns quilómetros Sagan hesitou, temeu Roelandts e quase
foram alcançados, mas para sua felicidade lá atrás também não havia organização
e Sagan teve tempo de refletir sobre a situação em que estava e dar mais de
si.
Fabian Cancellara ia alargando a vantagem e conquistaria a
sua segunda vitória na Volta a Flandres de forma autoritária, com 1’27’’ sobre
Peter Sagan, igualando a diferença entre Johan Museeuw e Fabio Baldato em 1995 (1º e 2º). Para encontrar maior diferença entre os dois primeiros é necessário recuar até 1983.
Sagan demonstrou mais uma vez que é um ciclista fantástico, um dos melhores dos últimos largos anos,
mas que precisa de ser bem acompanhado para que saiba o que fazer e quando o
fazer. É jovem e é normal que tenha que melhorar esse aspeto. Além do mais, fora da corrida é
muito mais fácil raciocinar do que em cima da bicicleta, com o coração a 180
batimentos por minuto e depois de seis horas de esforço.
Jurgen Roelandts conseguiu um enorme terceiro lugar,
totalmente merecido pela sua postura e da sua equipa. 19 ciclistas lutaram pelo
quarto posto, com Alexander Kristoff (Katusha) a levar a melhor.
Depois de hoje, Cancellara reforçou o seu favoritismo para o
Paris-Roubaix, uma corrida também ela com muito pavé mas de características
significativamente diferentes da Volta a Flandres. Peter Sagan, por seu turno,
começa agora a preparar a Amstel Gold Race, onde quererá melhorar o segundo
lugar da Milano-Sanremo e de hoje e o terceiro lugar do ano passado na prova
holandesa.
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Extra-corrida: Sagan esteve muito mal no final, ao apalpar o rabo de uma das meninas de pódio (ver foto). O que para muitos homens é um piada, para as mulheres é uma enorme falta de respeito e há muitas mulheres que gostam de ciclismo e que não gostaram daquela atitude. Um português fez parecido quando ganhou uma Volta a Portugal de juniores há poucos anos. Não fica bem e aos 23 anos já não se admite.
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Também na Bélgica, disputou-se por estes dias a Triptyque
des Monts et Châteaux (Tríptico dos Montes e Castelos). O nome deve ser
desconhecido pela maioria dos adeptos portugueses mas é uma prova de
referência no que toca ao ciclismo de formação e que já foi vencida por
Devolder, Kashechkin, Thomas Dekker, Lars Boom ou Thomas de Gendt antes de
chegarem à elite do ciclismo mundial. Desta vez foi Fábio Silvestre!
O percurso contava com quatro etapas. Sexta-feira uma tirada de 180 km para sprinters, sábado de manhã um contra-relógio plano de 10 km,
sábado pela tarde uma etapa de 100 km com várias colinas na parte final e no
domingo mais 160 km acidentados.
Contando com um pelotão cheio de jovens promessas, o melhor
foi o português Fábio Silvestre, que continua assim a sua fantástica temporada.
Atrás de si ficaram muitos dos jovens valores já referenciados pelas equipas
World Tour. Se o Fábio Silvestre ainda não estava, agora seguramente estará
referenciado por todas as grandes equipas. E não venceu a geral porque esteve
numa fuga com sucesso mas sim porque esteve entre os melhores todos os dias, o
que ainda lhe valeu a classificação dos pontos. Bravo, Fábio, parabéns!
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Marianne Vos venceu a Volta a Flandres feminina.
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Amanhã não haverá Revista da Semana, porque também não houve
provas suficientes que o mereçam durante esta semana. Por outro lado, estão aí
à porta as primeiras provas para a seleção nacional sub-23 e júnior o que
merecerá crónica durante a semana que se segue, bem como o Paris-Roubaix.
Também durante a semana, no Facebook e no Twitter serão lançadas alguma
curiosidades e fotografias sobre o terceiro monumento do ano, à semelhança do
que já aconteceu para a Ronde.
Parabéns pelo artigo!
ResponderEliminarFicou provado salvo qualquer infelicidade, que Peter Sagan mais ano menos ano vencerá esta corrida.