sábado, 12 de outubro de 2013

Uma carta de Philippe Gilbert

Imagem padrão do Giro, onde foi cancelada uma etapa e modificadas várias
Philippe Gilbert está longe de ser dos meus ciclistas favoritos. Porque apesar de ser um fora de série na estrada, fora dela é o tipo de ciclista que não tem paciência para os adeptos e porque, depois de um 2011 de extraterrestre, parece que na mudança da Lotto para a BMC se esqueceu de alguma coisa. Passou de 18 vitórias em 2011 a uma em 2013. Enfim, tudo muito Contador, símbolos do "novo ciclismo".

Não me vou alongar muito em análises sobre ela, mas esta semana Gilbert publicou uma carta aberta aos seus fãs e à UCI que não posso deixar de partilhar aqui parcialmente. Começa por fazer o balanço da sua temporada, acaba com os agradecimentos da praxe à equipa, patrocinadores e restante pessoal e pelo meio tem este excerto que deixo aqui para vosso conhecimento e reflexão:
(...) 
Gostaria de me dirigir também aos organizadores e à UCI. Espero que o novo presidente da UCI esteja aberto aos sentimentos que atualmente se vivem entre os corredores. Isso já seria uma grande mudança e um passo em frente para os ciclistas.
A forma como a temporada está organizada atualmente, o número de corridas e o seu nível de dificuldade é demasiado, ou até mesmo errado. Todos os organizadores querem a corrida com maior desnível acumulada, a subida mais longa, a subida mais inclinada, a prova mais longa... Em suma, querem algo fora do comum para as suas corridas que as distinga das restantes.
Numa altura em que todos queremos acabar com o doping, há uma clara discrepância entre o que os ciclistas são capazes de fazer e o que nos é proposto nas provas. 
Este ano corri em condições extremas. Durante a Milano-Sanremo tivemos tempestades de neve e na Volta à Califórnia corremos com temperaturas superiores a 50º graus. Em ambos os casos foi indicado aos fãs [população em geral] para ficarem em casa e não fazerem viagens desnecessárias. A nós, porém, foi pedido que déssemos o espetáculo que a audiência esperava de nós, apesar dos óbvios riscos para a saúde de todo o pelotão. Isto é obviamente demasiado.
E ainda não mencionei as longas deslocações durante as corridas por etapas. Estas neutralizações esgotam o período de recuperação que desesperadamente precisamos. No então, a minha questão é simples: realmente precisam de levar isto ao extremo? Não é suficiente que os ciclistas simplesmente dêem tudo de si próprios para dar espetáculo aos amantes do ciclismo?
(...) 
Não concordo com tudo, mas concordo na discrepância hipócrita que existe no ciclismo. A dureza não é o único motivo para que exista doping e prova disso são os 100m. Ninguém precisa de doping para correr 100m mas usam-no para os correr mais rápido. O lema olímpico acaba por ser o maior motivo para o doping. Citius, altius, fortis - mais rápido, mais alto, mais forte.

No entanto, não me parece nada coerente que se ponha os ciclistas a subir duas ou três vezes a cima dos 2000 metros de altura, a andar seis horas à chuva (ou a nevar) e depois se faça um escândalo e seja uma grande ofensa quando alguém é apanhado no controlo. Que o adepto não goste de doping, ok, também não gosto. Que peça subidas à lua por entre a neve, ok, cada um tem as suas preferências. Mas que peça seis horas na tempestade com subidas à lua pelo meio e que se transforme em virgem ofendida quando descobre que afinal não eram astronautas... enfim.

E aproveito para contar um episódio que presenciei numa Volta a Portugal de Cadetes. Falamos portanto de miúdos entre os 14 e os 16 anos. Estávamos em Julho, no Norte do país, e quem conhece sabe que não é apenas no Algarve e no Alentejo que faz calor. Quando o verão aperta, também no Norte de Portugal se bate nos 40º graus. Não sei se naqueles três dias se chegou aos 40º, mas dos 35º passou certamente. O colégio de comissários era presidido por uma mulher e quem conhece o ciclismo nacional facilmente percebe quem seria, com todas as alcunhas pouco carinhosas que possa ter.

Os miúdos  como senhores ciclistas, tinham uma série de restrições no que tocava a aceitar água ou alimento da estrada. Salvo erro, só o poderiam fazer nas subidas com contagem de montanha e não poderia ser no último quilómetro de cada uma delas. Excepto esses pequenos períodos, se quisessem abastecimento teriam que ir ao carro de apoio, onde quer quer este estivesse. O calor era tanto que numa das etapas, ao cabo de cerca de 40 minutos de prova, os rapazes já tinham dado despacho aos dois bidões com que tinham abalado e estavam sem líquido. Corrida esticada, uns muito adiantados aos carros de apoio e outros já atrasados face a estes. Todos a seco. Naquela subida era ver os pais e pessoal apeado das equipas a dar água a todos e a apanhar bidões, lavar e encher em contrarrelógio para dar a alguém que viesse mais atrasado, sem olhar a quem. A presidente do colégio de comissários não gostava muito da ideia, mas que se lixe, porque com estas coisas não se brinca.

Obviamente, quando se programa uma prova, não se sabe como vai estar o tempo, mas servem esta história para mostrar o nível de humanidade que (não) existe nalgumas pessoas com responsabilidades no ciclismo. Afinal, qual a necessidade de uma chegada aos 2600m do Galibier em Maio, como a chegada ao Galibier do Giro deste ano (que não houve)? Ou qual a necessidade de subir ao Gavia (2600m) e ao Stelvio (2500m) a meio de uma etapa (que foi cancelada)? E a necessidade de incluir novamente essas montanhas para 2014, abrindo a porta ao que poderá ser uma (repetida) barraca monumental?

*****
Falando em 100, a jamaicana tricampeã olímpica (em várias modalidades) Veronica Campbell-Brown acusou um diurético e ficou-se pelo aviso da sua federação, que considerou que um diurético não é assim tão relevante. Também por um diurético, Frank Schleck levou um ano de suspensão e mais cinco meses parado até começar a temporada seguinte, porque não encontrou equipa para regressar a meio desta. Tudo, porque um diurético (em qualquer desporto) pode servir para mascarar o uso de outra substância proibida.

*****
A Saxo Bank será o único patrocinador principal da equipa de Riis em 2014, mas aumenta o seu apoio e assim a equipa continuará forte. Para já apenas 15 ciclistas têm contrato assinado e mais alguns que têm tudo acordado e estão à espera de poder oficializar.

7 comentários:

  1. Não entendi qual a conclusão final :S
    Não se devem fazer etapas tão extremas e difíceis ?

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  2. Essencialmente os comissários e organizações devem ser mais humanos porque máquinas só as bicicletas o resto é carne e osso e já dizia um grande ciclista que não se sobe tanta montanha seguida a comer bifes com batatas ou seja lá o que for...

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  3. " tudo muito Contador..." ??!! Do género vitória em Fonte Dé?!! Comparar Gilbert a Contador em cima da bicicleta e fora dela?!! O artigo não é sobre o espanhol mas é mencionado numa forma critíca...

    Em relação ao depoimento de Gilbert, 100% de acordo, ciclismo é espetáculo mas dentro do limite humano... Fora disso chega o exemplo do super-herói criado pela UCI, que muitos veneraram...

    E na Volta de Cadetes a presidente dos comissários limita-se a cumprir regulamentos, mesmo que os miudos nao aguentem... O lema destes comissários prestigiados é " os ciclistas são o objeto para que a minha reputação aumente.." Os corredores são guerreiros mas nem sempre resistem... fisicamente e mentalmente...

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  4. Boa Tarde

    Antes demais quero começar por dar os parabéns pelo blog....confesso que não conhecia...mas agora passo a conhecer!

    Relativamente ao artigo escrito em cima, quem segue a modalidade (como eu faço...e muito de perto...) sente que as palavras do Gilbert em parte tem fundamento. Mas o Gilbert também tem de se queixar dele próprio e da sua equipa. E quando se fala do Gilbert , pode-se certamente falar de muitos dos outros ciclistas do Pelotão Internacional e Nacional.
    A gestão da época tem de ser, lá está...gerida...quer pelo atleta e pela direcção da equipa.
    Por muito que as organizações das corridas possam ser culpadas, não se pode esquecer que a maioria das equipas neste momento depende de um só (com sorte com dois) atleta para a classificação final de uma prova...isto leva inevitavelmente a uma participação em provas que inicialmente nem estavam contabilizadas para certos atletas no inicio do ano...onde está a Gestão?


    Quando a o planeamento da época não é feito da melhor forma por parte da equipa...em questão do calendário...quem sofre e sofrerá serão sempre os mesmos...os atletas. E se pensarmos bem e lermos a carta do Gilbert na integra (NA INTEGRA) apercebemo-nos que ele não está contente de nenhuma forma com as organizações....mas também com a sua equipa, não esquecendo que ele próprio deixou muito a desejar, como o Rui o diz muito bem acima.

    Relativamente à dureza das provas...isso são contas de outro rosário...concordo com o que um leitor acima diz que " ciclismo é espectáculo mas dentro do limite humano...". Quando o Rui quiser realmente abordar esta "situação" como ela tem de ser feita...vista de todos os ângulos, quer das organizações, adeptos, público...e atletas, contem comigo.



    Aquele Abraço

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  5. Anónimo de 12 de Outubro de 2013 às 17:50 eu penso que ideia aqui é:
    Se em 2013 nevou, porque raio em 2014 na mesma altura do ano não voltará a nevar e a etapa não voltará a ser cancelada? Costuma-se dizer que "À primeira, qualquer um cai. À segunda cai quem quer."

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  6. Eu não dou grande interesse a carta, pois ele havia de ter feito mas era à dois anos atrás quando se fartou de ganhar mas não,nessa altura tudo correu bem agora a musica é outra. Sr. Rui para quando uma cronica das transferências em portugal e da continuidade das equipas portuguesas. já há alguns rumores segundo o Jornal de Ciclismo. Cumprimentos.

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  7. Obrigado pelos comentários!

    Anónimo de 12/10, 17h50: não há conclusão. Ou melhor, cada um pode tirar a sua, de acordo com a sua consciência e os seus juízos.

    Anónimo de 12/10, 23h24, exatamente, a vitória em Fuente Dé também foi uma etapa muito Contador. Um grande exemplo de outra das principais características do espanhol: a sua enorme vontade de ganhar.

    Davide Gomes, exato. Há poucos anos perguntaram ao diretor máximo da Vuelta porque a prova não ia ao País Basco havia cerca de 20 anos (salvo erro). Ele respondeu que queria evitar um possível atentado da ETA (então ainda não tinha declarado o final das suas atividades), ao que o jornalista respondeu que o atentanto poderia acontecer em qualquer sítio. E o diretor respondeu algo como "mas se acontecer noutro sítio é algo imprevisível. Se acontecer no País Basco, será irresponsabilidade nossa". O mesmo para a neve de maio no Galibier ou noutros cumes dos Alpes.

    Pedro Samuel, haverá uma crónica em breve dedicada às últimas transferências internacionais, mas não se espere nada quanto ao defeso nacional.

    Cumprimentos!

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