terça-feira, 27 de maio de 2014

Dantesco!

É necessário?
Foi num cenário dantesco que os ciclistas subiram hoje ao Gavia e ao Stelvio, antes de Nairo Quintana dar uma excelente exibição e agarrar com as duas mãos a camisola rosa. Agora será difícil alguém a tirar das mãos.

O que tivemos hoje foi a organização do Giro à procura de um postal dos ciclistas debaixo de condições extremas, com zeros graus de temperatura e a descer enquanto nevava. Uma etapa que no ano passado foi cancelada devido às péssimas condições climatéricas e que este ano teve uma segunda tentativa, que não deveria ter acontecido. Uma etapa desumana e desnecessária, porque o ciclismo não precisa de ir à lua para ser belo e espetacular.

Não me vou alargar muito mais sobre o tema porque já o fiz no ano passado e já o comentei este ano, desde a apresentação da prova a prever que a etapa poderia ser cancelada até à última hora. Só o fato da etapa estar em risco até às últimas mostra o ridículo da situação. Quem a montou foi despedido no final de 2013 acusado de desviar 13 milhões de euros da empresa que organiza o Giro e isso diz muito.

Quanto à corrida, na subida para o Gavia houve alguns ataques, mas a movimentação mais perigosa para a geral aconteceu por parte da Ag2r, que colocou na frente Hubert Dupont e Alexis Vuillermoz, antecipando um ataque de Domenico Pozzovico (que não viria a acontecer). Sendo isto a movimentação mais perigosa, é fácil de perceber que não se passou nada de realmente importante para a geral. Na subida ao Stelvio também não. Valeu a pena? Cada um terá a sua opinião, mas se resumo as duas subidas parágrafo, acho que não valeu.

Na descida do Stelvio a confusão subiu de tom. Antes de mais, convém perceber como funcionam as comunicações entre a organização/comissários e os ciclistas. A organização e os comissários têm o Rádio-Volta, que comunica com todos os carros de apoio em simultâneo mas não com os ciclistas. O que um carro de apoio ouve do rádio-volta, todos ouvem. Depois cada diretor desportivo comunica o que quer com os seus ciclistas. O que um ciclista ouve, todos da equipa ouvem.

Ao que parece o rádio-volta disse que haveria na descida motas com bandeira vermelha à frente de cada grupo para evitar ataques, mas isso os ciclistas não ouvem. Se um diretor desportivo diz "bandeiras vermelhas para sinalizar os perigos" é isso que os seus ciclistas ouvem. Se outro diz "descida neutralizada, sem ataques" é isso que os seus ciclistas dizem. Informações diferentes.

Muitos diretores desportivos queixam-se que a informação lhes foi passada de forma muito confusa e muitos dizem que perceberam que a descida seria neutralizada. Muitos ciclistas tinham essa informação e por isso pararam no cume do Stelvio para se agasalharem. Mas informação diferente tinham Europcar, Garmin e Movistar. O ritmo foi forçado na descida e Nairo Quintana aproveitou-se da sua excelente técnica para seguir entre os da frente.

No início da última subida, o grupo de Nairo Quintana tinha cerca de minuto e quarenta de vantagem sobre o grupo dos restantes candidatos à vitória e foi a partir daí que Quintana mostrou que o não é apenas a capacidade física que o distancia dos demais . Gorka Izagirre ajudou Quintana nas primeiras rampas da subida mas depois o colombiano assumiu as despesas e foi quase sempre ele de cara ao vento, sem se chatear com Pierre Rolland ou Ryder Hesjedal, ambos muito bem neste Giro.

Quintana tem uma enorme capacidade técnica, uma enorme capacidade física mas uma boca muito pequena. Não se dá por ela. Quintana não provoca nem critica os seus adversários nas entrevistas que dá e muito menos reclama ou protesta na estada. Aliás, por ser um ciclista tão calmo teve que levar com as frustrações de Contador no último Tour. Quintana apenas pedala, com aquela expressão facial que não transmite sofrimento, dor, alegria nem nada. Apenas pedala. Mais forte que os outros.

Durante as duas primeiras semanas de prova têm sido comuns as notícias sobre os seus problemas físicos e mesmo no dia de ontem alguns jornalistas davam conta de uma infeção no ouvido e febre. Mas estejamos atentos. Quem tem problemas físicos e ambições desta envergadura não o costuma dizer, para não provocar ataques dos adversários. 


Estava a dizer, Quintana mostrou o que o diferencia dos demais. Enquanto o colombiano assumiu claramente o seu ataque à camisola rosa desde o início da última ascensão, os seus adversários confiaram em Mikel Landa (Astana, de Aru), Michael Rogers (Tinkof, de Majka), Vuillermoz e Dupont (Ag2r, de Pozzovivo). Urán estava sem colegas. Quintana, por sua conta e risco, estava a ganhar o Giro, e os seus adversários estavam a resguardar-se no esforço dos seus gregários.

Quintana desenvencilhou-se de toda a gente e ganhou mais de três minutos a Wilco Kelderman e todos os outros que ficaram para trás na descida. Quatro minutos a Rigoberto Urán, quase cinco a Cadel Evans. No final, nem levantou os braços. Pedalou forte até ao risco de meta para ganhar o máximo de tempo possível. Está ali para ganhar tempo e para ganhar o Giro. No pódio finalmente tirou a máscara e mostrou alegria.

Ainda falta uma crono-escalda na sexta-feira e chegadas em alto na quinta e no sábado. Um dia mau poderá retirar a vitória a Nairo, mas de outra forma dificilmente deixará escapar a maglia rosa. Urá é segundo a 1'41'', Cadel Evans é terceiro já a mais de três minutos. Pierre Rolland, a fazer um Giro fantástico e de louvável agressividade é quarto e luta pelo pódio, também com Majka, Aru, Pozzovivo, Kelderman e Hesjedal, que logo no contrarrelógio coletivo inaugural perdeu dois minutos e meio para Quintana.

Já aqui escrevi Nairo e Porque Nairo Quintana encanta?. É óbvio que gosto do estilo de correr de Nairo Quintana, um dos mais espetaculares trepadores que vi correr, que tem aqui uma excelente oportunidade de conquistar a sua primeira grande volta e de conquistar uma mão cheia delas durante a carreira. Mas hoje não senti nenhum prazer a ver este cenário dantesco em que os organizadores colocaram. Mais uma vez a organização do Giro d'Itália não mostrou qualquer respeito pelos corredores. Foi por isto que os ciclistas boicotaram a etapa de Bari na primeira semana.

Não foi exatamente pela subida ao Gavia nem ao Stelvio, mas foi pelas constantes faltas de respeito que a RCS demonstra que o circuito urbano de Bari foi boicotado e já se deve preparar o mesmo para a tirada de amanhã. Se na primeira fuga não estiver ninguém que ameace o top-10, então poderemos ter fuga bidão com o pelotão a um quarto de hora.

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