domingo, 15 de junho de 2014

Recordar o Tour: 2006, uma reviravolta constante

Landis deixa Rogers, Kloden, Menchov e Evans para trás
O Carro Vassoura continua a percorrer o passado recente da Volta a França, hoje com artigo dedicado à edição de 2006, que se aguardava com grande expetativa desde julho de 2005, quando Lance Armstrong se despediu no pódio de Paris. Depois de sete anos de domínio do texano, esperava-se um Tour muito aberto, como há muitos anos não acontecia. Foi um Tour de reviravolta constante.

Ivan Basso (CSC) tinha sido o maior adversário de Armstrong nas montanhas nos dois últimos anos mas o percurso favorecia Jan Ullrich e Andreas Klöden. Com apenas três chegadas em alto e dois contrarrelógios com mais de cinquenta quilómetros cada um, o duo da T-Mobile tinha uma grande oportunidade de lutar pela vitória, depois do segundo lugar de Klöden em 2004 e do terceiro de Ullrich em 2005.

Ullrich tinha acabado de vencer a Volta à Suíça e Basso tinha conquistado o Giro. Mais do que isso, Basso tinha arrasado o Giro, com mais de nove minutos sobre o segundo classificado (José Enrique Gutierrez) e doze sobre o terceiro (Gilberto Simoni). Depois desta prestação, era possível acreditar que Basso dobrasse Giro e Tour como Pantani em 98 ou Indurain em 92 e 93. A CSC também tinha Carlos Sastre, segundo na Vuelta de 2005 após desclassificação de Roberto Heras.

Outro grande candidato era Alexander Vinokourov. Em busca de maior liberdade para melhorar o quinto posto do ano anterior e o terceiro de 2003, saiu da T-Mobile para a Liberty Seguros. 

Considerando as características do percurso, Floyd Landis (Phonak) era mais do que um outsider, depois de vencer Volta à Califórnia (na altura em fevereiro), Paris-Nice e Volta à Georgia (EUA). Outro ex-US Postal a considerar era Levi Leipheimer (Gerolsteiner), vencedor da Volta à Alemanha 2005 e do Dauphiné Libéré de 2006.

A Discovery Channel estava órfã de Armstrong mas tinha vários homens que podiam aspirar a um lugar entre os cinco melhores. Sobretudo Paolo Savoldelli, vencedor do Giro 2002 e 05, Yaroslav Popovych, a grande promessa e melhor jovem de 2005 e José Azevedo, 5º em 2004 e 4º no Dauphiné Libéré 2006. Mas os responsáveis da equipa também acreditavam em George Hincapie.

Denis Menchov (Rabobank) tinha vencido a Vuelta no final da época anterior e a chegada ao Mont Ventoux no Dauphiné Libéré desse ano. Na mesma prova, Iban Mayo (Euskaltel) triunfou na chegada a La Toussuire, que seria repetida no Tour. Francisco Mancebo (Ag2r) certamente sentiria a falta de montanha mas era a grande aposta da Ag2r, agora que deixara a antiga estrutura Banesto/Illes Baleares para Alejandro Valverde liderar a Caisse d’Epargne. O espanhol tinha abandonado em 2005 com a camisola branca mas depois disso foi vice-campeão mundial pela segunda vez na carreira e estava a ter um excelente desempenho em 2006. Cadel Evans, 8º no ano anterior e agora vencedor da Volta à Romandia liderava a Davitamon-Lotto.

Havia muitos galos para os poleiros cimeiros, mas a Operação Puerto mudaria quase tudo. Manolo Saiz foi apanhado com Eufemiano Fuentes durante o Giro e seguiram-se tempos difíceis para muita gente. Começou com a T-Mobile a suspender Ullrich e Oscar Sevilla na véspera do arranque do Tour, ficando assim afastados da prova. Outras equipas seguiram o exemplo, com a CSC a suspender Basso e a AG2R a suspender Mancebo. Dentro da Astana-Wurth (a Liberty Seguros rescindiu o contrato de patrocínio imediatamente após a OP se tornar pública), cinco dos nove inscritos estavam suspensos e a equipa de Vinokourov (que não estava suspenso) ficou afastada do Tour. Antes disso, a ASO já tinha retirado o convite à Comunidad Valenciana e apenas 176 ciclistas alinharam à partida, com várias ausências de peso. Era o primeiro volte-face deste Tour, ainda antes de se iniciar.

Dificilmente o prólogo poderia ter sido mais emocionante. Sebastian Lang e Stuart O'Grady estavam empatados com tempos feitos ainda cedo, mas foram superados por quatro segundos por Thor Hushovd, quando faltam terminar onze ciclistas. Valverde, que tinha batido o tempo de Hushovd por meros centésimos de segundo no ponto intermédio não foi capaz de bater o norueguês na meta, ficando igualado com Lang e O'Grady. David Zabriskie, que estava somente um segundo pior que Hushovd no intermédio, perdeu mais três na segunda metade e ficou igualado com os outros três corredores a quatro segundos de Hushovd, mas faltava chegar George Hincapie. Na luta dos centésimos, Hincapie perdeu por escassos 0,73 segundos para Thor Hushovd, primeiro camisola amarela do Tour 2006.

A alegria de Hushovd não duraria muito, pois o dia seguinte terminaria com sangue. Hincapie foi sacar dois segundos num sprint intermédio para assumir a liderança da prova e no final Hushovd seria apenas nono na vitória de Jimmy Casper, não bonificando. Mas a imagem marcante desse dia seria o camisola amarela estendido no chão depois da meta a sagrar do braço. Já nos metros finais, uma das emblemáticas mãos-gigantes publicitárias verdes da PMU abriu um corte no braço de Hushovd, incidente que originou a proibição da distribuição destes brindes nos dois quilómetros finais das etapas planas. Com o terceiro lugar no dia seguinte, Hushovd recuperou a camisola amarela.

Ao quarto dia de prova havia chegada a Valkenburg, num final igual às últimas duas Amstel Gold Race e aos Mundiais de 2012. Esse dia ficaria marcado pela queda de Alejandro Valverde, no meio do pelotão a cerca de 20 quilómetros da meta, deixando o Tour em ambulância e de clavícula fraturada. Também marcado pelo domínio da T-Mobile, com vitória de Matthias Kessler e segundo lugar de Michael Rogers.

Robbie McEwen venceu três etapas na primeira semana mas foi outro sprinter quem chegou de amarelo ao contrarrelógio da sétima etapa, Tom Boonen. No crono a T-Mobile voou. O ex-campeão mundial da especialidade Serhiy Honchar venceu com um minuto sobre Landis, Michael Rogers foi quarto, Patrik Sinkewitz sexto e Andreas Klöden oitavo. Quatro ciclistas entre os oito primeiros mais Matthias Kessler e Eddy Mazzoleni em 14º e 16º. E só tinham sete em prova.
Frank Schleck a caminho da vitória no Alpe d'Huez
Menchov e Evans perderam menos de dois minutos para Honchar e continuavam entre os primeiros, Sastre e Savoldelli, com um pouco mais, mantinham as suas aspirações intactas, mas Popovych já perdia três, Azevedo quatro e Leipheimer seis.

Nos Pirenéus apenas haveria uma etapa de montanha, mas uma daquelas de elevada dureza, com direito a Tourmalet (HC), Aspin (1ª cat), Peyresourde (1ª), Portillon (1ª) e final em Pla de Beret (1ª), em Espanha. O trabalho da T-Mobile e da Rabobank produziu uma enorme seleção no grupo, mas quando Menchov atacou a oito quilómetros da meta Klöden não foi capaz de seguir. O russo viria a ganhar num sprint a três frente com Leipheimer e Landis, que assim vestia a camisola amarela.

Havia oito segundos entre Landis e Cyril Dessel, que tinha beneficiado da fuga do dia anterior para ganhar sete minutos ao pelotão. Menchov era terceiro, Evans quarto, Sastre quinto e Klöden sexto a 2'29''. O sétimo era Rogers já a mais de três minutos e pareciam encontrados os membros do restrito lote que disputaria a vitória na Volta a França 2006.

Dois dias depois, deu-se uma daquelas etapas que fica na história da Volta a França. Formou-se um grupo de seis fugitivos que demoraram a distanciar-se do pelotão, mas depois ganharam dez minutos que se foram esticando. Eram 230 km para percorrer, muito calor e o pelotão encarou o dia como de descanso, uma vez que o fugitivo melhor colocado na geral estava a 28'50'' de Landis. Era Oscar Pereiro e já todos ouviram falar n'A fuga de Pereiro. A vantagem só subia e a vinte quilómetros da meta estava nos 27'20''. Entre os últimos dois resistentes da fuga, Jens Voigt conquistou a etapa e o tempo começou a contar para Pereiro. O pelotão chegou com 29'57'' de atraso e Oscar Pereiro era o novo líder com 1'29'' sobre Floyd Landis, pelo menos até ao Alpe d'Huez.

A terceira semana começava com chegada à mítica montanha alpina e ainda haveria mais duas etapas de montanha, onde várias reviravoltas teriam lugar, fazendo desta edição do Tour uma das mais ricas em histórias para contar.

No começo da décima quinta etapa, a caminho do Alpe d'Huez, formou-se um grupo de vinte e cinco ciclistas, sendo fundamental para o desenrolar da etapa a presença de três CSC: Zabriskie, Voigt e Frank Schleck. Lá atrás, Caisse d'Epargne, Phonak e T-Mobile nunca concederam muito tempo aos fugitivos, mas o trabalho de Zabriskie, Voigt e Patxi Vila (Lampre) permitiu que ainda existissem cerca de 3'20'' a separar o pelotão e os resistentes em cabeça de corrida no início da ascensão para a meta. Aos primeiros ataques de Damiano Cunego, apenas Frank Schleck e Eddy Mazzoleni resistiram.

A Phonak tinha uma equipa modesta quando comparada com as principais adversárias, mas foram Miguel Ángel Perdiguero e Axel Merckx (que vinha da fuga do dia) a iniciar a seleção e assim prepararamo ataque de Landis. Apenas Sastre e Leipheimer resistiram, com o camisola amarela Pereiro, Menchov e Evans a cederem bem cedo.

Desta vez Klöden teve a força que lhe faltou nos Pirenéus e foi durante muito tempo de cara ao vento com Landis na roda, procurando recuperar parte do que tinha deixado em Pla de Beret. Frank Schleck venceu isolado, Landis e Klöden foram quarto e quinto a 1'10'', ganharam 25'' a Sastre, 1'11'' a Menchov, 1'39'' a Pereiro e Evans. Oscar Pereiro ficou a dez segundos do novamente líder Floyd Landis mas todos os outros já estavam a mais de dois minutos e parecia difícil alguém retirar a vitória ao norte-americano. Depois de duas chegadas em alto, todos já tinha tido um dia mau exceto Landis, bem posicionado para suceder ao seu compatriota e ex-colega de equipa Lance Armstrong. Mas este foi, lá está, um Tour de reviravoltas.
Pereiro tentou defender a amarela do ataque de Landis
Seguia-se a última chegada em alto, última grande oportunidade para destronarem Landis, com Galibier, Croix-de-Fer e Mollard antes do final em La Toussuire. Se no dia antes a Phonak tinha surpreendido pela positiva, desta vez Axel Merckx era o único apoio de Landis na segunda subida do dia. Talvez por isso Klöden pediu a Mazzoleni e Rogers que endurecessem a corrida. Talvez por isso Carlos Sastre se tenha lançado ao ataque ainda muito cedo e aí Landis quebrou. Ficou com Azevedo, seu colega dois anos antes no apoio a Armstrong mas que agora não podia ajudar Landis enquanto os restantes favoritos se distanciavam e com eles a luta pela vitória no Tour. A etapa estava entregue a um dos fugitivos do dia, Michael Rasmussen, mas na luta pela geral o grande vencedor foi Oscar Pereiro. Terceiro na etapa, perdeu treze segundos para Sastre mas recuperou mais de oito para Landis, recuperando a camisola amarela. A etapa do dia seguinte e o contrarrelógio do penúltimo dia ditariam quem sairia vencedor da luta entre Pereiro, Sastre e Klöden, agora que Landis estava fora do top-10 e a oito minutos da geral. Estava fora da luta pela amarela, ou isso parecia.

Depois viria o DisneyLandis, uma das mais épicas jornadas de ciclismo moderno. Eram 200 quilómetros para percorrer e cinco contagens de montanha, incluindo duas de primeira categoria e a última de especial, a 12 quilómetros da meta. A etapa começou como manda o manual de instruções, com alguns homens atrasados na geral a formarem a fuga do dia e a sonharem com a vitória, mas a a Phonak e Landis, com o Tour dado como perdido, tinham que quebrar as normas. Os seus colegas começaram a forçar o ritmo e a 130 km da meta Landis iniciou a sua caminhada. Klöden e Rogers seguiram num primeiro instante mas depois tiveram que aguardar pelo grupo principal, deixando Landis no seu ritmo insuportável.

Landis foi em busca da maior recuperação possível e o tempo ia subindo. Em cinco quilómetros ganhou quarenta segundos e no final da primeira montanha já tinha 3'20'' de vantagem sobre o pelotão comandado pela Caisse d'Epargne. Em 12 quilómetros de subida, Landis ganhou mais de três minutos ao pelotão e lá continuava ele, a despejar bidões de água sobre si, como que a evitar o sobreaquecimento.

No final da segunda montanha, Landis seguia com Sinkewitz, O'Grady e Righi a 1'10'' de Patrice Halgand, o único que ainda estava à sua frente. O pelotão estava já a quatro e meio, encabeçado por Xabier Zandio (Caisse d'Epargne). Landis ameaçava, pelo tempo que já tinha ganho e o ritmo a que seguia, mas a T-Mobile e a CSC não pareciam preocupadas com o posto de Klöden e Sastre, deixando toda a responsabilidade da perseguição sobre a Caisse d'Epargne.

A meio da terceira subida do dia, com Landis a seis minutos e depois de largos quilómetros com Zandio e Arroyo na frente, a Caisse d'Epargne abrandou, entregou essa responsabilidade a quem a quisesse tomar e entretanto já era uma diferença superior a oito minutos, entregando a liderança virtual a Landis, com mais uma reviravolta em curso. Quando a CSC e a T-Mobile pegaram no pelotão já eram tarde e Landis venceu a etapa ganhando quase seis minutos a Sastre, sete a Pereiro e Klöden, saltando para o terceiro lugar da geral e colocando-se novamente como o maior favorito à vitória, considerando o contrarrelógio que ainda faltava.

Nesse crono, no penúltimo dia, Landis esteve ao nível expectável. Honchar venceu, como tinha feito no primeiro crono, Klöden foi segundo e Landis terceiro, ganhando minuto e meio a Pereiro, quarto.

Floyd Landis corou-se em Paris vencedor de um Tour cheio de reviravoltas, e a última ainda estava para vi. Robbie McEwen venceu a classificação por pontos pela terceira vez na carreira e Michael Rasmussen pela segunda vez a classificação da montanha.
Pódio final do Tour 2006: Oscar pereiro, Floyd Landis e Andreas Klöden
Resumo
Prólogo: Estrasburgo - Estrasburgo: Thor Hushovd
1ª etapa: Estrasburgo - Estrasburgo: Jimmy Casper
2ª etapa: Obernai - Esch-sur-Alzette: Robbie McEwen
3ª etapa: Esch-sir-Alzette - Valkenburg: Matthias Kessler
4ª etapa: Huy - Saint-Quentin: Robbie McEwen
5ª etapa: Beauvais - Caen: Oscar Freire
6ª etapa: Lisieux - Vitré: Robbie McEwen
7ª etapa: Saint-Grégoire - Rennes (CRI): Serhiy Honchar
8ª etapa: Saint-Méen-le-Grand - Lorient; Sylvain Calzati
9ª etapa: Bordeaux - Dax: Oscar Freire
10ª etapa: Cambo-les-Baisn- Pau: Juan Miguel Mercado
11ª etapa: Tarbes - Pla de Beret: Denis Menchov
12ª etapa: Bagnères-de-Luchon - Carcassone: Yaroslav Popovych
13ª etapa: Béziers - Montémilar: Jens Voigt
14ª etapa: Montélimar - Gap: Pierrick Fedrigo
15ª etapa: Gap -L'Alpe d'Huez: Frank Schleck
16ª etapa: L Bourg-d'Oisans - La Toussuire: Michael Rasmussen
17ª etapa: Saint-Jean-de-Maurienne - Morzine: Carlos Sastre
18ª etapa: Morzine - Mâcon; Matteo Tosatto
19ª etapa: Le Creusot - Montceau-les-Mines (CRI): Serhiy Honchar
20ª etapa: Sceaux-Antony - Paris: Thor Hushovd


Classificação Geral: Floyd Landis*
Classificação por pontos: Robbie McEwen
Classificação da montanha: Michael Rasmussen
Classificação da juventude: Damiano Cunego
Classificação por equipas: T-Mobile
Prémio da Combatividade: David de la Fuente


* Recorda-se que esta série de artigos "Recordar o Tour" pretende recorda-los como foram vividos na altura, não considerando desclassificações por doping conhecidas após o final da prova.

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Resumo da 10ª etapa (vitória de Mercado) e a partir do minuto 46 resumo da 11ª (vitória de Menchov)
Chegada ao Alpe d'Huez (vitória de Frank Schleck)
Etapa DisneyLandis

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