segunda-feira, 29 de setembro de 2014

Desfrutem da corrida. Assim foi Ponferrada para mim

Uma prova de ciclismo vê-se na televisão. Só assim se acompanha e percebe todo o desenrolar da corrida. Mas vive-se no local, onde se sente ciclismo com todos os sentidos, em toda a sua dimensão e grandeza. Por isso não vos escrevo de uma prova que mal vi, e muitos de vós viram muito melhor que eu, mas de uma prova que senti, e muitos de vós não tiveram essa oportunidade. O Campeonato do Mundo de elites.

Portugueses em Ponferrada são muitos. Pela proximidade, é uma oportunidade única de ver uns Campeonatos do Mundo. No próximo ano serão nos Estados Unidos, depois no Qatar e em 2017 na Noruega. Considerando a crise económica, Portugal e Espanha não deverão acolher uns Mundiais de ciclismo tão cedo e mesmo estes estiveram em risco até ao começo de 2014. Além da proximidade, é uma oportunidade única de ver um português a partir como campeão do mundo, ver Portugal a ser a última seleção a ser apresentada, logo depois de uma grande ovação à seleção espanhola.

Os ciclistas são apresentados ao longe. Aqui não é permitida a proximidade entre público e protagonistas que existe noutras provas e por razões que facilmente se percebe. Se pudesse, este público engolia os ciclistas e levava-los para casa. Não é a população local que está de passagem e se aproximou para ganhar brindes. O público de um Campeonato do Mundo é composto por adeptos de ciclismo, adeptos que viajaram de todo o mundo pela paixão pelo ciclismo, adeptos que reconhecem os ciclistas que passam.

Dentro da cidade, o circuito está vedado na integra. Baías de um lado e outro repletas de faixas publicitárias e vários pontos de passagem ao longo do percurso, bem controlados pela Policia, pela proteção civil e por voluntários. Algum público tenta colocar-se numa rotunda para ver os ciclistas de frente mas um polícia tenta, por seu lado, garantir a segurança. Indica com o braço "daí para trás, podem. Para o outro lado, não. Desfrutem da corrida."

A corrida vai sem ritmo. Quatro fugitivos, um colombiano, um croata, um lituano e um ucraniano na frente, que apenas ao fim de algumas voltas tentei perceber quem eram. Era a típica fuga de início de Mundial, com ciclistas e seleções modestas que tentam obter algum protagonismo antes da prova endurecer. No pelotão controlam os polacos e pelo meio vai um grego, em terra de ninguém. Mais fácil de identificar, é o único grego na lista de participantes, Georgios Bouglas. A corrida vai sem ritmo e o tempo de passagem entre cada volta vai aumentando.

O circuito inicia-se na zona nova da cidade, marcada por grandes blocos de cimento, e vai para a parte mais bonita, com maior interesse turístico, a zona histórica. No Castelo há ambiente de Mundial, ou de Flandres. Parece o mítico Kapelmuur da Volta a Flandres, apinhado de gente em festa.

O Mundial é um desfile de bandeiras, nacionais, regionais ou de apoio a alguns ciclistas. Espanholas muitas, portuguesas, colombianas, norueguesas, alemãs, de Flandres, do País Basco, da Galiza, das Astúrias. Também uma faixa de apoio a Purito Rodríguez e Daniel Moreno, uma para Sagan, outra para Visconti.

Os noruegueses destacam-se. Um grupo enverga camisolas comemorativas, misturando a bandeira norueguesa e a espanhola na parte da frente, e na parte de trás um mapa de Espanha com as cidades de Ponferrada e Barcelona assinaladas. Ponferrada não tem aeroporto, o mais próximo é o de Leão a 100 km, mas muita gente chegou por Madrid ou pelo Porto. Estes chegaram por Barcelona, a 900 km. Com ciclismo e umas cervejas fazem uma festa que se contagia, agitam bandeiras e a animação aumenta quando o sol aparece. Aqui há ambiente.

Um pouco mais a cima, onde o circuito não passa, o logótipo dos Mundiais de Ciclismo 2014 está presente na fachada do Ayuntamiento de Ponferrada por iluminação. Também está assinalado noutras partes da cidade por grafitti. No Museu del Bierzo existe uma coleção de camisolas de ciclismo que chegou a 18 de setembro e ficará até 31 de outubro. Camisola de campeão francês de Jalabert na sua passagem pela ONCE, camisola branca de Francisco Mancebo no Tour 2000, camisola Bianchi de Jan Ullrich, camisola amarela de Sean Kelly no Tour 83, camisola arco-íris de Oscar Freire em 2001, entre outras. Ainda que não passe na televisão, também faz parte do Mundial.

Entretanto encontro-me com o Sérgio do blog www.Ciclismo2005.com, o único do qual leio todos os artigos. Um fora de série, que escreve em anónimo, revelando apenas o primeiro nome e nada mais, altamente polémico, incisivo e quase corrosivo, que cai mal a muita gente do pelotão por colocar o dedo (e a mão inteira) nas feridas. Mas que cai bem a muita gente precisamente por não ter papas na língua e abordar o outro lado do desporto. Quem o lê sabe bem. E ali estamos os dois, como aquilo que no fundo somos, dois adeptos entre a multidão, que escrevem para quem os quiser ler.

A chuva reaparece e as estradas ficam quase vazias. Enchem-se os cafés onde todas as televisões estão a dar ciclismo e o público reaparece na hora certa. Outros estão abrigados debaixo de uma varanda de olho no helicóptero que avisa quando o pelotão se aproxima. Eu não paro num café nem debaixo de uma varanda, apenas ando de um lado para o outro, tentando aproveitar ao máximo. Fiz 900 km para estar ali, a chuva não me importa.

À saída de Ponferrada está o AC Hotel, um dos melhores da cidade. Ponferrada não tem capacidade hoteleira para receber um evento destes e os poucos hotéis, antevendo um aumento brutal da procura face à sua capacidade de oferta, dispararam os preços para lá do absurdo. Uma noite em duas estrelas podia custar 300€, três estrelas 600€, quatro estrelas 1000€ por noite. Por isso a seleção portuguesa ficou em Lugo e a italiana em Leão, ambas a cerca de 100 km de Ponferrada, a holandesa e a norueguesa ficaram em Astorga (60 km) e até Espanha ficou a 50, em O Barco. A seleção alemã e a seleção dos EUA ficaram alojadas no AC Hotel, na esquina que os ciclista dobram para começar a primeira subida do circuito. A comitiva alemã fez questão de colocar um poster rollup à entrada no hotel e duas carrinhas do outro lado da estrada, fazendo daquele um ponto de encontro para germânicos. Quando Tony Martin passa isolado na frente de corrida entusiasmam-se, gritam, fazem barulho. Mas logo depois o grupo perseguidor também dobra a esquina e o pelotão logo atrás. Um espanhol exclama com admiração "es un campeón del mundo y está trabajando como un hijoputa para Degenkolb". Tony Martin trabalha sempre.

Mais adiante na subida está um grupo de noruegueses, uma bandeira gigante, uma faixa de apoio a Edvald Boasson Hagen, que estava no grupo perseguidor a Tony Martin. Um grande grupo de noruegueses está na esplanada, mesa farta, garrafas de champanhe. "Nota-se que são os que têm dinheiro". Não sei se serão a segunda nação mais presente em Ponferrada, mas certamente a segunda que mais se destaca, apenas superada pela espanhola. Ao seu lado, a faixa de incentivo a Cancellara passa quase desapercebida.

O pelotão já passou e muita gente regressa para dentro dos cafés. Ao longo do percurso existem muitos ecrãs disponibilizados pela organização, gigantes ou nem tanto, mas não são suficientes para cobrir todo o percurso. O ritmo começa a aumentar à medida que as principais seleções começam a colocar ciclistas nas várias movimentações e o Austrália assume o comando do pelotão.

O último quilómetro está apinhado de gente. O helicóptero aproxima-se pela última vez, dois comentadores alternam o relato em espanhol e inglês e os nervos aumentam. Michal Kwiatkowski está na frente mas as distâncias são reduzidas e todos os adeptos mantêm a esperança nos seus ciclistas. De cada vez que um espanhol se levanta do selim para aumentar o ritmo, há aplausos e gritos de incentivo.

À medida que a descida do Mirador leva os ciclistas para o final, a esperança vai desvanecendo, mas quando os nomes dos integrantes do grupo perseguidor saem dos altifalantes, a esperança renova-se. Quando o nome de Valverde se faz ouvir, sai mais uma ronda de aplausos e gritos de incentivos. Todos ali conhecem Valverde, o seu percurso, a sua história e sabem que, por palmarés, já fez mais do que o suficiente para justificar um título mundial.

Não é consensual. Um jovem espanhol diz-me que “oxalá não ganhe Valverde nem Purito”. Por perceber que sou português, acrescenta “prefiro que ganhe Rui Costa do que Valverde ou Purito”. Mas é a exceção à regra. Nenhum campeão é consensual, Valverde também não, mas a maioria dos espanhóis está com ele e isso sente-se de forma inequívoca com o aproximar da meta.

Philippe Gilbert não consegue, o ex-campeão mundial não conseguir levar o grupo de Greg Van Avermaet até Kwiatkowski e o polaco vence. Balde de água fria para os espanhóis e belgas à minha volta. Como se não bastasse, começa a chover e a partir daí o animo apenas voltou por duas ou duas ou três vezes quando foi referida a medalha de Valverde. Como era previsível, polacos são poucos, australianos também e não se fazem ouvir.


As estradas estão cortadas e ninguém atravessa até que passe o carro vassoura. Eu à espera do Carro Vassoura. Duas pessoas cortam a barreira, têm autorização da policia para atravessar a faixa e pulam as grades. São Davide Bramati e Wilfried Peeters, ex-ciclistas, um italiano e um belga. Bramati correu 24 grandes voltas e Peeters esteve duas vezes no pódio do Paris-Roubaix. Hoje está muito acima do peso que lhe permitiu vencer a Gent-Wevelgem de 1994. Mas o que interessa aqui é que são diretores desportivos da Omega Pharma-Quick Step. Apesar do Mundial se correr por seleções, o campeão do Mundo é um ciclista que conhecem bem. Estão eufóricos como se Kwiatkowski tivesse corrido com a camisola da Omega Pharma.

Termina um Campeonato do Mundo que mal vi. Ainda não vi a repetição e não sei quem integrou cada um dos grupos que se foi formando ao longo das catorze voltas, mas foi um Campeonato do Mundo que senti e vivi. Seguindo o conselho do polícia, desfrutei da corrida, do ciclismo. Espero que tenham desfrutado da leitura e que continuem a desfrutar do ciclismo.

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