Jens Voigt bateu hoje o recorde da hora. Mais do que isso, estabeleceu o primeiro registo daquele que pode ser o novo recorde da hora, com novas regras.
Quem acompanha a página do Carro Vassoura no Facebook poderá já ter lido algumas histórias e curiosidades sobre os anteriores recordistas da hora. Mas para quem não leu e não viu a prova de Jens Voigt, podemos começar por dizer que o recorde da hora consiste em percorrer o máximo de quilómetros em sessenta minutos dentro de um velódromo. Eddy Merckx percorreu 49,431 quilómetros em 1972, registo que permaneceu imbatível até 1984. A partir daí deu-se uma transformação brutal no recorde da hora, batido primeiro por Francesco Moser (duas vezes em 84), Graham Obree (93), Chris Boardman (93), novamente Obree (94), Miguel Indurain (94), Tony Rominger (2x em 94) e Chris Boardman (1996). Mas a partir de Moser os vários recordes quebrados deviam muito à inovação das bicicletas, algumas delas pouco semelhantes ao que estamos acostumados a ver (como poderão verificar ao clicar no nome dos ciclistas).
No final de 1996 a UCI decidiu impor um travão à evolução, estipulando regras mais apertadas para o formato das bicicletas, garantindo assim que o ciclismo seria um desporto de pessoas e não de máquinas. Já em 2000 foi decidido que o recorde da hora apenas poderia ser batido com bicicletas semelhantes à utilizada por Eddy Merckx em 1972 e todos os restantes registos passariam para outra categoria: Melhor Esforço Humano. Nessa categoria, continua recordista Chris Boardman com os seus 56,375 km obtidos em 1996.
Com as novas regras, Boardman fez uma derradeira tentativa em 2000 e bateu Eddy Merckx por dez metros: 49,441. Apenas em 2005 foi superado, desta feita pelo checo Ondrej Sosenka, com 49,700 km. Sosenka foi um dos maiores ciclistas do pelotão... pelos seus dois metros de altura. Mas desportivamente o checo nunca se aproximou da qualidade de Moser, Rominger, Indurain ou Boardman, todos eles grandes figuras na estrada. O recorde de Sosenka durou porque as marcas fabricantes de bicicletas perderam o interesse no recorde. Se pretendem transmitir para os seus clientes uma imagem de inovação, não lhes interessava bater um recorde numa bicicleta semelhante às dos anos 70. E o recorde hoje quebrado foi sobretudo um evento de uma marca: a Trek.
A Trek assumiu este ano o principal patrocínio da antiga Radioshack e desde cedo foi apontado o objetivo de bater o recorde da hora, um objetivo partilhado por Fabian Cancellara e a fabricante Trek. Aproveitando o interesse de Cancellara em revitalizar esta interessante e particular prova, a UCI mudou-lhe as regras na primavera deste ano. A partir de então, é aceite qualquer distância que seja obtida com uma bicicleta que respeite o regulamento do ciclismo de pista.
Entretanto, os planos de Cancellara mudaram. Depois das clássicas da Primavera focou-se totalmente no maior desafio que ainda tem na sua carreira, que passa por se tornar campeão mundial de fundo. Ainda que não o digam, Jens Voigt parece-me apresentar-se para este desafio como substituto de Cancellara e dificilmente haveria melhor substituto desde um ponto de vista mediático. Em agosto o alemão foi para os EUA terminar a carreira no país da Trek, disputando a Volta a Utah e o USA Pro Challenge, já então com a marca a apostar forte na (boa) imagem de Voigt. Após uma digressão muito bem-sucedida, decidiram prolongar a carreira por algumas semanas para tentar este recorde que parecia destinado a Cancellara.
Saberia Voigt que ia bater o recorde de Sosenka? Muitas vezes ouvimos atletas ou nadadores dizerem que já bateram os seus recordes pessoais (ou nacionais, ou mundiais) em treino, ainda que os recordes oficiais sejam os das competições. Mas para uma prova tão extensa quanto o recorde da hora não é recomendável simula-la em treino. Ou seja, Voigt nunca tinha feito uma simulação de sessenta minutos. A preparação para o dia de hoje passou sobretudo por treino de séries (ou intervalos). Por exemplo, vários esforços de 15 ou 20 minutos, com algum tempo de descanso entre eles. Analisando a reação fisiológica do ciclista a estes testes, foi possível delinear uma estratégia para o ataque ao recorde. Jens Voigt percorreu 51,115 quilómetros no Velódromo de Granges (Suíça), mais 1415 metros que Sosenka, quase seis voltas.
É difícil dizer se é uma grande marca. Comparativamente ao anterior recorde, sim, é uma grande marca. Mas é necessário considerar que Voigt dispôs de equipamento muito superior ao de Sosenka. Por outro lado, o registo de Voigt não deverá ser comparado com os de Rominger. Apesar da bicicleta de Rominger parecer "normal", as suas medidas não respeitam os atuais regulamentos. A roda dianteira é menor que a traseira, como pode ser comprovado na foto seguinte:
A bicicleta utilizada por Rominger causa dúvidas. Parece "normal" mas não o é. |
E a bicicleta de Jens Voigt |
Penso que além de definir um novo recorde da hora, Jens Voigt relançou hoje esta prova. Com as novas regras volta a ser apelativa para as fabricantes de bicicletas e vários ciclistas sentir-se-ão capazes de superar o recorde de Voigt. Apesar da simpatia com que é visto por quase toda a gente, é evidente que já está bastante distante dos seus melhores anos e que existem vários (imensos) melhores contrarrelogistas que o alemão. E por isso penso que teremos novas tentativas em 2015.
Cancellara, Martin ou Wiggins são três dos ciclistas mais frequentemente apontados. Não creio que a Trek tente bater o seu próprio recorde em tão pouco espaço de tempo, mas Martin poderá ser uma aposta da Specialized e Wiggins é um homem de desafios. Mas existem muitos outros candidatos a bater a marca hoje realizada.
Quem não gosta de marketing misturado com desporto, poderá colocar os olhos no recorde hoje batido, com o qual se conclui uma ação de marketing da Trek. E todos ganharam (ganhamos). Jens Voigt terminou a sua carreira em beleza, estabelecendo um novo recorde, a Trek ganhou notoriedade e o público ganhou espetáculo. Ah, e a concorrência. A concorrência ganhou um desafio. Aceita?
*****
Para breve (talvez sexta, talvez sábado) está pensado um artigo para responder a algumas questões que têm sido colocadas (várias vezes) sobre os Mundiais. No Facebook já foram feitas algumas perguntas, mas podem continuar a fazer para depois serem respondidas aqui dentro daquilo que consiga.
Sem comentários:
Enviar um comentário