Quase 7 semanas depois de ter oficialmente considerado Lance Armstrong culpado por dopagem (oficiosamente já o tinham condenado antes de iniciar o processo), finalmente a USADA publica o dossier do caso. Uma demora inexplicável, pois quando se condena ou inocenta alguém é suposto o dossier estar praticamente encerrado. Ainda antes da UCI anunciar se retira ou não os resultados de Amrstrong, é evidente que estamos perante um caso que vai alterar a forma do ciclismo mas não o conteúdo, porque o problema não é do ciclismo nem do desporto, é da espécie humana.
Parece-me que cada vez que alguém se pronuncia sobre este caso dá uma escavadela no ciclismo e nos próprios pés. Muito possivelmente também eu já o fiz e vou fazer com este artigo, mas perante tanta hipocrisia não posso deixar de comentar.
É evidente que o doping existe no ciclismo, como existe em todo o desporto. O doping é uma forma de corrupção e corrupção existe em todo o lado, de forma mais ou menos generalizada. Existem políticos honestos e políticos desonestos, advogados, banqueiros, médicos, professores, juízes, jornalistas... em toda as profissões existe gente honesta mas também gente disposta a utilizar processos menos eticamente correctos e até ilegais. No desporto a corrupção existe sobretudo em forma de doping e de manipulação de resultados por compra de árbitro/juízes ou adversários.
Seja relativamente a Armstrong ou a qualquer outro desportista, o que mais me interessa não é se se dopou ou não. Quando estou a ver uma etapa do Tour, não estou a pensar se o camisola amarela almoçou massa com ovos ou se passou a manhã a injectar-se. Estou interessado a ver a competição, seja no ciclismo, atletismo, natação, basquetebol, etc. Os testes de doping deixo para as autoridades competentes. Mesmo quando falo de Landis, Hamilton, Riccò, Eufemiano Fuentes ou Francis Obikwelu, o que me motiva não são os resultados dos controlos anti-doping, mas sim a hipocrisia que está por detrás. E se há algo que o Caso Lance Armstrong é rico é em afirmações hipócritas e é delas que venho falar. Têm sido ditas autênticas barbaridades.
(se gosta de ciclismo, ou não leia mais, ou leia até ao fim)
(se gosta de ciclismo, ou não leia mais, ou leia até ao fim)
Jonathan Vaughters
O director desportivo da Garmin, que sempre se apresentou como 100% anti-doping e defensor do ciclismo limpo, apenas há 2 meses teve a coragem para admitir que se dopou durante a sua carreira.
Confissões são bons exemplos quando feitos de imediato, como David Millar quando foi suspenso em 2004. Vaughters enganou os patrocinadores e os adeptos, ocultando que tinha corrido dopado. Não seria nada de extraordinário para a maioria dos directores desportivos, mas é uma tremenda hipocrisia no caso de alguém que fala tanto com a comunicação social e que se promove como uma bandeira do ciclismo limpo.
Danielson, Zabiskie, Vande Velde e Garmin
Parece mesmo que cada vez que alguém fala de doping dá um tiro no pé e, de tanto falar, não sei se Vaughters ainda tem os dois pés. Recentemente foi para o fórum do CyclingNews, que é o maior site mundial de ciclismo e no seu fórum qualquer pessoa pode comentar, sendo sobretudo frequentado por adeptos, naturalmente. Lá, Vaughters disse que os seus ciclistas Danielson, Zabriskie e Vande Velde tinham-se dopado quando corriam nas anteriores equipas: US Postal para todos eles, CSC para Zabriskie e Vande Velde e Liberty Seguros apenas para Vande Velde.
Vaughters, todo ele armado em bom rapaz, até explica quais os processos de dopagem (sempre métodos que não eram detectados na altura) mas garante esses ciclistas foram para a Garmin porque queriam mudar.
Vaughters em ombros, após a vitória no contra-relógio por equipas do Tour 2011, com Vande Velde, Danielson e Zabriskie na equipa |
Pior é o caso de Christian Vande Velde, que tinha como melhores prestações em grandes voltas um 24º e 25º lugares nos Tours de 2006 e 2007, mudou para a Garmin em 2008 e logo nesse ano foi quarto, atrás de Sastre, Evans e Menchov. No ano seguinte foi 8º. Querem que eu acredite que o progresso ocorreu quando deixou de se dopar? Não acredito eu e acho que ninguém acredita.
A juntar a isto, houve uma recente reportagem televisiva do espanhol Canal+ sobre a dopagem de David Millar, na qual o britânico dizia que o doping tinha feito parte da sua vida até 2004 mas deixou de fazer quando voltou da suspensão. Vaughters e Vande Velde, que moram na Catalunha como Millar e muitos outros ciclistas estrangeiros, entraram nessa reportagem, na qual Vande Velde disse que nunca tinha tido o dilema de se dopar ou não, porque isso era apenas para os líderes e ele era apenas um gregário. Então e o 4º lugar e o 8º no Tour foram como mero gregário?
US Postal/Discovery Channel
Nos testemunhos de Vaughters, Zabriskie, VDV, Danielson, Landis, Hamilton, etc, todos falam uns dos outros e de Armstrong. Parece que "toda a US Postal" se dopava e que "toda a US Postal" era composta por norte-americanos.
Todos os jornalistas publicam isto e ninguém se questiona pela restante USP. A comunicação social portuguesa "esquece" que na USP/Discovery Channel correram portugueses e a comunicação social espanhol "esquece" que lá correram espanhóis. Eu não os quero acusar de nada, mas não faz sentido que o programa de doping fosse apenas para norte-americanos, ainda por cima a viverem em Espanha, deixando de fora portugueses e até os espanhóis.
Dr. Michele Ferrari e os seus rapazes
Um dos grandes problemas de Armstrong e da US Postal foi ter trabalhado com o médico italiano Michele Ferrari. Ferrari já foi várias vezes ligado a práticas proibidas e até condenado. Um dos documentos anexados ao dossier da USADA é um testemunho de Leonardo Bertagnolli (ex-Saeco, Cofidis, Liquigas, Androni e Lampre) no qual confessa que trabalhou com Ferrari e este lhe fornecia EPO. Além disso, diz que também trabalhavam com este médio Pellizotti, Gasparotto, Chicchi, Kreuziger, Popovych e Bileka (falei desta dupla há mais de um ano atrás. está no 2º parágrafo ao lado da última foto). Também o campeão olímpico Alexander Vinokourov, entre muitos outros.
Levi Leipherimer
Levi Leipheimer diz que se dopou desde Junho de 1999 a Julho de 2006 e em Julho de 2007. Basicamente, diz que se dopou até ao final do Tour 2006 e só se voltou a dopar no Tour 2007. Eu digo que ele mente, porque o doping não é algo que faça efeito imediato e tem que ser usado de forma continuada. Ele mente para manter o título de campeão nacional de 2007 e a Volta à Califórnia desse ano, bem como todos os títulos seguintes, incluindo mais duas Voltas à Califórnia, uma Volta à Suíça e uma medalha olímpica (bronze, contra-relógio). E se até Julho de 2006 competiu dopado (e no Tour 2007), também não acredito que os resultados seguintes tenham sido conquistados limpos.
A Agência Anti-Doping dos Estados Unidos aceita tudo o que Leipheimer, Danielson, Zabriskie, Vande Velde e Vaughters diz e dá-lhes apenas seis meses de suspensão, para poderem voltar a tempo do Paris-Nice. A USADA sabe que mentem mas não importa, porque o propósito não é fazer justiça. O importante nunca foi fazer justiça, mas sim condenar Armstrong, o grande prémio. Se para isso tiverem que engolir uma dúzia de mentiras, engolem. Haja falta de vergonha na cara.
USADA
A Agência Anti-Doping dos Estados Unidos aceita tudo o que Leipheimer, Danielson, Zabriskie, Vande Velde e Vaughters diz e dá-lhes apenas seis meses de suspensão, para poderem voltar a tempo do Paris-Nice. A USADA sabe que mentem mas não importa, porque o propósito não é fazer justiça. O importante nunca foi fazer justiça, mas sim condenar Armstrong, o grande prémio. Se para isso tiverem que engolir uma dúzia de mentiras, engolem. Haja falta de vergonha na cara.
Semi-Conclusão
A corrupção e gente desonesta só não existe onde não se procurar por ela. O doping também só não existe onde não se procurar por ele. Quando se procura, encontra-se, como no ciclismo, e não acreditem nessa história de "o doping é coisa do passado. Os jovens já não terão que pagar os erros que nós cometemos", como diz Vaughters, Millar, Leipheimer e todos os outros. É preciso lembrar que a EPO começou a ser detectada em 1999 e a partir daí também se dizia que o doping era parte do passado, dos tempos da Festina, Marco Pantani, etc. Depois em 2006 estoirou a Operação Puerto e "descobriu-se" que o doping tinha mudado de forma, mas ainda estava lá... e sempre estará. Em todo o desporto. Querem ver? Até eu, que não ligo nada a futebol, sei de histórias como estas:
Jorge Jesus
Em 1994/95, um futebolista do Felgueiras acusou doping. Segundo ele, tinha sido dado pelo treinador ao intervalo como sendo vitaminas e alguém da equipa técnica (não me lembro se o treinador ou algum adjunto) até tomou um comprimido como prova de que "não fazia mal". O treinador em questão era Jorge Jesus, que em 2010 foi campeão nacional como treinador do Benfica. Na última jornada desse campeonato defrontou o Rio Ave, que tinha um médico ligado ao caso do Felgueiras. Boa parte disto está na internet, o resto foi publicado num artigo da revista Sábado em 2010, que tinha como base uma reportagem da época feita pela SIC (salvo erro).
Claro que os jornais "desportivos" não podem falar disto, porque vivem do futebol... e porque "no futebol não existe doping".
Dr. Basil Ribeiro
Por falar em médicos: temos Basil Ribeiro, um dos mais consagrados do desporto português. O Dr. Basil Ribeiro era o médico da Milaneza-Maia quando Fran Pérez, Davir Bernabeu e Rui Lavarinhas acusaram positivo. No caso dos espanhóis, ainda declararam que não sabiam como era possível, porque só tinham tomado o que o médico da equipa tinha dado.
Basil Ribeiro foi suspenso pela Federação Portuguesa de Ciclismo mas voltou em 2007 ao Benfica, onde Sérgio Ribeiro teve o controlo positivo que o impediu de mais altos vôos. Em seguida Basil Ribeiro dedicou-se ao futebol, no Leixões, que na temporada 2007/08 (sem o médico) tinha sido 14º, salvando-se da descida por apenas um ponto. Com a chegada de Basil Ribeiro, em 2008/09 foi 6º (à 12ª jornada era segundo). Na temporada seguinte, já sem Basil Ribeiro, o Leixões foi último classificado. Lembrem-se "no futebol não existe doping".
XXX1
Estamos no país em que um futebolista morre em campo e o seu clube não recebe indemnização da seguradora e não contesta a decisão. Segundo me disse alguém ligado à área dos seguros, o clube preferiu não fazer muito barulho para que a seguradora não avançasse com uma investigação profunda para identificar as causas da morte. Se é verdade, não sei, e por isso não digo nomes (nem é preciso), mas que o clube não contestou a seguradora, lá isso não contestou. Como tal, a família apresentou queixa em tribunal contra a seguradora... e contra o clube, ganhando o caso porque foi considerado incidente de trabalho.
Francis Obikwelu
Estamos igualmente no país em que muito se falou na Operação Puerto mas pouco ou nada se falou na Operação Galgo. A diferença é que na Puerto não havia portugueses e na Galgo havia um medalhado olímpico português.
Fernando Mendes
Fernando Mendes, ex-futebolista de Benfica, FC Porto e Sporting, publicou em 2009 um livro sobre a sua carreira, onde confessava ter-se dopado em "vários clubes", mas sem lançar acusações sobre nenhum dos três grandes. Conta as histórias como sendo "num clube do Norte", "num clube de Lisboa" ou algo do género... Não precisa mais.Conclusão
Repito parte do que disse antes: corrupção e gente desonesta só não existe onde não se procurar por ela. O doping também só não existe onde não se procurar por ele. Quando se procura, encontra-se.
A luta anti-doping é a maior hipocrisia do desporto mundial e assim será nos próximos anos ou décadas. Entretanto, limito-me a apreciar o desporto e deixo a caça-às-bruxas para as autoridades (pouco) competentes.