sexta-feira, 14 de fevereiro de 2014

10 anos depois de Marco Pantani. parte III

Giro 1999: a caminho da vitória
A vitória no Giro 1999 não poderia ser retirada por nenhum adversário, mas a queda também não poderia começar de um ponto mais alto. Marco Pantani tinha vencido as quatro chegadas em alto já disputadas, tinha sido terceiro e sétimo nos contrarrelógios disputados e tinha mais de cinco minutos e meio de vantagem sobre o segundo, Paolo Salvoldelli, à partida para a penúltima etapa, a última antes da consagração de Milão. Os ciclistas teriam que ultrapassar, entre outros, o Gavia e o Mortirolo para terminar em Aprica, onde o Pirata havia vencido em 94. Mas o pesadelo começaria nessa madrugada.

Com a EPO recombinada fortemente instalada no pelotão mas indetectável nos controlos, a UCI teve que implementar o limite de 50% de hematócrito. Além dos habituais controlos anti-doping cujos resultados demoravam dias, semanas ou meses a sair (como agora), o hematócrito era testado e o resultado saia logo de seguida, sendo expulso da prova quem ultrapassasse os 50% e suspenso por quinze dias por "segurança médica". Havia dois motivos para esta medida. Por um lado, temia-se uma tragédia provocada pelos hematócritos de 60%, por outro queria-se expulsar quem fizessem uso de EPO recombinada, uma vez que era considerado impossível ultrapassar os 50% de hematócrito sem o uso desta (salvo casos muito particulares).

Pantani ia a caminho do pequeno-almoço quando foi chamado para ser controlado. Se a chamada tivesse acontecido poucos minutos depois, não teria sido possível, pois mandava o protocolo que as amostras fossem recolhidas de estômago vazio. Pantani estava tranquilo. Tinha passado todos os testes até então e na noite anterior o aparelho da Mercatone Uno tinha indicado um hematócrito de 48%. Dentro dos limites, portanto.

Na manhã de 4 de junho, nas amostras recolhidas pela brigada anti-doping, o hematócrito de Pantani ultrapassava os 52%! Seguindo o protocolo, foi feita uma segunda análise, que deu resultado idêntico. Reconhecendo que tinham nas mãos uma bomba, os vampiros fizeram mais três análises antes de chamar os responsáveis da equipa e todas comprovavam um hematócrito acima dos 52%. Na presença do diretor desportivo e do médico da Mercatone Uno fizeram-se mais três testes (já eram oito) e todos davam o mesmo resultado. Pantani, à beira de vencer a sua terceira grande volta consecutiva, a maior figura do ciclismo de então, era expulso da corrida.
Giro 1999: expulso da corrida
O ciclista e toda a sua equipa clamavam inocência, mas o tempo viria a provar que o doping fazia parte da carreira do Pirata. O escândalo tinha estado perto de acontecer um ano antes, no contrarrelógio decisivo do Giro 1998, quando o seu colega Riccardo Forconi foi expulso pelo mesmo motivo. Os resultados abaixo do limite não eram comunicados publicamente, mas naquele dia Pantani tinha registado um hematócrito de 49,3%, apenas a sete décimas do limite. Por 7 décimas o Pirata tinha evitado o naufrágio um ano antes, mas desta vez não houve salvação. E ainda havia muito por descobrir.

Poucos dias após a expulsão do Giro, o Procurador Público de Turim abriu uma investigação sobre os ficheiros de Pantani aquando da queda de 1995. A investigação viria a mostrar que Pantani deu entrada no hospital com um hematócrito de 60,1%!

Mais tarde, em dezembro o jornal La Repubblica publicou uma profunda reportagem sobre as incríveis variações de hematócrito nos ciclistas profissionais entre 1992 e 1995, antes da entrada em vigor do limite dos 50%. Em março de 94, Pantani tinha uma hematócrito de 40.7%, a meio do Giro desse ano registou 54.5% e no dia seguinte à conquista do segundo lugar final registou uns incríveis 58%, valor semelhante ao registado após o terceiro lugar no Tour. Havia assim uma variação de 42,5% (os 58% face aos 40.7%), bem superior aos 10% que os especialistas aceitavam como máxima variação possível sem recurso a substâncias proibidas. O uso de métodos proibidos tinha-se iniciado vários anos antes da expulsão do Giro. E o problema não era apenas Pantani, mas algo generalizado.

A mesma reportagem do La Repubblica tornou públicas as impressionantes variações de outros grandes campeões da década de 90. Nicola Minali (vencedor de etapas no Giro, Tour e Vuelta) teve uma variação de 42.5%, Piotr Ugrumov (2º no Tour 1994 e no Giro 93) 40.2%, Ivan Gotti (vencedor do Giro 97 e 99) 40% e Guido Bontempi (vencedor de etapas no Giro, Tour e Vuelta) 54%, apenas para realçar alguns exemplos mais extremos, todos ele bem superior aos 10% aceites pelos especialistas. Mas o recordista foi Claudio Chiappucci. O ex-companheiro de Pantani na Carrera conseguiu seis pódios consecutivos desde o Tour 1990 até ao Giro 93 (três em cada prova), mas o seu hematócrito variou desde os 35,7% até aos 60.7%, uma variação de impressionantes 70%. Eram anos de bar aberto.

Cada ponta solta que vinha a público era um novo golpe em Pantani. Agressivo e exuberante na estrada mas débil e tímido fora dela, com dinheiro e à beira de uma depressão, o italiano tornou-se um alvo fácil. Começou a consumir cocaína e em 99 não voltou a correr, mesmo sendo a suspensão de apenas 15 dias.

Os proprietários da Mercatone Uno apoiaram o seu pupilo e entregaram a direção da equipa a Manuela Ronchi, agente de Marco Pantani que tudo fez para o manter afastado das drogas. Tentou esconder o problema da comunicação social, dos patrocinadores e até dos colegas, mas tornou-se impossível no trigésimo aniversário de Pantani, festejado num estágio nas Canárias com o Pirata a snifar cocaína diante dos seus colegas.

Ronchi tentou rodear Pantani de pessoas de confiança, como o seu massagista de sempre Roberto Pregnolato e o especialista em biomecânica dos tempos da Carrera, Marcello Lodi. Mas Pantani era o motivo da equipa existir, tudo girava em seu torno, e se ele queria droga, alguém lha levava.

O ciclismo era a única escapatória e em 2000 conseguiram que Pantani focasse a sua raiva na competição. Coleccionou desistências nos primeiros meses da temporada e em termos individuais o Giro não lhe correu da melhor forma, mas ajudou o seu companheiro Stefano Garzelli a vencer. E foi segundo numa etapa.

Seguiu-se a Volta a França, onde conquistou duas vitórias. Uma delas no Mont Ventoux, diante de Lance Armstrong, que conquistaria o seu segundo Tour poucos dias depois. Pantani cedeu cedo, reentrou na cabeça de corrida a cinco quilómetros da meta, manteve-se por instantes na cauda do grupo e partiu para a ofensiva. Acelerou uma, duas, três, quatro vezes e à quinta isolou-se. Levou ao esgotamento Richard Virenque, Joseba Beloki, Roberto Heras, Santiago Botero e Jan Ullrich. Só Armstrong voltaria a juntar-se ao italiano (vídeo aqui). E ainda que Pantani tenha desistido dias depois, havia de novo a esperança de que poderia voltar a vencer o Tour, até porque comunicação social e adeptos continuavam sem saber do vício.
Tour 2000: vitória no Mont Ventoux diante de Lance Armstrong
Mas se o ciclismo era o caminho que o afastava das drogas, também era o caminho que o levava de volta. Integrou a seleção italiana que disputou os Jogos Olímpicos de Sydney mas ainda antes do final do ano seria condenado por fraude desportiva na sequência da investigação aberta sobre a sua queda em Turim, e foi citado na acusação do médico Francesco Conconi por práticas proibidas. Lá estava Pantani, mais uma vez, a refugiar-se na droga.

Ronchi implementou controlos à urina a Pantani para se certificar que estava limpo... em vão. Chamou-o à razão: se queria voltar a derrotar Armstrong, não podia consumir cocaína. O Pirata questionou-a da volta: "mas quando não estou a competir, posso?"

2001 e 2002 foram anos de acumular desistências, acidentes de viação e dramas conjugais. Ronchi e a família não baixaram os braços. Mais do que o ciclista Pantani, tentaram salvar o homem Marco, mas havia sempre forma de saltar o controlo.

A primavera de 2003 e o seu 14º lugar no Giro deram uma nova falsa esperança a uma vida sem salvação. No final da temporada a equipa deixou de existir e Pantani deixou de ser ciclista.

A 9 de fevereiro de 2004 foi para Rimini, cidade na costa do Mar Adriático conhecida pelas suas belas praias. Instalou-se num hotel, chamou o seu dealer e iniciou a sua última etapa. No último mês de vida gastou 20.000€ em cocaína. Trancou-se no quarto e snifou enquanto pôde. Foi encontrado já sem vida, com seis vezes a dose letal de cocaína. Foia última companheira de um homem solitário. Um homem sempre em fuga que só queria fugir de si mesmo. Foi há 10 anos.



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