segunda-feira, 14 de julho de 2014

É na adversidade que se vê quem são os campeões

O ciclismo é esta novela sem guião em que os protagonistas mudam a qualquer instante. Falava na última crónica na força física que estes ciclistas têm e na contrastante debilidade que os coloca sujeitos às vicissitudes da corrida. No dia seguinte o Tiago Machado foi para a fuga do dia e fez aquilo que melhor sabe, que é dar guerra. A Astana queria ceder a camisola amarela para não ter que trabalhar no dia seguinte e o requisito para a entregarem era apenas um: não ameaçar a luta pela vitória. Posto isto, o melhor posicionado na fuga levava o maillot jeune.

O Tiago Machado era o segundo melhor, apenas atrás do Tony Gallopin, um ciclista de muito boa qualidade que é francês mas tem a versatilidade de um canivete suíço. E o Tiago trabalhou para ganhar o máximo de tempo ao pelotão, embora a liderança essa fosse sempre para Gallopin, bem como a etapa para Tony Martin, que fez o primeiro contrarrelógio deste Tour para uma incrível vitória a solo. Se não fosse a presença de Gallopin, a Astana teria dado um pouco mais de margem e a camisola amarela teria ido para o Tiago, que assim ficou-se pelo terceiro lugar na geral, ainda com o Nibali pela frente.

Hoje o Tiago Machado viu o pior lado do ciclismo, com uma terrível queda que o atirou para o chão. Sentou-se na ambulância, a equipa arrumou as suas coisas e a organização chegou a anunciar o seu abandono. Mas então o Tiago, que é feito de outra fibra, muito mais dura, pediu para desempacotarem tudo porque tinha uma etapa e um Tour para terminar. Mais uma vez, fez o que melhor sabe... dar guerra, lutar. Terminou com mais de quarenta minutos de atraso mas foi repescado pelos comissários, que premiaram a sua bravura. Estava na luta por uma boa classificação geral, o que deixa agora de ser possível, mas certamente vai deixar na estrada tudo o que tiver para tentar chegar a Paris. Quando o vento está a favor, todos são campeões, mas é na adversidade que se vêem quem são os verdadeiros.

Outro que caiu foi Alberto Contador e pelo tempo que demorou a regressar à estrada logo se percebeu que haveria consequências graves, fosse o abandono ou pelo menos um grande atraso que o eliminaria da luta pela vitória final. Acabou por abandonar, com fratura de tíbia. É uma enorme perda para o Tour, que já estava órfã de Chris Froome.

Ambos seriam peças decisivas no desenrolar da corrida, não apenas por iniciativa individual mas pela estratégia que as suas equipas poderiam tomar. Fica assim o Fantasma do “Se”. Se Froome estivesse, Se Contador estivesse

Eram os dois principais candidatos à vitória à partida, mas a prestação de Vincenzo Nibali não merece ser ensombrada por isso. Como escrevi à partida, Nibali é um ciclista muito certeiro na preparação dos seus objetivos. Desde que foi 7º no Tour 2009, com 24 anos, numa baixou desse lugar em grandes voltas e nas oito em que participou tem seis pódios. Parece-me que o italiano tem sido muito desconsiderado neste Tour por quase toda a gente, que parece esquecer-se disso. O Nibali que temos aqui não é o mesmo que esteve na Romandia ou no Dauphiné para preparar o Tour mas o Tubarão que no ano passado arrasou o Giro.

Foi o que se viu logo na segunda etapa (vitória), depois na quinta (pavés) e no sábado. Sim, perdeu três segundos para Contador, mas foi evidente que se tratou de uma mudança mal metida. Ao longo de toda a (pequena) subida de Gérardmer, a postura de Contador assustou. A presença de Contador assusta porque nunca se sabe onde vai atacar e pode a qualquer momento fazer uma das suas velhas/novas acelerações. Mas Nibali esteve sempre lá, como uma lapa, aproveitando que tinha mais de dois minutos e meio de vantagem sobre o espanhol.

Hoje a Astana colocou novamente um homem na fuga do dia, novamente Lieuwe Westra, como no dia dos pavés. É uma estratégia tão antiga quanto eficaz. Deixam de ter que trabalhar no pelotão e ganham um homem para apoiar o líder lá mais para a frente, se necessário for.

Quando Contador caiu o pelotão esperou. A Lotto saiu da dianteira e ninguém a tomou durante algum tempo. Mas em posição adiantada ia Michal Kwiatkowski, 6º na geral à partida para a etapa de hoje. Quando os diretores desportivos foram informados de que Contador estava com três minutos de atraso e a cabeça de corrida com mais de quatro face ao pelotão, não dava para esperar mais.

Este Tour não era apenas Froome contra Contador, nem Contador contra Nibali. O ciclismo é um tabuleiro de xadrez com 198 peças à partida, número que se vai reduzindo com o passar dos dias. E a Astana tinha que tomar atenção a uma peça adversária que estava a atacar as suas. Para Contador recuperar os três minutos que tinha de atraso, era necessário dar mais cinco de avanço a Kwiatkowski, porque o espanhol ia claramente debilitado enquanto o polaco ia montado numa locomotiva alemã, de seu nome Tony Martin. A desistência de Alberto Contador não foi causada pela Astana, mas sim por uma fratura de tíbia.

Na subida final, Michele Scarponi preparou o ataque de Vincenzo Nibali. Agitou as águas para que o Tubarão atacasse, e Nibali correspondeu. Quando o campeão italiano se lançou ao ataque, ninguém o podia parar.

Ganhou apenas quinze segundos ao segundo classificado, Thibaut Pinot, vinte a Valverde, vinte e cinco a Porte. Não são apenas segundos, é a demonstração de superioridade de Nibali.

Chegou-se hoje à décima de vinte e uma etapas e, matematicamente, estamos quase a meio. Na cultura ciclista é apenas uma de três semanas. Faltam Alpes, Pirenéus, contrarrelógio e o desgaste que se vai acumulando ao longo dos dias, fatores que podem decidir o Tour. Mas o favoritismo esse está do lado de Nibali.

Rui Costa foi décimo terceiro na etapa, abaixo do que considero ser o seu nível. Sobre a sua qualidade para grandes voltas e alta montanha leio dúvidas e incertezas com as quais não posso concordar. Ninguém ganha três Voltas à Suíça sem ser trepador e por isso continuo a acreditar que pode melhorar o seu atual nono lugar.

No seu dia, os franceses perderam a camisola amarela, que envergaram por uma jornada apenas. Mas ganharam um novo alento para o pódio. Romain Bardet e Thibaut Pinot, quarto e sexto a caminho do primeiro dia de descanso, podem para já sonhar com esta luta. O último francês a subir ao pódio de Paris por méritos na classificação geral foi Richard Virenque, 2º em 1997. E ambos lutam pela camisola da juventude.

O dia de descanso de amanhã será importante para Tiago Machado recuperar das mazelas que tem no corpo. Faltam duas semanas, duas semanas que se perspetivam espetaculares, ainda com quatro chegadas em alto, a próxima já na sexta-feira. em Chamrousse.

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Para ver todos os perfis e antevisão deste Tour, basta clicar no mapa presente na coluna do lado direito.

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