Uma clássica da primavera? Pelos pavês, talvez, mas foi
num clima invernal (em julho) que Chris Froome abandonou o Tour, depois de três
quedas em dois dias, deixando a prova órfã de um dos principais candidatos à
vitória final. Se para Froome foi um dia de pesadelo, para Nibali e a Astana
foi um dia de sonho. Um dia em que a equipa cazaque funcionou de forma perfeita
e Nibali mostrou uma vez mais ser um elogio ao ciclismo em forma humana.
Apesar dos protestos dos ciclistas, a hipótese de
neutralização nunca foi seriamente ponderada dentro do pelotão. O circuito
citadino da quarta etapa do Giro (a primeira em Itália, em Bari) foi neutralizado por
imposição dos ciclistas, que levaram a melhor no braço de ferro com os
organizadores. Como escrito na altura, não era apenas a segurança desse dia que
estava em causa, mas sobretudo a deslocação entre a Ilha da Irlanda e o Sul de
Itália feito no dia anterior e o sentimento de poder dos ciclistas face ao Giro. Já o Tour está num outro nível, como se viu nos três dias de turnê por
Inglaterra. Um nível que ninguém ousa desafiar.
A única previsão que me sentia capaz de fazer à partida
era para uma autêntica lotaria, não apenas nos pavés mas bem antes. As quedas
registadas em várias rotundas foram causadas pelo piso escorregadio,
imprevisível há meses quando o percurso foi delineado, mas como também tinha sido
antevisto não era apenas nos pavés que iriam acontecer acidentes. Com os nervos à
flor da pele, o ritmo elevado e a luta pelo melhor posicionamento, as quedas
anteciparam-se aos setores de paralelo, sete em vez de nove, uma vez que dois
foram anulados ainda antes de ser dada a partida de Ypres.
Quando o pelotão chegou ao primeiro setor, já lá não
estava Chris Froome, vencedor de 2013, dorsal 1, um dos maiores candidatos à
vitória.
Mesmo quem acreditava em ataques individuais e coletivos,
trepadores a seguir atrelados a roladores e outras movimentações fantasistas
deverá ter percebido ainda bastante cedo que para os candidatos à vitória,
pódio ou top-10 hoje seria apenas uma questão de lutar pela sobrevivência.
A Astana e Vincenzo Nibali correram ao ataque, arriscaram
em todos os setores e foram recompensados, mas a justiça de dias como hoje
fica também representada no monumental tombo de Jurgen Van Den Broeck depois do
trabalho da sua equipa. A justiça que na lotaria é substituída pela sorte.
E Nibali teve a estrelinha com ele. A sorte não faz
campeões, mas não se fazem campeões sem sorte. A Astana começou por adiantar um
homem na fuga do dia (Lieuwe Westra) e nos pavés foi forçando, tal como o próprio
Nibali, que não acreditava no que ia vendo, os seus adversários a ficarem para
trás. Tudo lhe correu na perfeição.
Nibali teve a sorte que lhe faltou no Giro 2010, quando
estava de camisola rosa e caiu num setor de sterrato. Perdeu dois minutos nesse dia para o vencedor, o então campeão mundial Cadel Evans. Foi terceiro no
final, 2’37’’ atrás do seu colega Ivan Basso, para o qual trabalhou.
A elogiar Nibali, sinto-me repetitivo, como repetidas são
as suas demonstrações de ser algo mais do que um talento. É um campeão, que
corre por esta altura para se tornar o sexto a vencer Giro, Tour e Vuelta, depois
de Anquetil, Gimondi, Merckx, Hinault e Contador. E, aos 29 anos, é um homem
que merece.
Um homem que mete coração onde corre, que ataca mesmo
contra as probabilidades como em Sanremo, que puxa incansavelmente e sem
hesitar como no Mundial, sabendo que estava a favorecer Rui Costa e Valverde, que mas tinha que o fazer se queria chegar a Purito e ser campeão do mundo.
Vincenzo Nibali é um elogio ao ciclismo.
Apesar de já ter feito o suficiente para a merecer, a
vitória da Volta a França está longe de entregue. Muito longe. Tão longe como
de Arenberg a Paris, passando pelos Vosges, Alpes e Pirenéus, com tudo o que
pode acontecer em duas semanas e meia. Ai se ele pudesse ir direto para a
capital francesa.
Basta olhar para os dois principais vencedores do dia
para perceber o quão imprevisível era esta etapa, vencida por um homem dos
pavés e do ciclocrosse diante de dois voltistas. Fuglsang até vem do BTT, Nibali por lá passou, mas
nada deixava antever que os dois superassem Peter Sagan e Fabian Cancellara neste terreno.
Uma vitória especial para Lars Boom, ele que furou a 20 km da meta no
Paris-Roubaix quando ia na perseguição a Tom Boonen e que este ano fraturou o
cotovelo no Paris-Nice, alinhando condicionado nas clássicas da primavera, seu
grande objetivo da temporada. Uma vitória especial para a Belkin, que teve o
homem mais regular dessas mesmas clássicas mas sem vitória, Sep Vanmacke, um dos azarados do dia de hoje. Uma equipa
que procura novo patrocinador para garantir a sua continuidade na próxima
temporada e o dia de hoje poderá ter sido importante.
A Astana tem agora os dois primeiros da geral, Nibali e Jakob Fuglsang, mas não há dúvida sobre a liderança. Kwiatkowski é quarto a 50
segundos, Van Den Broeck já está a 1’45’’, Richie Porte perto de dois minutos,
Talansky a 2’05’’, Valverde, Bardet, Van Garderen e Rui Costa a 2’11’’, Thibaut
Pinot e Bauke Mollema um pouco mais, Alberto Contador a 2’37’’. Tiago Machado,
26º a 3’59’’, ainda se pode aproximar do top-10, um objetivo que o próprio
nunca colocou (não lhe cobrem por algo que nunca prometeu, sff).
Os atrasos não são irrecuperáveis, mas a vantagem deve
animar Nibali. E para ser recuperada, os seus adversários terão que atacar na
montanha que falta, que é toda. O que é bom para o espectáculo.
O estado de forma deles continua uma incógnita. O dia de hoje foi atípico, pelas quedas e o tipo de terreno, não comparável ao que se passará na montanha.
Nibali pagará o esforço de hoje? Sim, ele e todos, porque todos se esforçaram hoje. Vincenzo Nibali foi ao seu limite para fugir e ganhar o máximo de tempo, os restantes foram ao limite para evitar que Nibali fugisse. Mas ao limite, todos.
Fabian Cancellara disse antes da etapa que seria bastante diferente no Paris-Roubaix, porque no Inferno do Norte apenas existe uma corrida e hoje seriam duas em simultâneo, pela etapa pela geral. O balanço da etapa e do que esta ofereceu ao ciclismo e à corrida passará muito por aí. Como espetáculo de um dia foi excelente, pela garra de Nibali, pelo esforço levado ao extremo. Como etapa de uma prova de três semanas, foi um calvário, com Chris Froome como vítima principal mas muitos outros com quedas que passarão fatura lá mais para a frente.
*****
A título de curiosidade, aqueles que considero os principais candidatos aos primeiros lugares da geral estão assim:
1º Vincenzo Nibali
2º Jakob Fuglsang + 0.02
4º Michal
Kwiatkowski +0.50
6º Jurgen
Van Den Broeck +1.45
8º Richie Porte + 1.54
9º Andre Talansky+2.05
10º Alejandro Valverde +2.11
11º Romain
Bardet +2.11
12º Tejay
Van Garderen +2.11
13º Rui
Costa+2.11
15º Thibaut
Pinot +2.25
18º Bauke
Mollema + 2.27
19º Alberto
Contador + 2.37
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