domingo, 20 de julho de 2014

Regressam os franceses, e acabaram as duas velocidades?

Richard Virenque foi 3º no Tour de France 1996 e no ano seguinte voltaria a subir ao pódio de Paris ao lado de Jan Ullrich, desta vez com o segundo posto. Os franceses não venciam desde 1985 (Bernard Hinault) mas não se tinham afastado da luta pelo triunfo, com o próprio Hinault, Jean-François Bernard, Laurent Fignon e Richard Virenque a darem cinco presenças em pódio em doze anos. Não era suficiente, mas o pior estava para vir.

Em 1998 deu-se o Caso Festina e ainda na primeira semana Richard Virenque e os seus companheiros tiveram que abandonar a prova. A partir daí, nunca mais um francês alcançou os três primeiros postos do Tour. Christophe Moreau esteve próximo em 2000, mas o seu colega Joseba Beloki foi trinta segundos melhor e ficou com o terceiro lugar. A Festina estava novamente no pódio, mas com o espanhol em vez do francês.

O combate ao doping foi endurecido em França, sendo inclusive punível com pena de prisão, o que fez com que muitos dos ciclistas estrangeiros que viviam em França passassem para o outro lado da fronteira, para a Catalunha. Os controlos antidoping continuavam ineficazes para detetar EPO e transfusões sanguíneas mas quem fosse encontrando na posse de substâncias proibidas arriscava-se a prisão.

Os franceses desapareceram no pódio do Tour e começaram os relatos do cyclisme a deux vitesses. Queixavam-se da existência de um ciclismo a duas velocidades, a sua - sem EPO e transfusões - e a do topo da classificação - com aditivo.

David Moncoutié, Sandy Casar e Sylvain Chavanel foram as maiores esperanças franceses, mas todos passaram longe. Moncoutié e Casar tornaram-se isso sim dois exemplos de limpeza.

Philippe Gaumont, ex-ciclista e escritor do livro Prisioneiros do Doping escreveu no seu livro: "Passei sete anos na Cofidis e conheci dois ciclistas que não consumiam doping: Janek Tombak e, sobretudo, David Moncoutié". Mesmo o trepador francês diria mais tarde que preferia lutar por vitórias de etapas do que fazer o que era necessário para lutar pela classificação geral. O seu melhor registo na geral foi 13º, enquanto Casar chegou ao 11º posto em 2009.

Em 2008, Clément Lhotellerie foi uma revelação do Paris-Nice, vencendo a classificação da montanha e com o 11º lugar na geral. Com apenas 22 anos de idade, já tinha sido segundo na Volta à Andaluzia e depois foi segundo nos 4 Dias de Dunquerke. Alegadamente terá dito que "os franceses são estúpidos, não se dopam" e por isso estava na lista negra de todos os diretores desportivos do seu país. Nunca conseguiu lugar numa das equipas nacionais mas em 2009 chegou à Vacansoleil. Nesse ano teve um controlo antidoping positivo e só voltaria a correr por equipas continentais.

No Tour de 2010 os franceses venceram seis etapas, um número que não era alcançado precisamente desde 1997. Gérard Guillaume, médico da FDJ, tinha a sua opinião bem clara. "É evidente. A luta antidoping está a dar frutos. Os franceses foram roubados durante dez anos, disseram que eles não treinavam o suficiente e que corriam mal, mas agora não fazem nem mais nem menos que antes. A explicação é outra: os que andam na frente já não usam o combustível que usavam".

Ainda que muitos dos pressupostos sejam verdadeiros, torna-se complicado dizer até que ponto a limpeza dos ciclistas e das equipas francesas era tão ampla ao ponto de justificar a ausência de resultados na elite. Certo é que que os franceses têm vindo a encurtar a distância.

Em 2005, no primeiro ano do Pro Tour, que veio revolucionar por completo a forma como estava estruturado o ciclismo, apenas cinco franceses estavam entre os 100 melhores ciclistas do mundo de acordo com o CQ Ranking. Houve anos melhores e piores, mas a evolução é óbvio. Em 2013 houve 15 franceses entre o top-100 deste ranking mundial e uma grande parte deles são jovens: os sprinters Arnaud Démare, Nacer Bouhanni e Bryan Coquard, os multi-funções Tony Gallopin e Arthur Vichot e os voltistas Romain Bardet e Thibaut Pinot, aos quais se pode juntar Warren Barguil.

Também não é fácil dizer o que motivou este renascer do talento francês. Em parte terá sido isso mesmo, o talento. Em poucos anos terão nascido mais talentos do que em períodos anteriores. Mas também é dado mérito a Bernard Bourreau, ex-ciclista e ex-selecionador da equipa francesa sub-23, por onde passaram os referidos jovens talentos e outros que ainda estão por despontar ao mais alto nível. Atualmente Bourreau é o selecionador nos elites.

Também terá a sua importância Julien Pinot. Apesar da estrela da família ser o seu irmão Thibaut, Julien é um dos preparadores mais procurados em França. Começou por trabalhar no Club Cycliste Étupes, equipa de formação por onde passou o seu irmão mas também Kenny Elissonde, Alexis Vuillermoz, o britânico Adam Yates e Warren Barguil. O atual ciclista da Giant atribui a Julien Pinot o nível a que chegou, com vitória na Volta a França do Futuro em 2012 e duas etapas na Vuelta do ano passado. E apesar de Julien estar agora ao serviço da FDJ, continua a ser o responsável pela preparação de Barguil.

Em entrevista conjunta à revista Procycling de junho, Arnaud Démare e Johan Le Bon defendem o mesmo que Gérard Guillaume, que o ciclismo está mais limpo. Dizem-se felizes por correr num período em que as mentalidades mudaram, já não existe o ciclismo de duas velocidades e já não precisam de se preocupar com o que é feito pelos ciclistas de outras nacionalidades. Falam também do respeito que o pelotão voltou a ter pelos ciclistas e equipas francesas, que voltaram à cabeça do pelotão, como se tem visto nos últimos dias, com a Ag2r.

Na mesma revista, Barguil aponta a vitória de Thibaut Pinot na Volta a França 2012 como o acontecimento decisivo para enterrar o complexo de inferioridade dos franceses. A partir daí podiam lutar de igual para igual.

À parte de suposições de causas e efeitos, a classificação do Tour não engana. Ao segundo dia de descanso, Romain Bardet é terceiro e Thibaut Pinot quarto, afastados da luta pela vitória mas perfeitamente dentro da luta pelo segundo lugar. Bardet está a 13 segundos de Valverde e Pinot a 29.

Tejay Van Garderen é uma grande ameaça, sobretudo considerando o contrarrelógio do penúltimo dia, onde se prespetiva que o norte-americano ganhe tempo aos dois gauleses, ambos nascidos em 1990 e por isso também na luta pela classificação da juventude. No entanto, também ainda faltam três etapas de montanha, duas delas com chegada em alto, e aí Bardet e Pinot têm sido mais fortes de Van Garderen.

Romain Bardet comentava esta amanhã que o estão a colocar num pedestal cedo demais. Desde a final do Mundial de futebol, todas as capas do desportivo L'Equipe têm sido preenchidas por ciclismo. E de entre essas seis, Bardet e Pinot estavam em cinco.


É preciso esperar uma semana para saber se os franceses voltarão a marcar presença no pódio de Paris por méritos na classificação geral. Mas desde Moreau em 2000 que não estavam tão próximos.

Thibaut Pinot à esquerda e Romain Bardet à direita na seleção francesa de juniores

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