terça-feira, 11 de novembro de 2014

Kreuziger: cliente de Ferrari em 2006, suspenso em 2014

Kreuziger está apertado
A temporada terminou e, à semelhança dos últimos anos, o encerramento de equipas de primeira linha sobrepõe-se à criação de novos projetos de elite. É tempo de entradas, saídas, ainda algumas negociações e incertezas para alguns ciclistas. Não apenas entre os que estão sem contrato. Entre os dossiers pendentes está o de Roman Kreuziger, suspenso antes do Tour, inocentado pelas autoridades checas no final de setembro e agora a aguardar decisão do TAS sobre o recurso interposto pela UCI e pela Agência Mundial Anti-Doping.

Uma vez mais, o caso de Armstrong é um excelente ponto de partida para esta história, a história de Roman Kreuziger, uma história de esqueletos guardados no armário. Porque o caso de Armstrong não foi sobre desporto, não foi sobre ciclismo, não foi sequer sobre a US Postal. Foi sobre Armstrong e tudo o resto não interessava. Por isso a agência anti-doping norte-americana (USADA) ocultou quase todos os nomes implicados. Não interessavam e os ex-colegas de Armstrong são hoje livres para estar no ciclismo, inclusive para dirigir equipas. Um dos nomes que a USADA não pôde ocultar foi o de Roman Kreuziger. O nome de Kreuziger estava lá, como outros estavam, e não podia ser ocultado, porque estava num documento que originalmente não pertencia à investigação norte-americana. Ninguém se preocupou, não interessava, mas uma das (muitas) lições que podemos retirar do caso de Armstrong é que nem todos os esqueletos ficam no armário para sempre.

Leonardo Bertagnolli foi ciclista profissional de 2002 a 2012, especialista em clássicas, vencedor de etapa no Giro e na Vuelta e da Clásica San Sebastán. Em 2012 a UCI abriu um inquérito motivado por irregularidades no seu Passaporte Biológico entre 2008 e 2009, mas já em 2011, no seguimento de uma investigação levada a cabo pelas autoridades de Padova (Itália), Bertagnolli tinha falado do seu relacionamento com Michele Ferrari, colaborando com a investigação, até porque as conversas telefónicas gravadas não permitiam grande margem de fuga. Em 2012 a USADA utilizou o depoimento de Bertagnolli para provar o uso de substâncias e métodos proibidos de Ferrari, médico que trabalhou com Armstrong, mas o mesmo depoimento poderia ter motivado mais algumas investigações. Olhemos para ele.

Bertagnolli conta que conheceu Ferrari no seu primeiro ano de profissional, em 2002, quando corria pela Saeco, mas foi no final de 2006 que começou a trabalhar de forma continuada com o médico italiano, uma das figuras mais premiadas do ciclismo mundial desde a década de 80. Bertagnolli estava familiarizado com Eritropoietina (EPO), utilizando desde 2003 sem que alguma vez tenha acusado positivo, e agora podia trabalhar com um dos melhores do ramo. Como ele, muitos outros, e mais do que os métodos, para aqui importam os nomes, para chegar ao Kreuziger que está em julgamento no TAS e a causa da crónica de hoje. Mas também outros que já foram apanhados ou que continuam a competir sem qualquer problema.

Bertagnolli conta uma ida a St. Moritz, no Alpes suíços, em julho de 2007, para se encontrar com Ferrari, onde também estiveram Alessandro Bertolini, Franco Pellizotti, Enrico Gasparotto, Francesco Chicchi, Alexander Vinokourov e o "sobrinho ciclista de Francesco Moser" (uma vez que Moreno Moser apenas tinha 16 anos na idade, deveria ser o seu irmão Leonardo, então ciclista da Acqua & Sapone, que assim seguia as pisadas do tio). Bertagnolli conta ainda que noutras visitas a Ferrari viu os ucranianos Yaroslav Popovych e Volodymyr Bileka e que através das conversas com os seus colegas, então na Liquigas, sabia que Kreuziger também era cliente de Ferrari, além dos já citados Pellizotti, Gasparotto e Chicchi.

Após a vitória na Amstel Gold Race do ano passado, Kreuziger foi questionado por alguma comunicação social sobre este depoimento/acusação. Com a porta principal trancada, saiu como pôde, que foi pela janela dos fundos, dizendo que sim, que trabalhou com Ferrari, mas apenas entre 2006 e 2007, únicos anos em que foi implicado por Bertagnolli. Diz que com Ferrari tratou apenas de planos de treino.

O problema de Kreuziger não tem origem na Tinkoff, onde corre agora, nem na Astana, onde corria quando se verificaram as anomalias no Passaporte Biológico. Ainda antes disso apresentaram-lhe um especialista em dopagem com todas as grandes voltas e quase todas (ou até mesmo todas) as grandes clássicas no currículo.

Kreuziger é um ciclista espetacular, que ataca, que se sacrifica pelos colegas, e sem tendência para ser polémico. Por isso pode ser mais difícil de aceitar. Mas trabalhar com Ferrari apenas para fazer planos de treino é como ir às putas pedir um abraço. Pode ser verdade? Pode. Que tenha irregularidades com o Passaporte Biológico pode ser uma grande coincidência? Também pode. E que acredite quem puder.

Para entender o porquê de Roman Kreuziger ter sido absolvido pelo Comité Olímpico Checo são interessantes as conversas telefónicas gravadas entre Bertagnolli e Michele Ferrari. Nelas Bertagnolli mostra alguma preocupação e medo de ser apanhado, referindo os casos de Lorenzo Bernucci, Igor Astarloa, Mirko Celestino e Serhiy Honchar. Ferrari explica a Bertagnolli que as transfusões com o próprio sangue são 100% seguras, indetetáveis. Existe o Passaporte Biológico, que pode detetar as variações de alguns valores, mas não as transfusões em si. E aí vem à baila o caso de Tadej Valjavec. Em 2010 verificaram-se variações suspeitas no seu passaporte mas depois foi absolvido pela Federação Eslovena de Ciclismo. Tal como Ferrari explica ao seu cliente, em caso de dúvida, a federação eslovena absolveu o ciclista do seu país. Foi o mesmo que a checa fez agora quanto Kreuziger.

O caso de Kreuziger está agora com o Tribunal Arbitral do Desporto (TAD). Se for condenado, é mais um motivo para a UCI chamar para si a responsabilidade de julgar os casos de dopagem, responsabilidade essa que agora pertence às federações ou comités olímpicos de cada país. Mas esse será tema para outro dia. Kreuziger teve o azar de ser apanhado, mas ainda bem que assim foi. Menos um. De outra forma, continuaria a sua carreira impune, cal como continua Gasparotto (vencedor da Amstel Gold Race em 2012, por exemplo), que andava de Ferrari para colecionar abraços, e tantos outros que são denunciados por colegas mas nunca investigados. Como Hesjedal, implicado por Michael Rasmussen, confesso, mas nunca suspenso.

Quanto a Valjavec? Depois de inocentado pelas autoridades do seu país, o TAD deu razão à UCI, com direito a uma suspensão de dois anos.


O depoimento de Leonardo Bertagnolli aqui.
(Alguns outros ciclistas são referidos nas conversas entre Bertagnolli e Ferrari mas sem serem referidos como clientes de Ferrari).

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