segunda-feira, 8 de dezembro de 2014

Há uma lista de 90 clientes de Ferrari pronta a sair e muita gente a tremer

Ainda que poucos lhe conheçam o rosto, o homem do meio tem cerca de 30 grandes voltas no currículo
É dezembro, inverno no Hemisfério Norte, mas uma boa parte do pelotão estará a transpirar durante toda a semana. A causa? O jornal italiano Gazzetta dello Sport tem na sua posse o dossier da investigação levada a cabo pela Procuradoria da República da comuna de Pàdova (Pádua, em português) sobre o doutor Michele Ferrari. São 500 páginas, escutas telefónicas, fotografias, 90 nomes de ciclistas e muitas equipas a trabalhar com o doutor suspenso pelo Comité Olímpico Nacional Italiano em 2002. Uma investigação iniciada em 2010, que deverá estar concluída em breve e que a Gazzetta começou hoje a publicar. A quadra natalícia não vai ser tão santa em alguns lares.

Depois de ser banido pelo CONI, em 2012 Michele Ferrari levou uma suspensão vitalícia por parte da Agência Anti-Doping dos EUA, como consequência da investigação do Caso Armstrong, esse que o seu presidente classificou como a descoberta do maior esquema anti-doping de sempre. Não o era, nem por sombras. E nem sequer foi suficiente para afastar o doutor Ferrari do desporto.

O Mágico, O Mito, não faltam alcunhas para o homem que já mais conquistou na história do ciclismo, com uma carreira de três décadas. Desde o início dos anos 80, quando as transfusões ainda não eram proibidas mas sim vistas como "a ciência ao serviço do desporto". Até aos dias de hoje, quando está duplamente suspenso.

(Franz Beckenbauer, melhor futebolista do mundo em 72 e 76 chegou mesmo a admitir o uso de transfusões sanguíneas para o Campeonato do Mundo de Futebol de 74, que a sua República Federal Alemanha venceu. Serve isto para mostrar como mudou ao longo do tempo a forma de encarar o doping. E para desmentir a história de que "no futebol o doping não ajuda". Ajuda. Há pelo menos 40 anos que ajuda.)

Acredito que para Ferrari seja difícil terminar carreira. Mais do que científico, o seu trabalho chega a ser artístico. Porque criar um multi-vencedor de grande volta ou criar uma tripla na Flèche Wallone, tem a sua arte. E um artista nunca se reforma.
Uma das maiores performances de Ferrari aconteceu na Flèche Wallone de 1994.
Moreno Argentin, Giorgio Furlan e Evgueni Berzin encheram o pódio de Gewis-Ballan. Ferrari estava à frente de toda a gente
A Gazzetta publica hoje que Ferrari esteve presente num estágio da Astana em novembro de 2013, quando a equipa do seu ex-pupilo Alexander Vinokourov começava a preparar a temporada 2014. Visita essa que estará fotografada pelas autoridades que levaram a cabo a investigação. Uma notícia que vem na pior altura, a dois dias da UCI anunciar a sua decisão de manter (ou não) a licença World Tour da Astana. É uma decisão difícil para a UCI. Retirar a Astana do World Tour seria uma mensagem muito forte, mas seria igualmente muito hipócrita. Além disso, deixaria no desemprego muita gente, um fardo com o qual a UCI não quererá carregar. Também joga a favor da Astana o caso da Katusha em 2013, quando a UCI retirou a licença aos russos (também por excesso de casos de dopagem) mas viram a decisão contrariada pelo Tribunal Arbitral do Desporto.

A relação entre Ferrari e alguns ciclistas da Astana não é novidade. Do plantel deste ano, pelo menos Enrico Gasparotto e Michele Scarponi têm relacionamento conhecido com Ferrari. De recordar também que para 2014 a Astana tinha contratado Franco Pellizotti, outro cliente de Ferrari, cujo contrato foi anulado para respeitar as normas do Movimento Por um Ciclismo Credível. E para 2015 a Astana já contratou Luis León Sánchez, ex-cliente de Eufemiano Fuentes, Jesús Losa e Michele Ferrari. É difícil encontrar uma grande investigação de dopagem em que não esteja Luis León Sánchez, motivo pelo qual foi riscado da Belkin.

Durante esta semana se saberá qual o grau da relação entre a Astana e a Scuderia Italiana, como lhe chamava o concorrente Fuentes ("o chefe da Scuderia Italiana está com dois vinhos. O vinho da Rioja [vino, Vinokourov] e o vinho normal [Kashechkin]"). Mas segundo a Gazzetta, ao longo das 500 páginas da investigação não há nenhuma linha que ligue Vincenzo Nibali à scuderia.

Há na investigação duas áreas que poderão ser separadas. Uma (a mais óbvia) é a desportiva, a dopagem de atletas. A outra envolve o tráfico de substâncias proibidas e crimes como fraude fiscal, lavagem de dinheiro e fundos obtidos através de atitivades ilegais (vitórias com uso de doping). Segundo foi avançado em 2012, o volume de negócios descobertos de Ferrari já rondavam os 30 milhões de euros, e na altura falavam apenas em vinte desportistas (incluindo biatletas e triatletas).

Movimentar 30 milhões de euros ilegais não é fácil (que o diga o José que foi de Paris para Évora por movimentar 20). E para isso foi necessária a colaboração de muitas equipas, que faziam dois contratos com os seus ciclistas, um para pagar o salário, e outro para pagar "direitos de imagem" a uma terceira empresa, que acabavam por pagar isso sim a arte do cientista, ou a ciência do artista. Ao todo, seriam mais de vinte equipas a participar neste processo de lavagem de dinheiro entre 2008 e 2011.

Especular sobre os ciclistas que estarão entre os 90 de Ferrari é desnecessário. Os nomes acabarão por sair nos próximos dias. Alguns deles clássicos, como Scarponi, Gasparotto, Pellizotti, Kreuziger, Bertagnolli, Visconti, Luis León Sánchez, Menchov, Kolobnev, Gusev, Karpets, Ignatiev, Petrov (reparem na quantidade de russos), Popovych ou Bileka. Outros, segundo a Gazzetta, serão realmente surpreendentes.

Entre as conversas gravadas certamente também haverá muitas interessantes. Por exemplo, em setembro de 2010 Denis Menchov pediu que os seus companheiros mais próximos também trabalhassem com Ferrarri, entre eles Dmitriy Kozontchuk, um russo que ninguém necessita de conhecer (porque não anda nada) mas que era inseparável de Menchov. Depois desse pedido de Menchov foram para a Geox, onde Juanjo Cobo ganhou a Vuelta (só o seu médico saberá como). Kozontchuk foi com Menchov para a Rabobank, para a Geox, para a Katusha, para Ferrari e sabe-se lá para onde mais iam juntos. Porque todos os grandes líderes têm um amigo inseparável.

Os nomes sairão. Se haverá suspensões ou não, é outra história. Mas os nomes sairão. E este será tema durante os próximos dias.

Ferrari (à direita) e Tony Rominger, vencedor de três Vueltas e um Giro

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