domingo, 4 de janeiro de 2015

Ezequiel Mosquera: porque foi anulada a suspensão, mas não o positivo?

Mosquera venceu a etapa-rainha da Vuelta 2010 diante de Nibali, Purito e Frank Schleck
Foi noticiado na sexta-feira a anulação da suspensão de Ezequiel Mosquera, que se tornou grande trepador aos 32 e foi segundo na Vuelta à beira dos 35 anos. A decisão foi tomada por um tribunal civil mas a falange pró-doping fala numa absolvição e numa inocência como se o mascarante não estivesse nas veias do ciclista.

Em relação ao doping, vejo três movimentos ou falanges. A do doping, composta por todos aqueles que alimentam diretamente o tráfico: desportistas (profissionais ou não) que são clientes, os médicos dopadores, o staff facilitador, os grandes importadores mas também aqueles que recebem o produto em casa para depois vender aos amigos. Um segundo movimento, o do anti-doping, onde incluo os laboratórios anti-doping, as agências anti-doping (com os seus defeitos, é certo), todos os opinadores e jornalistas que tomam publicamente uma forte posição anti-doping (lá fora, cada vez são mais) e os adeptos (cada vez são mais e ainda bem) que não compactuam com este sistema e não comem toda a porcaria que lhes é dada. Por fim, a falange anti-anti-doping, cada vez mais forte. Nela incluo os opinadores e jornalistas que, pelo contrário, se dedicam a atacar as brigadas anti-doping e a defender todos os dopados apanhados, como se estes fossem as vítimas. Aqueles que há um mês ignoraram a lista de clientes de Ferrari com medo que algum amigo fosse implicado mas agora apareceram para congratular o Mosquera, porque querem trabalhar no meio e pertencer a este sistema. E ainda um monte de gente que usa os vários meios à sua disposição para desculpar, desresponsabilizar e banalizar o doping: médicos dopadores, narcotraficantes ou apenas pequenos camelos de distribuição. Basta abrir as redes sociais e estão aí. Repare o leitor na enorme quantidade de personalidades que defende todos os dopados em Portugal e arredores. Porque são clientes, possíveis clientes, ou amigos de clientes.

(a título de curiosidade, em novembro o El País publicou um artigo sobre um ex-bombado de ginásio espanhol que dizia "E também íamos comprar em farmácias de Portugal, onde a legislação não é tão estrita". Sim, vale a pena ultrapassar a fronteira porque somos mais atrasados. O artigo pode ser lido em português aqui.)

De regresso ao caso de Mosquera.

Começou em equipas portuguesas numa altura em que havia meia dúzia de formações espanholas mas não lhe deram oportunidade no seu país até aos 29 anos. Foi em 2005 para a Kaiku e em 2006 para a Comunidad Valenciana, não participando na Vuelta porque entretanto foi revelada a rede de Eufemiano Fuentes. Em 2007 estreou-se na Vuelta e foi quinto (sim, na estreia), quarto em 2008, quinto novamente em 2009 e segundo em 2010, à porta 35 anos, porque não é só o Horner que chega ao pico da sua carreira tarde. No final foi-lhe detetado hydroxyethyl num controlo anti-doping, uma substância mascarante. Que serve por exemplo para mascarar a EPO.

Mosquera sempre foi do tipo que cai bem a quase toda a gente pela simplicidade. Do tipo "boa pessoa". E ainda há muita gente que confunde "boa pessoa" com "limpo". Há "boas pessoas" que se dopam e "más pessoas" limpas. Quem esteja por dentro deste mundinho conhece meia dúzia de boas pessoas, bons pais, bons maridos e bons homens que se dopam para andar mais que os vizinhos e amigos nos granfondos ou nos passeios de roda livre. Porque o ser humano é assim, somos altamente competitivos por natureza.

Pela simplicidade, os pro-dopers argumentam agora que o Contador e o Valverde foram inocentados pela Real Federação Espanhola de Ciclismo por serem poderosos e o pobre Mosquera foi suspenso por não ter o mesmo poder. Sim, Contador e Valverde foram absolvidos por serem poderosos. Mas é para isso que existe o Tribunal Arbitral Desportivo e foi por isso que o TAD os suspendeu, corrigindo o erro da RFEC.

Mosquera foi agora inocentado por um tribunal civil, não desportivo. E porquê? Parece que ninguém quer dizer o motivo, muito menos aqueles que falam em inocência. Porém, a suspensão de Mosquera apenas foi anulada porque o processo disciplinar devia ter sido concluído no prazo máximo de seis meses mas demorou seis meses e três semanas, entre 29 de abril de 2011 e 16 de novembro de 2011. Como tal, o processo disciplinar caducado.

Podem ver o grau de "inocência". O mascarante estava lá, ninguém diz o contrário, mas a suspensão foi anulada porque o processo demorou mais três semanas que o permitido.

O ciclista sempre alegou inocência, claro. Mas é aqui que o enredo começa a ficar mais interessante e no final, que acredite quem puder. O diretor desportivo da Xacobeo era Álvaro Pino, que nos seus tempos de diretor da Phonak abalava de França com Tyler Hamilton, Óscar Sevilla, José Enrique Gutiérrez e Santi Pérez a caminho do consultório de Eufemiano Fuentes. Em 2009, quando Mosquera foi quinto na geral, Gustavo César Veloso venceu uma etapa e tiveram mais três segundos lugares, o médico da equipa era Alberto Beltrán, que antes tinha estado com a Liberty Seguros portuguesa e com os positivos de Nuno Ribeiro, Héctor Guerra e Isidro Nozal.

Santi Pérez com Álvaro Pinto, seu diretor desportivo e motorista que o levava até Eufemiano Fuentes
Depois de suspenso por EPO, foi recebido de braços-abertos em Portugal 
Além de Mosquera, também o seu companheiro David García deu positivo na Vuelta 2010. Mosquera foi por hydroxyethyl, a tal substância que serve para mascarar EPO. David Garcia, que em Portugal era um ciclista de terceira categoria mas na Xacobeo tornou-se trepador ao ponto de vencer etapa na Vuelta e ser 11º, foi por hydroxyethyl e... EPO.

E se há sempre algum médico dopador para defender os dopados, permitam-me também recorrer à opinião de um médico. No caso, o Juan Manuel Rodríguez Bastida, médico da Xacobeo antes de Beltrán, em entrevista à La Voz de Galicia disse:

"- Acredita que os corredores injetaram essa substância (hydroxyethyl)?  
- Limito-me a ler o que diz a UCI e, como médico, digo que é impossível que isso esteja no corpo se não se injetou. 
- Dizem que não sabem como chegou aos seus corpos. 
- Isso é hábito. Já o diziam há quarenta anos. Dizem todos. Eu não acredito de forma alguma. Negam e negam e dois anos depois voltam atrás e admitem."

E em 2011, David García confessou mesmo que se dopara conscientemente. À Policia, disse que tinha sido com... Alberto Beltrán, sendo esse um dos muitos motivos que levou à sua prisão em 2012. De resto, a primeira vez que foi apanhado na posse de produtos dopantes foi em 2001, quando trabalhava com a Selle Itália.

É uma entrevista muito interessante, a de Rodríguez Bastida, onde é relembrado que o diretor desportivo Álvaro Pino esteve em três equipas com escândalos de dopagem (Kelme, Phonak e Xacobeo) e o médico diz não acreditar nesse tipo em coincidências e que conheciam bem Beltrán, porque ele mesmo tinha alertado e porque Beltrán já tinha sido médico de Mosquera e César Veloso na Kaiku.

Mas certamente será tudo por uma grande coincidência. Do mesmo modo que toda a gente naquele grupo de amigos que treinam juntos começou a subir montanhas ao mesmo tempo, alguns bem depois dos trinta. Que as últimas três Voltas a Portugal sejam ganhas por ciclistas do mesmo grupo de treino e que nos últimos dois anos tenham ocupado quatro dos seis lugares de pódio, só pode ser mesmo por uma grande coincidência, pela água que bebiam quando eram crianças, ou porque descobriram a fórmula para o fazer. De qualquer modo, alguns diretores desportivos já estão a contratar mais do mesmo grupo, esperando que também eles saibam como voar no verão.

Porque no final já se sabe. O mundo do desporto está cheio de coincidências que envolvem incríveis ligações entre atletas e equipas, médicos e resultados.

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