O mundo ciclístico no início de 1981 vivia a
expectativa de que o francês Bernard Hinault, então com 26 anos, seria o grande
sucessor do herói nacional Jacques Anquetil – Merckx era considerado inatingível,
até porque nesta idade o Canibal já tinha um palmarés vastamente superior ao do
francês.
Com sua personalidade obstinada, Hinault havia sido
campeão do mundo no ano anterior, no torturante circuito de Sallanches, e era o
melhor ciclista de Grand Tours pós-Merckx: duas vitórias no Tour de France, uma
no Giro e uma na Vuelta. Várias outras viriam pela frente.
No terreno das clássicas, Bernard já tinha dois Monumentos no palmarés, a Liège-Bastogne-Liège e o Giro di Lombardia. Além destas, já havia vencido a Gent-Wevelgen, Flèche Wallone e três Grand Prix des Nations, o “campeonato mundial informal contra-relógio” como diziam os franceses.
Digam-me agora, dá para cobrar ainda mais vitórias de
um ciclista com tamanha fartura de vitórias? Na França daqueles tempos dava. E
cobravam. Lembro-me como se fosse hoje de matérias do jornal L’Equipe e da
sagrada revista Miroir du Cyclisme botando pressão em Hinault, pois um francês
não vencia a Paris-Roubaix desde 1956 e cabia a ele o feito.
Escreviam e diziam coisas do gênero: “Um campeão nunca será completo se não
vencer a Paris-Roubaix”. Pode isso?
O último francês a vencer La Reine des Classiques (“A Rainha
das Clássicas” na língua nacional) fora Louison Bobet, outro bretão
legendário que também foi o primeiro tricampeão do Tour de France (entre 1953 e
1955). Desde então os franceses foram forçados a tolerar – e até admirar – o
sucesso dos belgas.
Acostumados aos pavés, ao vento e sofrimentos em
geral, os vizinhos belgas venceram absurdas 18 edições do Inferno do Norte entre
1957 e 1980. No entanto, aquela geração maravilhosa que produziu gigantes como
Merckx, Maertens, De Vlaeminck, Godefroot e tantos outros, havia envelhecido ou
parado de correr.
A Paris-Roubaix tinha então se tornado território
italiano: Francesco Moser era o atual tricampeão da prova (1978-1980). Este
grande trentino também tinha uma capacidade única de sofrer e era o melhor
passista do momento, capaz de triturar a concorrência. E Hinault? Bem, o Blaireau – ou Texugo, que era o apelido do campeão francês – não tinha uma boa
relação com os lendários pavés do norte. Vamos lá:
- PARIS-ROUBAIX – 1978: 13º; 1979: 11º; 1980: 4º colocado a mais de 6 minutos do vencedor Francesco Moser. Apesar de demonstrar uma evolução constante, o orgulhoso bretão não podia se conformar com performances medíocres em Roubaix, quando ele tinha o hábito de ser protagonista em outros terrenos.
- TOUR DE FRANCE 1979 – ainda um campeão “em construção”, Hinault liderava o Tour, mas na 9ª etapa, entre Amiens e Roubaix, os pavés quase acabaram com o seu segundo Tour de France. O francês furou – e ainda foi atrasado por uma manifestação (coisa comum na época) –, perdendo mais de 3 minutos para o rival direto, o holandês Joop Zoetemelk. Bernard trabalhou duro nas etapas seguintes e acabou vencendo o seu segundo Tour.
Dono de uma das línguas mais afiadas da história do
ciclismo, Hinault já havia declarado que “cette
course c’est hérésie, ce ne pas du cyclisme”, ou em bom português: esta corrida é uma heresia, isso não é
ciclismo. Para os franceses e amantes das clássicas, heresia foi esta
declaração de Bernard. Mas como ele era quem era, a turma engoliu… mas não
digeriu.
Mas 1981 era um ano diferente, pois o Blaireau vestia o maillot arc-en-ciel (o famoso Arco-íris de campeão mundial) e a
pressão para correr a Paris-Roubaix tornou-se forte demais para ele se negar a
largar.
Bernard Hinault não era apenas um campeão. O bretão
era (perdão, é) um homem de imensa ambição e orgulho. Apesar da imensa e
pública antipatia pela corrida, Bernard avisou que largaria para vencer.
E finalmente chegava o dia 12 de abril de 1981. Um dia
de chuva, ainda que não tão frio (para os padrões do norte da Europa). Os pavés
pareciam ter sido ensaboados pelos deuses do ciclismo, sequiosos por ainda mais
emoção do que o usual. Na linha de largada em Compiègne o pelotão era composto
por 174 candidatos ao martírio.
Só para se ter uma ideia do estado das estradas,
Bernard Hinault caiu ou foi retardado por quedas à sua frente, nada mais nada
menos do que sete vezes naquele dia. E os furos nos tubulares? Na época eles
reinavam absolutos e furavam à vontade na Paris-Roubaix.
A exceção era o belga Roger de Vlaeminck, dono de uma
pedalada tão elegante que ele parecia flutuar sobre aquelas ‘pedras’ e nunca
furava. Os demais viviam às turras com as frequentes trocas de rodas. O papel
mais importante dos gregários daquela época, na Paris-Roubaix, era ceder rodas
aos seus líderes. Todo o resto era secundário.
Voltando à prova, ela não foi muito diferente do que
vemos hoje: os mais fortes foram para a ponta, acelerando continuamente,
enquanto os mais fracos (e mais azarados) iam sobrando, até que um grupo se
isolou na liderança da corrida.
Faltando perto de 30 km formou-se um grupo de elite e
ficava claro que a vitória caberia a um deles: lá estavam lendas como Moser
(tricampeão em título), os belgas De Vlaeminck (4 vitórias), Marc Demeyer
(vencedor em 1976) e Guido van Calster, o holandês Hennie Kuiper (que a
venceria em 1983) e Bernard Hinault, o maior ciclista do mundo.
Havia grande tensão nesta fuga, pois Moser e De
Vlaeminck não se toleravam após o catastrófico ano de 1978, quando correram
juntos na equipe Sanson e mais se atacavam do que se ajudavam. E se Moser
vencesse em 1981 empataria com O Cigano
de Eeklo com 4 vitória, com a vantagem de que teriam sido obtidas em
seguida. Se Roger vencesse aumentaria seu recorde para 5 conquistas,
consolidado ainda mais o seu codinome
Monsieur Paris-Roubaix.
Os quilômetros e os pavés iam sendo superados pelos
líderes – com furos e quedas – e a ansiedade ia subindo. Alguém conseguiria
escapar? E se fossem para o sprint, quem seria o mais rápido? Bernard Hinault
parecia possuído, procurado desgastar seus companheiros de fuga ao impor um
ritmo infernal. E parecia quebra-los emocionalmente. Sua fisionomia era de
fúria, enquanto Moser e De Vlaeminck demonstravam fragilidade no olhar.
Se Hinault estava determinado a acabar com a seca de
vitórias francesas na sua clássica número um, o destino parecia estar
igualmente determinado a boicota-lo. Primeiro foi um furo a apenas 8 km de
Roubaix, mas o carro da sua Renault-Gitane estava grudado no grupo e a troca
foi rapidíssima.
Mas faltando apenas 4 km, Bernard vinha na ponta e ao
fazer uma curva de 90º à direita depara-se com um ... um cachorro! Algo único.
Ele cai forte e seus 5 rivais fazem malabarismo ciclístico para não passarem
por cima dele e caírem junto. O campeão mundial se levanta como que por
impulso, recusando-se a deixar que o azar o vencesse. Parte em perseguição
movido a pura adrenalina.
Incrivelmente, em menos de 1 km ele encosta no grupo,
vai pra ponta e acelera imediatamente. Prova maior de agressividade impossível.
Os seis seguem firmes em direção ao mágico velódromo de Roubaix. Hennie Kuiper,
domestique de De Vlaeminck na Daf
Trucks-Cote d’Or, puxa muito forte, visando evitar ataques de passistas mais
fortes, como Moser ou Hinault. Era claro que Roger era o mais rápido dos seis
em fuga e o sprint lhe favorecia.
Kuiper havia levado um senhor tombo e seu maillot branco estava que era só barro.
Mal se reconhecia de que equipe. O holandês adentra o velódromo, cuja pista tem 500 metros de distância. Como os ciclistas sempre completam aproximadamente uma
volta e meia, esperava-se que Kuiper fosse à morte até pelo menos o badalar do
sino, mas ...
...aquele Bernard Hinault possuído que comentei antes
voltou à sua pele e Bernard estranhamente assumiu a ponta logo que entraram na
pista e ele trouxe seus rivais de roda. Eram algo como 600 metros a serem
percorridos. Com Roger de Vlaeminck grudado em sua roda e Moser na roda do
belga, Hinault havia feito a escolha tática perfeita para ... perder uma
corrida em que tanto trabalhara e que dele tanto se esperava.
Acontece que naquele dia nem velocistas supremos como
Freddy Maertens ou Giuseppe Saronni bateriam aquele francês ensandecido no
sprint. O bretão vestido de Arco-íris simplesmente acelerou, acelerou, acelerou
e quando faltavam perto de 300 metros para a linha de chegada ele ainda
encontrou pernas para levantar do selim, dar novo impulso ao seu sprint e
resistir ao ataque vigoroso de Roger.
Vitória de proporções épicas deste grande guerreiro do
nosso amado esporte. Foi provavelmente a comemoração mais emocional da carreira
de Bernard Hinault. Não fora apenas uma explosão de imensa alegria, mas
principalmente por tirar das costas a imensa cobrança que recebia de toda uma
nação.
Mas Hinault não seria Hinault se a sua antipatia pelos
pavés de Roubaix acabasse ali e ele prometesse voltar para mais vitórias.
Bastou o primeiro microfone encostar em sua boca e ele disparou: “Esta corrida é uma estupidez e eu nunca
mais correrei aqui”.
Obviamente, em 1982 as pressões voltaram de todos os
lados, afinal ele era o campeão em título e não seria razoável que não corresse.
Ele largou, lutou bravamente, mas não foi páreo para uma equipe Raleigh que de
uma aula de jogo de equipe. O antipático holandês Jan Raas venceu – com o
velódromo de Roubaix ficando num silêncio sepulcral (palavras de um amigo
francês que estava lá) – e Bernard ficou em 9º, para aí sim nunca mais voltar.
Para mim, que tenho 40 edições da Paris-Roubaix no
coração e na memória, esta foi a mais espetacular que já acompanhei.
E aqui me despeço dos amigos do Carro Vassoura,
desejando a todos uma grande Paris-Roubaix 2015, a 113ª edição de L’Enfer du Nord.
Fernando Blanco
Fernando Blanco é o autor da página Ciclismo PRO, que podem visitar clicando aqui. Na semana passada escreveu para o Carro Vassoura A Grande Volta a Flandres de Eddy Merckx. E como na semana passada, recomendo que visitem Ciclismo PRO e agradeço estas duas fantásticas colaborações do Fernando.
O artigo foi publicado no "português brasileiro" original.
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