quarta-feira, 6 de maio de 2015

Reportagem mostra como o Passaporte Biológico não apanha transfusões, EPO e HGH

A televisão pública francesa apresentou este fim de semana uma interessante reportagem, mostrando como oito atletas e triatletas se dopam durante 29 dias com transfusões sanguíneas, microdoses de EPO, hormona de crescimento (HGH) e corticoides, melhorando o seu rendimento e, mais importante, sem fazer disparar os alarmes do passaporte biológico. Para quem tinha dúvidas, uma boa demonstração da ineficiência do passaporte.

O teste foi realizou-se para o Stade 2, um programa da televisão pública francesa no ar há 40 anos, e exibido na sua edição da semana passada, no domingo. Não é um estudo académico, com todos os requisitos que isso implicaria, tem as suas limitações (e delas falarei) mas é pertinente para quem se interessa por este tema da dopagem e da anti-dopagem. Eu interesso-me, mas ninguém é obrigado a ler.

Oito atletas e triatletas, voluntários para este exercício, começaram por fazer três testes: VO2 max (vulgo "capacidade máxima de transportar oxigeno"), 14 quilómetros em bicicleta estática e corrida de três quilómetros. Depois entraram num programa de 29 dias de dopagem, com transfusões sanguíneas, microdoses de EPO, hormona de crescimento e corticoides. No final voltaram a fazer os testes e os ganhos foram significativos.

No teste de VO2 máx a melhoria média foi de 6,1%, no teste da bicicleta estática foi de 2,1%, na corrida de 3000 metros foi de 2,8%. Mas atenção, porque estamos a falar de média. Cada organismo reage de forma diferente a cada droga e no caso do teste de bicicleta a mais impressionante melhoria foi de 5%. Ora, no Campeonato do Mundo de contrarrelógio do último ano, 5% é a diferença entre o primeiro e o... 22º classificado.

Antes de continuar sobre o artigo, algumas considerações pessoais sobre as drogas, a dopagem e a luta anti-doping parecem-me importantes. Algumas já as fiz e não são novas para quem lê sempre o Carro Vassoura (haja paciência), mas há sempre mais alguma coisa a acrescentar, porque se dissesse tudo de uma vez, em vez de um artigo, seria preciso um livro. São, ao fundo, considerações pessoais e valem o que valem.

Para a vida de cada superdroga no desporto identifico quatro estágios. Falo aqui de ciclistas e do pelotão pois aqui trata-se de ciclismo, mas não se pense que é diferente nos outros desportos. Primeiramente (1) é utilizada por um, dois, três ciclistas que protagonizam performances completamente atípicas, seja pelo salto de qualidade que estes dão ou pelos recordes que quebram. Depois (2) é utilizada coletivamente dentro de alguns grupos e aí podemos ver como vários colegas têm picos de forma conjuntos, levando a dobradinhas e triplas. Tratam-se maioritariamente de colegas de equipa, mas também se pode dar o caso de colegas de treino que partilham as práticas ou ciclistas de um dado país que têm enormes progressões simultâneas. Segue-se (3) a generalização do uso da droga, quebrando-se as barreiras e deixando de se notar a supremacia de algumas equipas, nacionalidade ou colegas de treino (ou médico). Por fim (4), chega um teste que pode detetar a droga... em condições muito específicas.

Por superdroga refiro-me àquelas que revolucionam por completo os resultados, mais do que as anfetaminas e seus parentes fizeram anteriormente. Vejamos o exemplo da EPO, a primeira a instalar-se no pelotão e com um período de vida suficientemente longo e conhecido para se analisar. Começou a ser comercializada para fins terapéuticos nos últimos anos da década 80 e chegou ao pelotão logo nos primeiros anos da década de 90 (1). Ainda na primeira metade dos 90 (2) começou a ser utilizada coletivamente em algumas equipas e daí temos a exibição máxima, quando três ciclistas da Gewiss-Ballan de Michelle Ferrari preencheram os três primeiros lugares da Flèche Wallonne, isolando-se a 70 km da meta. Na segunda metade da década de 90 (3), a EPO generalizou-se pelo pelotão. E em 2001 (4) surgiu o primeiro controlo positivo por EPO. No entanto, em 2015, ainda só é possível detetar os mais incautos. Tudo isto é suportado pelas autobiografias de vários ciclistas que contam como se doparam continuamente sem serem detetados pelo controlo. Passaram 25 anos desde a chegada da EPO.

As "clássicas" EPO e hormona de crescimento continuam a ser muito utilizadas, mas outras superdrogas chegaram ao pelotão, como TB 500, GW1516 e AICAR. Diz quem já utilizou que superam largamente os efeitos da EPO, e a propagação de AICAR pelo pelotão apenas não é mais rápida devido ao elevadíssimo custo. Ainda assim, observando a cada vez maior quantidade de ciclistas que apresentam uma magreza e horripilante sem perda de potência, talvez esteja agora mais acessível. Tal como acontece com as outras drogas, quem estiver melhor inserido na rede, consegue preços mais simpáticos. Assim funciona o narcotráfico. Dá pano para mangas, mas voltemos ao tema principal deste artigo.

Além de não se tratar de uma pesquisa científica, o exercício do Stade 2 apresenta algumas limitações.

- A amostra, de apenas 8 atletas, é reduzida;

- O exercício teve uma duração muito curta. Com uma duração maior, talvez algo fosse detetado pelo Passaporte Biológico. Talvez, não sabemos. Sabemos sim que os progressos seriam muito mais significativos. Por alguma razão, quem pode, dopa-se de janeiro a dezembro;

- Os testes realizados são curtos. Sobretudo a EPO é uma droga que beneficia características sobretudo importantes nos desportos de resistência. Assim, o benefício será maior em esforços mais longos, como uma maratona, uma etapa completa de montanha ou uma prova por etapas do que numa corrida de 3000 metros ou 14 quilómetros de bicicleta.

Apesar disto, os resultados são bastante relevantes. Já anteriormente tinham sido realizadas pesquisas nesta área, até melhores, de onde também se retirou aquela que me parece ser a conclusão mais importante aqui: a ineficácia do Passaporte Biológico perante as microdoses de EPO - tendo as microdoses de EPO tornado-se prática precisamente para contornar o controlo. Porém, esta reportagem televisiva obteve um maior mediatismo, servindo para alertar para a ineficácia do PB.

Não significa que o Passaporte Biológico seja mau. Foi uma medida criada no bom sentido, o do combate à dopagem, mas é ineficaz e tem muito que melhorar, tal como o teste à EPO que continua a apanhar somente os mais incautos. Para quem a sabe administrar, continua a ser indetetável.

Há um longo e inesgotável caminho a percorrer. Um passaporte biológico limpo, não é sinal de um atleta limpo.



A reportagem completa, em francês, pode ser vista aqui:

Agradecer ao leitor do CV António Martins, que sendo fluente em francês, deu um importante contributo com a barreira linguística.

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