terça-feira, 12 de janeiro de 2016

Coppi & Bartali: Dois Ciclistas e uma Guerra - O começo

Completar uma grande volta não é tarefa para todos. Ultrapassar toda aquela montanha, dia-após-dia. Se nem agora o é, pior seria quando o equipamento era de menos e o seu peso de mais. Mais difícil é vencer, que implica ser o melhor em prova. Não um dos mas o melhor. E no Tour implica ser o melhor dos melhores, quando estão no seu melhor. Muitas adversidades, mas ainda pode piorar quando no meio se mete a 2ª Guerra Mundial. Esse foi um obstáculo adicional que cruzou o caminho de Gino Bartali e Fausto Coppi, amigos ou rivais, mas certamente dois dos melhores ciclistas de sempre e protagonistas desta série de artigos.


No início do ciclismo

Quando Gino Bartali nasceu, a 18 de julho de 1914, o ciclismo de competição estava ainda a dar as suas primeiras pedaladas. Depois de vários modelos de bicicletas, primeiro sem pedais, depois com uma roda traseira muito pequena e a dianteira exageradamente grande, foi no final do século XIX que surgiu aquilo que se pode chamar hoje de bicicleta. Ainda longe da incessante busca pela perfeita aerodinâmica e a ligeireza da fibra de carbono.

Depois começaram a surgir as provas de ciclismo e a levar o desporto às vilas e aldeias recônditas, alheadas da maioria dos grandes eventos desportivos, confinados às grandes cidades. Em 1876 surgiu a Milano-Torino, tendo a segunda edição disputado-se apenas em 1894. Em 1885 a primeira fabricante de bicicletas italiana, a Bianchi. Em 1905 a Volta à Lombardia, dois anos depois a Milano-Sanremo e em 1909 o Giro (seis anos depois do Tour). Em 1914 nasceu Gino Bartali. Foi em julho, um julho conturbado.

A 28 de junho de 1914, o Arquiduque da Áustria Franz Ferdinand foi assassinado em Sarajevo, na Bósnia-Herzegovina, e a Europa entrou em período de grande transformação, que teria consequências na vida de todos. Um mês depois, o Império Austro-Húngaro invadia a Sérvia e dava início àquela que seria a Primeira Guerra Mundial. Depois dela, com a Europa a assimilar a nova ordem estabelecida, Benito Mussolini iria chegar ao poder em Itália e seria a sua liderança do país uma das maiores condicionantes da carreira de Bartali.

O começo de Bartali

A história de Bartali parece-se com tantas outras. Não tinha grande jeito para a escola mas foi pela escola que teve acesso à sua primeira bicicleta. Para completar o ensino básico (o sexto ano de escolaridade no modelo italiano da época) precisou de uma bicicleta que o levasse desde Ponte a Ema, a sua pequena localidade, à renascentista Florença. Depois, com doze anos, estava na altura do pequeno Gino se fazer à vida. E procurar um trabalho. A história de Bartali parece-se a tantas outras e, como cada uma, só explica colocando-se no devido tempo e espaço: era a Itália (e a Europa) dos anos 20.

A primeira corrida veio aos 17 anos. Na noite do seu aniversário, surpreendeu os pais, pedindo que deixassem o seu pequeno irmão, Giulio, entrar numa prova onde participariam alguns dos seus colegas. Os pais não queriam que os filhos gastassem muito tempo sobre essas perigosas bicicletas mas, se alguém tinha que correr, que fosse Gino, dois anos mais velho. Gino correu e venceu. Depois foi desclassificado. Porque a corrida era para jovens entre os catorze e os dezasseis anos e Gino tinha completado 17, mas se os pais não queriam os filhos sobre as bicicletas, depois daquilo Gino Bartali sabia exatamente o que queria para a sua vida.

Foi quatro anos mais tarde que se tornou profissional, em 1935, na equipa Fréjus. Estreou-se no Giro, foi 7º, venceu uma etapa, foi o melhor trepador e concluiu a temporada com o título de campeão italiano, numa altura em que este se disputava por pontos acumulados nas principais provas nacionais. Tinha 21 anos e a imprensa italiana começou a alimentar grandes esperanças no sucessor de Bottecchia e Binda.

Com o ciclismo de competição no seu início, eram poucas as figuras históricas mas os italianos já tinham vivido duas. Ottavio Bottecchia, vencedor do Tour de France em 1924 e 25, fora encontrado morto em junho de 27, baleado, algo que deu azo a diferentes teorias e especulações. Nesse mesmo ano, apenas três dias após o décimo terceiro aniversário de Bartali, Alfredo Binda venceu o primeiro Campeonato do Mundo de ciclismo. Quando Bartali se estreou como profissional Binda estava nas suas últimas temporada e com três títulos mundiais (além de 5 Giri) tinha chegado à glória além-fronteiras que agora se esperava de Bartali. Em 1936, correndo pela Legnano (de Binda), deu nova demonstração do seu talento ao vencer o seu primeiro Giro d'Itália com mais três etapas levadas e novamente o prémio de melhor trepador. A sua alegria não durou muito. 

Uma semana após a vitória no Giro, Gino estava em Turim à espera que a chuva passasse para começarem uma prova. O irmão Giulio estava em Florença, preparado para uma prova de amadores, a qual não foi adiada. Em condições adversas, um carro ignorou a sinalização da polícia e foi na direção dos três jovens que seguiam na frente da corrida. Dois evitaram o acidente, Giulio não. Dois dias depois, nove após a conclusão do Giro, Giulio Bartali morreu.

Além da tristeza pela morte do irmão mais novo, Gino sentia-se culpado. Fora ele a incentivar Giulio a praticar ciclismo e sentia-se o responsável pelo acidente, afastando-se da bicicleta. E foi aí que entrou na sua vida Adriana Bafi, mais tarde Adriana Bartali. Católico devoto, Gino era um homem entregue à família e Adriana seria um pilar ao longo da sua vida e um dos pontos de debate entre Bartaliani e Coppiani, que é como quem diz, os defensores de Bartali (na sua carreira e vida) e os defensores de Coppi (igualmente em ambos os aspetos). Após o choque da morte, um novo objetivo surgia: vencer Giro e Tour no mesmo ano, algo que nunca ninguém havia feito.


Gino Bartali, Tour 1938: o homem e a máquina


A mão de Mussolini

O ano seguinte (37) não começou na melhor forma, com uma broncopneumonia a colocar em causa a sua presença no Giro. No final, não só conseguiu recuperar como voltou a vencer, agora com quatro etapas. Exausto, decidiu que não correria o Tour seguinte e o seu sonho de dobradinha ficaria adiado, mas foi aí que percebeu que a sua carreira estava nas mãos de Mussolini.

Na Itália fascista, como em quase todas as ditaduras, o desporto é uma poderosa arma de propaganda política e Mussolini queria que Bartali vencesse em França. Bartali não queria participar no Tour não se sentido em condições para tal, mas sabia o que lhe poderia custar uma afronta ao Duce. Bem presente na memória tinha os conselhos do pai (apoiantes dos ideais socialistas, contrários a Mussolini) para nunca revelar as suas ideias políticas em público. E Itália tinha presente a morte de Ottavio Bottecchia. O duplo vencedor do Tour, um convicto anti-fascista, foi encontrado sem vida, baleado, e apesar da versão oficial apontar para um tiro acidental de um caçador, muitos acreditam que foi assassinado pelo regime. Acusado pelos órgãos de propaganda de ser desleal ao país por se recusar a defender as suas cores em França, Bartali viu-se forçado a alinhar no Tour de 1937.

A sua estreia corria pela perfeição quando à sétima etapa, nos Alpes, chegou à liderança. Mas durou pouco. No dia seguinte uma queda levou a que perdesse muito tempo e a liderança apenas durou dois dias. Mesmo afetado pela queda, queria continuar em prova para recuperar e buscar uma nova vitória de etapa, mas o regime de Mussolini obrigou ao abandono, alegando que não estava em condições de saúde para continuar. Após a Segunda Guerra Mundial, Bartali explicou a sua versão: Mussolini não queria que o novo ídolo dos italianos perdesse para franceses. Bartali ficou extremamente frustrado: foi obrigado a participar contra sua vontade e obrigado a desistir contra sua vontade.

A situação não melhorou quando em 1938 foi proibido de participar no Giro. Sendo uma importante figura de propaganda para o regime fascista, era o governo quem decidia em que provas participava. Para que pudesse chegar mais fresco ao Tour e vencer em França (a tensão entre os dois países era notória), foi-lhe vetada a participação no Giro. E depois da vitória italiana no Mundial de futebol (disputado em França), só se aceitava nova vitória.

Numa das etapas mais duras dos Pirenéus, Bartali deu uma das maiores demonstrações de superioridade, ultrapassando na frente Aubisque, Tourmalet, Aspin e Peyresourde. Na última descida caiu, mas felizmente não partiu nada e ficou apenas a dois minutos e meio da camisola amarela. Acabaria por vesti-la nos Alpes, após triunfo Briançon, que conquistou por cinco minutos e o deixou na liderança por dezassete, a qual nunca mais perderia. Assim Gino Bartali venceu a Volta a França de 1938.

Em 1939, uma série de furos impediu nova vitória no Giro, relegando para o segundo posto. Mas o maior azar de Gino Bartali era (como mais tarde seria de Coppi) o tempo em que vivia. Seria continuamente exibido como bandeira da Itália fascista e da "raça italiana" que o ditador propagandeava. De facto, durante toda a sua carreira Bartali teria alguém para se tentar aproveitar da sua popularidade e êxito como instrumento de propaganda política. Nunca foi uma opção sua.

Com a crescente hostilidade entre França e Itália, Mussolini decidiu que os italianos não participariam no Tour, e assim Gino Bartali viu-se impedido de defender o seu título. Teria que esperar dez anos para o poder fazer, mas antes, conheceu aquele que seria o seu maior rival: Coppi.
Gino Bartali, vencedor do Tour 1938

A chegada de Coppi

Nascido a 15 de setembro de 1919, cinco anos mais novo que Bartali, Angelo Fausto Coppi vinha também ele de família muito humilde. A sua primeira bicicleta foi encontrada abandonada por estar aparentemente inutilizável e terminaria por tornar-se o maior rosto da icónica Bianchi. Pelo meio, aos 13 anos já trabalhava... num talho.

Em 1939 passou de amador a independente, uma categoria intermédia que lhe permitia correr contra profissionais. Como Bartali. Foi no Giro del Piemonte, em junho desse ano, que se deu o primeiro duelo entre eles, com vitória de Bartali e Coppi em terceiro. Nessa noite, Coppi assinou o seu primeiro contrato profissional, pela Legnano, onde seria companheiro do grande campeão italiano no ano seguinte.

Devido ao palmarés de um e à inexperiência de outro, não poderia haver dúvida quanto à liderança, mas um queda no segundo dia (choque com um cão) deitou por terra as aspirações de Bartali. Com um ombro deslocado, o médico a recomendar o abandono e quinze minutos perdidos, continuou em prova para ajudar o seu jovem companheiro. Estava lá quando Coppi teve a primeira grande vitória. Ou não estava, porque ninguém estava com Coppi nos seus melhores momentos. Un uomo solo. Foi na 11ª etapa do Giro 1940, a primeira das muitas longas e solitárias cavalgadas que marcaram a carreira do franzino italiano.

Desse Giro conta-se ainda a história de que Eberardo Pavesi, diretor desportivo da Legnano subiu ao Falzarego, nos Dolomitas, na véspera da 17ª etapa, e deixou dois bidões num café para que fossem cheios e entregue aos dois primeiros ciclistas que ali passassem no dia seguinte. Quando o dono do estabelecimento lhe perguntou como saberia que eram os seus ciclistas, Pavesi respondeu que um estaria de vermelho, branco e verde e outro de cor-de-rosa. Lenda ou realidade, certo é que no final Gino Bartali venceu com a sua tricolore de campeão italiano e na sua roda apenas seguia Fausto Coppi, para cimentar a sua liderança.

Uma nova era que começava? Sim, mas para toda a Europa. Um dia após o término do primeiro Giro de Coppi, Benito Mussolini declarava em Roma que a Itália estava em guerra com a França e o Reino Unido. Bartali & Coppi tinham que esperar.


Giro 1940: Bartali comanddo Coppi

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