segunda-feira, 18 de janeiro de 2016

Coppi & Bartali: Dois Ciclistas e uma Guerra - O Reinado de Coppi

Gino Bartali tinha-se colocado em 1948 como o melhor ciclista do mundo, mas a federação italiana estava determinada em evitar a repetição de episódios como a recusa de Fausto Coppi correr o Tour ou a marcação homem-a-homem entre os dois no Campeonato do Mundo. Nesse sentido, Alfredo Binda começou logo em março as negociações com ambos para colocarem os interesses da seleção a cima dos interesses pessoais. A estratégia era simples: ajudar-se-iam mutuamente até ao início das montanhas e, aí chegados, seria a estrada a entregar a liderança.


Se Gino Bartali era o melhor ciclista do mundo no momento, Fausto Coppi estava pronto a entrar numa fase de imbatibilidade. Aliás, já tinha entrado ao vencer a Volta à Lombardia do ano anterior. Depois a Milano-Sanremo de 1949. E era só o começo.

Essa Volta a Itália ficaria genialmente relatada por Dino Buzzati, o jornalista, romancista e poeta italiano enviado pelo Corriere della Sera para contar ao país a rivalidade de Gino e Fausto. Posteriormente recompiladas e publicadas em livro, as crónicas de Buzzati são ainda hoje elogiadas, não como relato desportivo, mas pela forma como abordam todo o lado romântico em redor de Bartali & Coppi, num período em que o país recuperava do choque provocado pela Tragédia de Superga. Um acidente aéreo poucas semanas antes levou à morte de todos os futebolistas do Torino, tetra-campeão italiano de futebol, que tinha viajado a Lisboa para disputar um amigável com o Benfica.

Fausto Coppi apenas chegou à maglia rosa a três dias do final, mas fê-lo sem margem para dúvidas quanto à sua superioridade física. Numa etapa com passagem por França, os ciclistas subiram La Maddelena, Vars, Izoard, Montgenèvre e Sestriere, Coppi não só chegou à liderança da prova como deixou o segundo classificado, a doze minutos de distância e vinte e quatro na classificação geral. Era o seu maior rival nesse Giro e na sua carreira, Bartali, o próprio. Desse dia, quando as provas eram, à falta de transmissão televisiva direta, seguidas pela rádio, ficou célebre a abertura de emissão. Un uomo solo è al comando; la sua maglia è biancoceleste; il suo nome è Fausto Coppi. (Um homem isolado está no comando; a sua camisola é branca e celeste; o seu nome é Fausto Coppi.) Era e seria até ao fim un uomo solo. Mesmo quando estava na multidão.

Um Tour a dois

A realizar performances extraordinárias, Coppi estava pronto para a sua estreia no Tour, mas sem esquecer que Bartali, à beira dos 35 anos, uma idade muito avançada para os parâmetros da altura (e até há pouco tempo), tinha um título para defender. Após a 4ª etapa, ambos estavam a 18 minutos da liderança, mas iria piorar para Coppi logo no dia seguinte.

Uma queda deixou-lhe a bicicleta incapaz e quando Binda chegou junto de si para lhe dar outra, Coppi estava pronto a abandonar. O selecionador opôs-se mas, quando percebeu que a decisão apenas dependia do ciclista, pediu-lhe que pedalasse até ao final e, se na manhã seguinte quisesse abandonar, teria o seu consentimento para deixar a corrida. Apenas uma pessoa lhe podia mudar o pensamento, um dos poucos em quem podia confiar: BartaliO seu companheiro/rival ter-lhe-á questionado: "Meu bom rapaz, como vais olhar para os teus fãs? Tu estás a desistir. Adeus glória, adeus dinheiro, mais ninguém te levará a sério. Querias que eu ficasse em casa para este Tour e o que fazes? Desistes na quinta etapa?" A relação entre os dois nunca será totalmente explicada, mas Bartali era uma das poucas pessoas em quem Coppi pôde confiar, ainda que fosse como rival. Quando os amigos se afastaram, o rival estava lá. Como nas provas. Quando os companheiros ficavam para trás, Bartali ainda lá estava. E Coppi decidiu continuar em prova, mesmo estando a 36 minutos e meio do líder, o francês Jacques Marinelli (Bartali estava a 23 min).

Dois dias depois, na sétima etapa, Coppi venceu um contrarrelógio de 92 quilómetros (!), a uma média de 40 km/h (!). Numa época em que havia bonificações em todo o lado, mesmo nos contrarrelógios e nas contagens de montanha, Coppi reduzia o atraso para 28 minutos, mas voltaria a aumentar para 32 quando o seu compatriota Fiorenzo Magni venceu a 10ª etapa e vestiu de amarelo. A partir de então, seria a recuperação.

A única etapa pirenáica escalou Aubisque, Tourmalet, Aspin e Peyresourde, quatro montanhas que fazem parte da história da prova, e dela Coppi saiu a 15 minutos de Magni e logo atrás de Bartali. Nos Alpes completou-se a reviravolta.

Na 16ª etapa, com Allos, Vars e Izoard, Coppi caiu no terreno onde tinha sentenciado o Giro anterior, mas Bartali esperou. Depois Bartali furou e Coppi esperou. No final os dois chegaram isolados a Briançon, com cinco minutos de vantagem sobre a concorrência mais direta e, sem discussão, a vitória foi para o aniversariante do dia: Bartali. Aos 35 anos era o novo líder com o companheiro a 1'22''. No final, as suas palavras acabavam com as polémicas. "A etapa de hoje demonstra que entre mim e Coppi não há qualquer rancor, mas apenas a rivalidade desportiva". Seguiu-se nova dobradinha. Mas desta feita, quando Bartali caiu, Binda deu instruções a Coppi para seguir ao seu ritmo e a vantagem que abriu foi suficiente para subir à liderança com quatro minutos. "Devo reconhecer, e nunca coloquei em dúvida, que Coppi é um grande campeão. Também devo reconhecer que eu sou muito azarado." Assim resumia Bartali.

Nas mesmas montanhas, em 52, novamente juntos, viriam a protagonizar uma das fotografias mais emblemáticas da história da modalidade: Coppi e Bartali com um bidão de água que não se percebe quem dá e quem recebe, perpetuando as dúvidas sobre a relação entre ambos. Bartali diria mais tarde: tenho 8 ou 9 amigos verdadeiros e Fausto é o melhor. Subiram lado a lado ao pódio de Paris, onde Bartali passou a coroa a Coppi.
Caricatura no Corriere dello Sport, durante o Tour de 1949


A chegada ao cume

No final da sua carreira, este viria a revelar-se como um dos melhores períodos da sua carreira, entre a Volta à Lombardia de 48 e a primavera de 1950, se não o melhor. E foi numa forma incrível que Coppi enfrentou o Campeonato do Mundo, em Copenhaga, contra as suas características. Sem dificuldades no percurso, a estratégia passou por puxar tanto quanto podia, tão forte quanto podia. Apenas dois ciclistas conseguiriam resistir e ao sprint bateram o italiano, ficando-se pelo bronze. Depois venceu novamente a Volta à Lombarida e na primavera de 1950 venceu a Flèche Wallonne e o Paris-Roubaix, corridas de características completamente diferentes, que evidenciavam a sua capacidade. Foi o período em que melhor se conjugou a sua superioridade na estrada com a sua paz fora dela.



Na Volta a Itália, uma queda levou ao abandono, quando Bartali ainda era capaz de ser segundo, e as suas consequências impediram a participação no Tour. Mas 1951 seria pior. Além da total ausência de vitórias importantes, o ano ficou marcado pela morte do seu irmão.

Serse Coppi fez carreira como irmão de Fausto, tendo como única vitória importante a controversa Paris-Roubaix de 49. O francês André Mahé seguia isolado na dianteira mas na entrada do Velódromo foi induzido em erro pela organização, que o levou a tomar um caminho errado. Quando retomou a marcha certa ainda foi capaz de ultrapassar a meta na primeira posição, mas no final Fausto incentivou Serse (que tinha sido segundo) a protestar. Após vários meses de discussão, a vitória foi dividida entre Mahé e Serse Coppi.

Seria o maior êxito de uma carreira que terminou em junho de 51. Serse sofreu uma queda no Giro di Piemonte, ainda foi capaz de terminar a etapa e seguiu para o hotel, onde veio a falecer. Como Gino Bartali em relação a Giulio, Fausto Coppi sentia-se culpado pela morte do irmão. Fora Fausto a incentivar Serse a ser ciclista para continuarem juntos, foi Fausto quem lhe arranjou um lugar na Bianchi e fora por Fausto que Serse estava a correr em preparação para o Tour. Finalmente Fausto Coppi sentia-se também responsável pela morte do irmão, algo que viria a tornar-se um assunto proibido na sua vida, tal como a guerra.

O ciclismo foi o refugido de um homem que não imaginava a vida sem ciclismo. Em 1952 venceu um Giro com concorrência fortíssima e no Tour estabeleceu a maior margem de vitória do pós-guerra. Com cinco vitórias de etapas (incluindo a estreia do Alpe d'Huez), Coppi deixou o segundo classificado a 28 minutos. Depois, seguindo a sua boa fase, o Giro 1953. E no Tour não marcou presença. Oficialmente, Coppi falhou o Tour para se preparar para o Campeonato do Mundo, a única grande vitória que lhe faltava no palmarés. Outras versões dizem que estava lesionado. Ou não queria a presença de Bartali. Ou a organização ameaçou a federação italiana para deixar Coppi de fora para não repetir supremacia do ano anterior. Certa foi a redução dos contrarrelógios e a eliminação das bonificações no topo de cada montanha, duas medidas que penalizavam o italiano.

Em agosto (Lugano, Suíça), com um ataque a 80 km da meta, conquistou o título mundial que tanto ambicionava, numa bicicleta que até hoje está exibida na sede da Bianchi. E no mesmo dia o mundo conheceria Giulia Occhini, a Dama Bianca.
Serse Coppi e Fausto, após a vitória do primeiro no Paris-Roubaix 1949


A Dama de Branco

"Fausto Coppi e a sua mulher Bruna" parecia uma legenda natural para um jornal suíço, mas não era. A mulher no pódio, ao lado do campeão mundial Fausto Coppi, não era a sua mulher Bruna, era Giulia Occhini, que ficara associada à vida do ciclista até ao seu final.

Coppi era casado com Bruna Ciampolini e pai de Marina, mas havia algum tempo mantinha um relacionamento com Giulia. O escândalo apenas pode ser compreendido junto à época em que se inseriu.

O divórcio apenas podia ser consumado após aceitação do Papa e o adultério da mulher, até 1968, era um crime punido até um ano de prisão para a mulher e o seu cúmplice. Isto é, o adultério de Coppi, por ser homem casado com Bruna, não era um crime per se. Crime era o adultério de Giulia, por ser mulher casada, e do seu cúmplice, neste caso, Coppi. Numa fase em que a sua carreira desportiva entrava no declínio próprio da idade, a sua vida pessoal estava mais exposta que nunca... e novamente entre interesses políticos.

Não sendo o divórcio permitido, tanto Coppi como Giulia foram forçados a abdicar de todos os direitos quando saíram de casa, o que incluía deixar para trás Marina, filha de Coppi, e Loretta e Maurizio, filhos de Giulia. Com a sociedade italiana em choque, a Democracia Cristã utilizava Coppi como um mau exemplo que era preciso evitar para defender a família tradicional cristã, enquanto o Partido Comunista utilizava Coppi como o bom exemplo de uma vida despegada dos valores cristãos. Mais uma vez, Coppi, frequentemente descrito como "uma figura apolítica", só queria paz.

A situação chegou ao extremo quando Giulia foi levada pelas autoridades e presa por quatro dias, em setembro de 54. Pouco depois Coppi teria a sua última grande vitória, na Lombardia. E na primavera de 55 nascia outro Angelo Fausto, "Faustino", o filho de Coppi e Giulia. Contudo, uma vez que o anterior casamento de Giulia não estava legalmente terminado, seriam necessários longos anos para que Faustino fosse reconhecido como filho de Coppi, e não como filho do anterior marido da mãe, apesar de ninguém levantar dúvidas sobre a paternidade da criança. No Giro desse ano, o primeiro após a retirada de Bartali, o Papa Pio XII recusou-se a realizar a tradicional bênção ao pelotão na jornada que partia de Roma, alegando que este continha "um conhecido pecador".

Giulia era criticada por ser demasiado extravagante, por oposição à elogiada  descrição de Adriana Bartali, sendo os relatos naturalmente influenciados pelos padrões da altura. Em simultâneo, Fausto enfrentou o declino desportivo de quem tem 36 anos e nunca mais teve paz. A Raphael Géminiani, seu companheiro e um dos últimos confidentes, mostrou um enorme arrependimento pelo rumo que a sua vida seguiu. Ter-lhe-á manifestado a vontade de "voltar à pequena terra, algures entre vinhas, produzir vinho, almoçar com amigos e ser feliz". "Terminarei a vida como comecei". Também uma era estava a chegar o seu final.

Campeonato do Mundo de 1953: Fausto Coppi e Brun...Giulia.

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